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Sueli Salles


Estava tudo indo muito bem no seu novo trabalho, como Papai Noel de shopping. Mas numa noite, Romero é abordado por um adolescente de rua e precisará fazer uma escolha difícil.


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Despindo Noel


-Tá pronto, Noel? Arruma essa barba aí! Em que shopping mesmo você já trabalhou?

- Quase pronto, quase...

Romero deu as costas ao gerente e foi se afastando, fugindo da segunda pergunta, encrenca na certa, afinal nunca tinha trabalhado em shopping nenhum. Há anos vivia no mar, ganhando a vida como camareiro em um grande navio, mas naquele ano tinha perdido prazos e ficara de fora da equipe. Desempregado, Natal chegando, resolveu topar o trabalho, indicação de um cunhado. A remuneração não era ruim. Moleza incorporar o personagem da roupa vermelha e sorrir para o público. Ainda tinha um duende e duas assistentes de sainhas vermelhas para ajudar a aguentar os pequenos mimados.

O gerente olhava com desconfiança para o novo rei da cena, parecendo ler-lhe os pensamentos. Aquele Noel tinha sido contratado às pressas para o lugar do gorducho oficial, enfartado na segunda semana de dezembro. A emergência não permitia certos cuidados no processo de admissão, por isso precisaram fazer vistas grossas ao currículo cheio de imprecisões. De longe mesmo o chefe ainda gritou algo:

- Vai lá, rapaz, a fila já está enorme. Boa sorte!

O “velhinho” de trinta e dois anos conferiu o espelho – tô bonito! – e caminhou para a praça central. Era o rei da passarela! Apossou-se do trono e, acenando para todos os lados, liberou a entrada dos súditos.

Primeiro veio uma menina, uns 8 anos. Parou na frente dele e o encarou em silêncio. Qual era o roteiro mesmo? Foi o duende que organizava a fila quem soprou no seu ouvido: “Pergunta o nome dela! O que ela quer ganhar! Fala com ela, seu idiota!”

Foi assim, no tranco, que ele entrou no jogo. Até o fim da noite já estava completamente ambientado: era um Papai Noel muito convincente. No seu colo, verdadeiro confessionário infantil, olhos encantados depositavam sonhos, confiantes no poder daquele herói. E não é que ele começou mesmo a se sentir assim, com certa bondade exalando pelos poros?

A certa altura da noite, o gerente passou por ele, tapinha nas costas: “Tá indo bem!”. O corpo meio cansado, aquele zumbido crescente no ouvido medindo o movimento do shopping. Crianças felizes, pais comprando, lojas vendendo, tudo indo bem...

Mais duas horas e pronto. O primeiro dos dez dias estava completo. Deixou o Noel no armário e vestiu o Romero: hora de reassumir-se. Desceu do ônibus um ponto antes e tentou organizar as ideias antes de chegar em casa: que sensação boa... nem quando virava a madrugada na Casa das Donzelas, no porto 21, sentia-se tão amado quanto naquela noite. Aquilo era um bico para pagar as contas, enquanto não voltava para o navio. Não era trabalho de verdade, mas... bem que podia ser.

No oitavo dia, o trânsito entupindo com a proximidade do Natal, resolveu trocar o ônibus pelo metrô. Estava cortando uma ruazinha estreita, quando ouviu um moleque chamar:

“Ei, mano, espera aí!”

Ele reconheceu de cara o menino que ficava no sinal: limpava vidro de carro, vendia bala. Era menor de idade, sem dúvida, mas tinha o porte de um homem. Romero foi logo dizendo estar sem dinheiro, se antecipando ao provável pedido. Ou seria um assalto?

“Você tá ficando no shopping de Papai Noel, não é? Te vi lá.”

“Eu... é... bom... Pode ser” – desconcertou-se assim desmascarado. – “O que você quer?”

“Fica frio, cara, sei que você não é Papai Noel de verdade. Trabalho é trabalho, eu também já fiz cada coisa pra ganhar grana... Mas a questão é outra, tô querendo garantir meu presente! Sabe como é...”

Enquanto ouvia o menino, olhou sutilmente para os lados: só os dois no espaço escuro da calçada. Era preciso controlar o nervosismo, não deixar o pivete perceber que estava com medo.

“Ah, você tem razão, todo mundo merece um regalo de Natal! Amanhã posso te trazer um chocolate, o que você acha?”

O moleque desfez o sorriso malandro e chegou bem perto do outro. Depois enfiou a mão no bolso e, olhando-o dentro dos olhos, confidenciou baixinho:

“Fiz uma carta pro Noel, o de verdade, mas não sei pra quem entregar. Pensei que você pudesse fazer isso... Não acredito muito nessas histórias, mas minha mãe disse que não custa tentar. Ela até joga sempre na loteria...”

Estômago em rebuliço, efeito do medo e da surpresa. De perto, o outro era mesmo só um garoto querendo acreditar em algo.

“Tudo bem, amigo, amanhã coloco lá com as outras cartas. Eles mandam todas pro mesmo lugar...”

Num silêncio cúmplice, o envelope dobrado trocou de mãos. Os dois, corações acelerados, afastaram-se sem olhar para trás.

Doido de curiosidade, Romero não via a hora de entrar no metrô para ler a tal carta, enfiada no bolso. O que o garoto poderia querer? Se não fosse algo muito caro ele até poderia...

Estava entrando na estação quando o celular tocou. O primo do Rio de Janeiro chamando para uma oportunidade incrível: um cruzeiro para a Itália sairia em três dias e havia uma vaga. Precisava estar lá até o meio-dia para preencher ficha, entregar documentação, fazer os testes, exames médicos. Que não esquecesse a carteira de vacinação! Sim, sim, a vaga era certa e o salário...

Na hora de guardar o celular, bolso cheio. O tal envelope. Parou um instante, desolado, mirando as letras tortas no verso da correspondência fechada. Como seguiria, carregando o sonho de outra pessoa? Mas de que adiantaria saber o que talvez não pudesse realizar? O amontoado de papel ardia em suas mãos, enquanto pensava num uniforme vermelho, guardado num armário de shopping.

Quando a campainha tocou, a consciência soprou-lhe um acalanto: se houver algo mágico de verdade - quem sabe até um Papai Noel - , ele não precisará de carta para conhecer o coração desse menino.

Teve certeza, então, de que tudo daria certo. Jogou o envelope na lixeira e correu para entrar no trem.

23 de Dezembro de 2020 às 11:31 2 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Sueli Salles Escrevo desde a adolescência, mas esta é minha primeira experiência em publicação pela internet. Sou professora e gosto de escrever contos sobre a difícil arte de conviver.

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Clau Terra Clau Terra
Sueli, que texto suave, encantador e ao mesmo tempo potencializador de múltiplas reflexões... gratidão pelo texto-presente e parabéns pela generosidade de compartilhar seu talento. Um Natal encantado a você!!!
December 23, 2020, 13:30

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