Catarina estava em seu oitavo mês da gravidez e em seu décimo mês de fuga. Chegara no aeroporto Brigadeiro Lysias Rodrigues depois de quase dois dias de viagem, desde São Petersburgo, às pressas. Seu cabelo, antes longo e loiro, agora estava na altura do queixo e preto. Somado à sua nova identidade, uma passagem para uma cidade totalmente desconhecida por seus amigos e familiares de seu país, oferecia-lhe uma oportunidade de se afastar de seus erros.
O aeroporto estava consideravelmente vazio em comparação a outros que já estivera anteriormente. No entanto, o que ouvira a respeito da cidade assim que chegou no Rio de Janeiro, e encontrou uma senhora que chorava numa mesa de uma cafeteria, com saudade de sua casa, era verdade. A senhora, de nome desconhecido, havia lhe dito o quanto gostava de sua casa, em uma pequena cidade do interior do Tocantins e o quão bonito era o pôr-do-sol por lá.
A senhora, assim como Catarina, tinha Palmas como seu próximo destino. E Catarina teve a sensação de que não estava completamente sozinha, mesmo com uma criança em seu ventre, ainda que não soubesse da existência desta ao chegar no Brasil. Cometera crimes irreparáveis na Rússia contra sua própria família e não poderia permanecer em sua terra natal sem correr riscos muito altos.
Seis meses depois, encontra-se num apartamento pequeno e a espera de um menino, ainda sem nome. Apesar do pouco espaço, Catarina se apegou o local. No sexto andar do edifício, possuía uma vista privilegiada do emocionante nascer e pôr do Sol. Sua sala de estar era exposta à luz por enormes janelas de vidro que iam do chão ao teto, fortificados por grades cinzas.
Ás vezes poderia parecer com uma cela, mas preferia pensar pelo lado positivo. Embora, caso realmente fosse sincera consigo mesma, admitiria que sua estadia ali era como uma prisão. Mesmo com seus momentos de paz, quando abria as janelas da sala de estar, logo cedo, e aproveitava o vento quente e o banho de Sol que lhe era oferecido, mesmo tendo garantido um emprego na lanchonete da rua de trás, ainda sentia-se com medo. E nesta noite não fora diferente.
Estava encostada em sua janela, olhando através das cortinas cinza e preto que usava para bloquear completamente as luzes que vinham da rua e dos carros que passam por lá, atrapalhando suas noites de sono. Trancara todas as janelas e portas, mesmo sabendo que morava num prédio e dizia-se que este ofereceria segurança. Suas mãos cederam ao nervosismo e tremiam e suavam incessantemente. Seu coração havia disparado, quase saltando pela boca. E tudo isso devido a uma encomenda que chegara na última semana.
Uma embalagem parda, sem nome e claramente não fora entregue pelo correio comum da cidade. Havia apenas uma mensagem e uma outra caixa menor dentro. A mensagem escritas duas vez, uma em inglês e outra em russo, dizia: "Estamos chegando, espere por nós. Que seu dia seja esplêndido".
Catarina sabia exatamente do que se tratava, pois apenas uma única pessoa sempre desejava que seu dia fosse esplêndido. Ele. No verso, havia uma data. E a data era naquela noite. A noite em que seu coração estava disparado, suas mãos tremiam e suavam e sentia que não seria capaz de segurar seu jantar no estômago.
Catarina pegou a caixa menor que estava ali, com movimentos minuciosos. Só Deus saberia o que aquela embalagem poderia conter e, durante o processo, esqueceu-se de como respirar. Sua mente aguçada já imaginava centenas de possibilidades macabras que poderiam pular sobre ela no instante em que retirasse o lacre.
Era uma caixa revestida com veludo vermelho e possuía um brasão no topo, uma peça de bronze queimado com a imagem de uma águia de duas cabeças, de asas abertas, alçando voo. Ela estava sobre uma Baikal, suas garras segurando-a como se quisesse levar a arma consigo.
A águia bicéfala. Um símbolo de poder e dominação. Usado há séculos por muitas famílias, mas nenhuma das comumente estampadas em bandeiras de nações, carregavam uma arma. Sobre suas cabeças havia não uma coroa, mas três circunferências entrelaçadas.
Os três valores. Ouvira-os desde criança e sentia repulsa todas as vezes. Ainda assim, sentiu-se obrigada a abrir e acabar com essa agonia de uma vez. De uma forma ou de outra, sua vida não estava exatamente um mar de rosas de forma que pudesse ter esperanças de melhoria. Passou os dedos sobre o brasão. Estava frio e rígido, assim como sua família, pensou. Deveria ser apropriado.
Catarina sentiu sua visão escurecer quando viu o que estava lá dentro. Sentiu seu estômago revirar e teve que correr para o banheiro. Horrível. Aquilo era horrível. Meses no escuro, sem saber o que havia acontecido e agora recebia isso...
Em meio a um lenço branco, manchado de vermelho, havia um olho. Um maldito olho. Percebeu que as manchas no tecido branco eram sangue. Não precisou tocar no órgão pra saber que era real. Na verdade, não sentiu a mínima vontade de provar isso. Queria que fosse mentira, queria não conhecer completos doentes mentais que fossem capazes de fazer algo assim, de enviar algo assim.
Com as mãos instáveis, Catarina pegou a tampa da pequena caixa, não podia olhar para aquilo por nem mais um segundo, quando reparou que havia outra mensagem. Na parte interna, estava escrito "Não se deve olhar para aquilo que não lhe é permitido. Este, foi um aviso".
Sentiu pavor, pânico, medo. Todas as emoções se embaralhado de uma vez em sua garganta. Levou a mão ao pescoço, como se pudesse abrir caminho para o ar entrar. Não podia respirar, não podia respirar, não conseguia respirar, não...
Viera para o Brasil por um motivo e em seis meses não foi capaz de encontrar suas respostas, era um completo desastre. E estava grávida, por Deus! Isso dificultava tudo. Mas não seria pega, nem hoje, nem nunca. Era assim que pensava, assim que acreditava que deveria pensar.
Eles não viriam. Não iriam encontrá-la. Eles não viriam. Não iriam encontrá-la. Eles não viriam. Não iriam encontrá-la. Continuou e continuou repetindo tais palavras como um mantra para se acalmar. Por ela, por esta criança e por ele. Ela seria forte. Ela será forte.
Passava das duas horas da manhã quando sentiu mais do que ouviu, muitos carros se aproximando do prédio. Acordou num salto e espiou pela janela novamente... Cinco carros de polícia, mas tinha a consciência de que não eram oficiais dentro dos veículos. Eles seriam cuidadosos ao ponto de pensar nos mínimos detalhes e fazer parecer uma situação normal diante dos olhos da sociedade.
Catarina apressou-se em fazer uma mala, precisava sair dali o quanto antes. Certificou-se de levar apenas o necessário: algumas roupas, sua arma e o mapa.
No caminho para as escadas de incêndio, Catarina repassou em sua mente seu caminho até ali. E a cada passo que dava pela escada, na direção oposta dos carros, memórias passavam por sua mente. Antes de fugir, na noite em que se despedia de todos mesmo sem se despedir realmente, o mapa lhe fora entregue anonimamente.
Fora deixado sobre sua cama, em meio aos seus lençóis desarrumados e delatores do que havia passado por ali, dos corpos presentes há apenas algumas horas. Era noite do aniversário de seu irmão e todos estavam no salão de recepção da monstruosa mansão de sua família. E quando referia-se à sua casa como monstruosa, tinha suas razões.
Enormes portões de ferro maciço despontavam no início da propriedade, ladeado por muros de pedra miracema que se estendiam até se perderem de vista. Grande parte da extensão desses muros e das paredes externas da casa, de mesmo material, eram cobertas por rosas trepadeiras amarelas, que faziam contraste contra as paredes cinzas.
Não sabia dizer se era por estar constantemente triste e sentindo-se deslocada em sua família e em sua casa, mas Catarina não se lembrava de muitos dias ensolarados e felizes, como presenciara nos livros e filmes que via. Lembra-se, no entanto, de intermináveis dias chuvosos e nublados, que favoreciam um ar sombrio na mansão. Era perturbador, na verdade.
A única cor em sua infância e adolescência fora a das malditas rosas amarelas que se agarravam às paredes como se sua sobrevivência dependesse disso. Provavelmente, pensou ela, dependiam mesmo.
Todos os dias que voltava da escola, trazida pelo chofer e nunca por seu pai ou sua mãe, havia aquele breve momento em que paravam com o carro na frente do portão e esperavam que a informação de que eram realmente eles, e não impostores, ela observava o local.
O céu cinza, carregado de nuvens, lhe dizia que aquele seria mais um dia comum e tedioso como praticamente todos em sua vida. As rosas amarelas, sempre em todos os lugares, todos os lados, diziam-lhe o quanto era infeliz e o quão medíocre sua vida estava sendo.
Elas a observavam sempre, com presença de espírito, muito atentas a todos os movimentos de cada um que se aproximasse da propriedade.
Por todo lado que você decidisse olhar, elas estariam lá. Na janela de seu quarto, pendendo nas portas de vidro da cozinha e entrando pelas laterais de janelas e portas ligadas ao jardim de inverno.
Catarina não as admirava, não gostava delas. Sentia vontade de ascender um fósforo e que naquele dia acontecesse um milagre e chovesse álcool ou gasolina. Queria vê-las queimar até terminarem em cinzas, juntando-se a todo o resto já sem cor e vida. Seria um dia perfeito se isso acontecesse, pensou ela.
Contudo, nada disso se tornou realidade. Os portões se abriram e o motorista os levou para dentro daqueles altos muros de pedra, que não lhe faziam sentir-se em um lar, mas numa prisão. Eles nunca conversavam. Não havia nada a ser dito, também. Então dia após dia contentavam-se com o silêncio e Catarina utilizava este breve momento para pensar e planejar como seriam suas próximas horas de absoluto nada.
Não podia sair sem a supervisão de guardas, não podia dormir em casa de amiga alguma. Não tinha amigas. Elas vieram até ela por um tempo, mas logo perceberam o quanto sua vida era restrita e desistiram de tentar se aproximar.
Catarina foi, então, obrigada a lidar com a solidão que assolava seus dias.
Sua mãe estava sempre fora, fazendo alguma coisa que nunca chegava aos seus ouvido e, quando estava em casa, fechava-se em seu quarto. Seus pais dormiam em quartos separados, mas às vezes o via ir para o quarto de sua mãe, quando acordava de noite e ficava andando pela casa.
Sabia que não deveria fazê-lo. No entanto, ia mesmo assim. Sua única oportunidade de escolher e seu pouco poder que tinha sobre si mesma, levaram-na a evitar o sono por várias noites para caminhar pela mansão.
Costumava, na maioria das vezes, ir à biblioteca e pegar os livros no alto da estante, que o pai a proibia de ler. Depois de descobrir o conteúdo daqueles livros, criou um hábito de escapar de seu quarto tantas noites quanto fosse possível. Aprendeu os dias e horários em que seu pai não estava em casa, quando ele se dirigia ao quarto da mãe e permanecia lá por horas antes de retornar ao próprio quarto, passando pelo corredor e servindo-se um copo de whisky.
Aos vinte anos, três anos depois de descobrir os maravilhosos livros, Catarina decidiu que queria provar o sabor doce e acre das paixões daquelas histórias. Queria saber se o desejo que sentira enquanto lia cada página seria igualmente abrasador com uma pessoa real.
Assim como queria ver as roseiras queimarem, queria isso a si mesma. Sentir-se derreter por dentro e queimar por fora. Queria que palavras fossem sussurradas em seu ouvido, que segredos lhe fossem confiados e seu nome saísse dos lábios de outra pessoa. Estava cansada de se esconder sob o teto de um castelo cinéreo.
Mesmo tratando-se de uma gaiola de ouro, ainda era uma maldita gaiola. Estava farta de ser ignorada por seus irmãos e pais, de não ter amigos, de viver em constante perigo e viver sob vigilância. Odiava a si mesma por fazer parte de uma família como aquela e odiava seus pais por terem trazido crianças para um mundo em uma vida perturbada.
Não fazia sentido. De que adiantava ter um império, se ela não pudesse viver a própria vida em momento algum? Ela tornou-se obstinada em conseguir o que queria assim que seu pai anunciou que ela se casaria com um de seus sócios para manter a boa amizade entre os "negócios".
Seu antigo chofer, o senhor Ivo, falecera um ano antes e fora substituído por Sacha, um homem de trinta e poucos anos. Catarina achava-o muito atraente e, embora pudesse de fato terem mais de dez anos de diferença, percebia os olhares furtivos que o motorista lançava a ela. Não era burra, nem era mais uma criança. Sabia muito bem identificar o desejo, pois o vira nos olhos de muitos dos amigos e sócios de seu pai quando estes iam em sua casa.
Eles também não eram idiotas o suficiente para tentar algo, mas sabia que tentariam se não fosse seu parentesco. Decidiu usar isso a seu favor e, por vezes, chegava a flertar de volta com alguns deles. Era arriscado, tinha pleno conhecimento disso, mas também era divertido e emocionante.
Por meses foi avançando lentamente, quase imperceptivelmente. Passou a sentar-se no banco da frente sempre que podia e tentava chamar a atenção de Sacha da melhor maneira possível. Homens gostavam de seios, pensou Catarina. Então toda vez que tinha oportunidade se sair, procurava uma blusa ou camiseta que evidenciasse que ela não era mais criança. De certo modo, funcionou. Seu cuidado em deixar seu lábios vermelhos e brilhantes também pode ter ajudado.
O que estava em seu caminho era seu pai e seus irmão que sempre deixavam bem claro que agora ela já era uma mulher prometida, mesmo que com um homem com o dobro de sua idade, e ninguém ousaria ir contra a palavra deles. Nem mesmo sua própria mãe.
Certo dia, havia requisitado Sacha com a desculpa de que precisava ir à farmácia. Mas seu irmão enxerido, apareceu no momento em que conversavam e pediu-lhe ajuda para levar malas para seu carro. O desgraçado estava indo passar o final de semana em um das outras propriedades que Catarina sempre fora proibida de visitar. Deu a ordem e foi embora, como se Sacha não passasse de um mero sevo, ninguém que lhe valia a atenção.
Catarina o seguiu quando ele subia em direção ao quarto de seu irmão para buscar as bagagens. Quando percebeu que estava logo atrás dele, parou e virou-se para ela:
— O que está fazendo? — Questionou.
— Não posso te ajudar? — Respondeu com um sorriso. Aproximou-se mais alguns passos até ficarem apenas a centímetros de distância. Catarina quase podia sentir o calor de seu corpo.
— Não, não é seu dever. — Retrucou, seco. Ele deu mais dois passos para trás e colocou a mão na maçaneta. Os nós de seus dedos ficaram brancos e ele engoliu em seco. Eram todos os sinais de que ela precisava e fechou o espaço entre os dois, até que seus peitos estivessem colados um ao outro.
Sacha prendeu a respiração, queria se mover, queria sair dali e fingir que nunca sentira o desejo que agora martelava contra sua cabeça com a força de um tijolo. Esqueceu-se de respirar, até que Catarina tocou sua mão. Seu braço esquerdo estava colado ao seu corpo e a mão direita segurava a maçaneta como se aquilo dependesse de sua vida, como se fosse o que o matinha em pé.
Um pequeno suspiro exasperado sair de sua boca entreaberta, não pode evitar. Catarina amou, adorou e admirou o som como se fosse a mais bela canção que já ouvira. Queria mais, queria saber que sons sairiam de sua boca se a sua estivesse colada à dela. Ele estava paralisado e Catarina, que o observava com atenção predatória, quase teve medo de aquilo fosse um sonho ou uma miragem, não poderia ser tão corajosa desta forma. Mas um pequeno movimento dos dedos de Sacha, da mão que estava agora colada à sua, a despertou de seus devaneios.
— O que você quer, Catarina?
— Você — Respondeu sem hesitar. Estava com a respiração entrecortada e sentia que estava suando frio por lugares inimagináveis. — Eu quero você desde o primeiro dia em que o vi passar por aquele maldito portão.
Quis você naquele dia e em todos os outros que se seguiram.
Catarina ficou mais surpresa do que o próprio Sacha ao ouvir que tal declaração partira dela. Estava completamente em êxtase, desnorteada com a proximidade e com uma visão privilegiada dos olhos verdes, agora apavorados. Dos lábios de Sacha, da barba por fazer e de seu queixo anguloso. Perguntou a si mesma qual seria a sensação de passar os dedos entre sua barba, até seus cabelos castanho e visivelmente macios. Decidiu que não iria apenas imaginar, não hoje.
O homem não disse mais nada, apenas a encarava, seus olhos passando por toda extensão de corpo e sempre terminando em sua boca. Sacha também queria senti-los, queria tocá-los e descobri qual era o gosto de Catarina. Queria isso também desde o primeiro dia que pusera os olhos sobre ela e sentiu que poderia entrar em combustão ali mesmo, no corredor, após ouvir o que ela dissera. Mas não podia fazer isso, não se quisesse permanecer com seu emprego e com sua cabeça no lugar. E resistir aos avanços de Catarina não tinha sido tão difícil nos últimos meses como está sendo agora.
Sacha esqueceu-se de como respirar quando Catarina levou a mão, antes entrelaçada na sua, ao seu rosto. Sentiu todo seu autocontrole se esvaindo e cada vez mais estava próximo de cometer um erro irreparável. Seus dedos deslizaram da maçaneta e pousaram na cintura de Catarina. Ela parecia incrivelmente mais linda de perto. Seus cabelos loiros e ondulados caiam sobre os ombros como uma cachoeira, fluídos e constantes e terminavam perigosamente sobre um local para ele onde nunca deveria olhar, mas era fraco demais para evitar.
— Me beije. — Catarina disse, quase como um sussurro. Sentiu seu hálito em sua boca e soube que estava perdido. Terminantemente perdido.
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