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Sueli Salles


Ele ainda era um potro bem pequeno e frágil quando ganhou sua menina. Aquele era um contrato mágico, entre os anjos equinos e as bruxas pueris. Cresceriam juntos, cuidariam um do outro, seriam parceiros. Cumpririam cada um o seu papel: ele, de carregá-la nas grandes aventuras; ela, de desejar aventuras para desafiá-lo. Estavam unidos, como num casamento, por toda a vida. Até descobrirem as falhas um do outro. Como lidar com as recíprocas decepções?


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Com manchas nas patas

Ele ainda era um potro bem pequeno e frágil quando ganhou sua menina. Aquele era um contrato mágico, entre os anjos equinos e as bruxas pueris. Cresceriam juntos, cuidariam um do outro, seriam parceiros. Cumpririam cada um o seu papel: ele, de carregá-la nas grandes aventuras; ela, de desejar aventuras para desafiá-lo. Estavam unidos, como num casamento, por toda a vida.

Mas, antes mesmo de tomarem consciência de que estavam casados, descobriram a fase da traição: ela olhava outros, comparava-os. O seu cavalo também tinha quatro patas, um dorso forte, tinha força para longas caminhadas. Mas ela desejava os de crinas longas e avermelhadas, com músculos bem torneados, que galopavam velozes e trotavam como campeões. Ele, ressentido, começou também a desejar outras mulheres, que trilhassem caminhos mais bonitos e divertidos, que gostassem dele e lhe dessem, de vez em quando, cuidados de SPA.

A relação foi ficando distante, cada um cumprindo minimamente o compromisso com o outro. Suportavam-se. Às vezes ela o levava a treinos extremos, quem sabe ele ainda pudesse ser um campeão. Ele boicotava tudo e esculachava em público, para envergonhá-la.

Um dia tropeçaram numa daquelas pedras do meio do caminho e rolaram barranco abaixo. Pararam no fundo de um grande buraco, repleto de outros cavalos e donos, abandonados ali, silenciados, já sem vida.

Ainda assombrados com aquele cenário, perceberam que haviam se desligado e, distantes, puderam reconhecer que eram dois. Que não eram bons um para o outro. Que era melhor ficarem desse jeito. Casamento é assim, às vezes não dá certo.

Sem dizer palavras, ele, pernas fortes, decidiu escalar o barranco. Ela, indignada, nem olhou para trás: caminharia para o outro lado. Juntaram ressentimento e esforço mental, mas não conseguiram sair do lugar. Pareciam sem pilha, desligados da tomada, simplesmente não iam. Tentaram gritar por ajuda, o som não vinha, no entanto, curiosamente, podiam ouvir um ao outro. Foi quando o diálogo que tanto adiaram começou...

“Olha, não leve a mal, só acho que esse casamento não foi escolha minha. Quem escolheu você para mim?” pensou ela.

“Poxa, eu digo exatamente o mesmo! Você foi um presente que aceitei de coração, mas não tinha ideia de como essa relação seria difícil. Nessa minha vidinha, quantas parceiras mais camaradas não percebi por aí. Você às vezes é bem cruel comigo!”, relinchou.

“Eu, cruel? Você me envergonha desde quando eu era criança. As outras meninas desfilavam em seus cavalos elegantes e eu tinha... você. “

O cavalo ficou em silêncio por um longo momento para só depois responder:

“Feche os olhos e lembre-se de mim, pequenino, sendo entregue aos seus comandos. Primeiro cuidaram de nós dois, que não tínhamos condições para isso, mas depois você é quem passou a decidir o caminho, as brincadeiras. Algumas coisas fui descobrindo em mim a partir dos seus olhos: que a minha anca larga te chateia; que a pata lisa tem mais valor que a minha, com manchas; que uma crina ruiva (e não esta, castanha) seria símbolo de poder. Antes de você me julgar eu era só um cavalo. Um bom cavalo, que se dedicou a te servir desde que nasci. Fui um filhote rejeitado, mendigando um pouco do seu carinho. Cresci assim, tentando me moldar de acordo com esse espelho deformado dos seus olhos. Mas, ainda assim, não vivo sem você.”

Ela veio processando aquele conteúdo do fim para o começo. Também nunca tinha ido a lugar algum sem ele. Também precisou dele para viver todas as suas grandes aventuras. Gostava sim da crina ruiva, mas não tinha nada contra o pelo castanho. Gostava até. As patas manchadas não eram defeito, de onde ele tirou isso! Ela adorava aquelas manchas, só tinha ido ao veterinário para saber se era saudável. Quanto às ancas... ele tinha razão, ela não gostava mesmo.

E pensou nele como um filhote. Tinha sido um filhote fofo. Não tinha percebido o quanto ele continuaria precisando dos cuidados dela, depois que foi crescendo. E qual o problema de ele não ser assim um cavalo tão elegante? Ela, que adorava cachorro vira-lata vinha agora exigir que o cavalo tivesse pose de atleta? Olhou para ele ali, machucado do tombo, com aquela anca larga, com aquelas patas manchadas, com aquele pescoço elegante e aqueles olhos profundos. Era um lindo cavalo e não se deixaria mais dizer o contrário.

“Sabe, eu também não vivo sem você. Acho que precisávamos dessa parada. Você é um cavalo, igual a todos os outros, diferente de todos os outros. Estaremos juntos até o fim da jornada, que pode ser boa, se nos ajudarmos.”

Quando voltaram à estrada, unidos, ainda havia um pouco de encabulamento, reflexo dessa conversa desconfortável. Mas, aos poucos, um passo, outro passo, outro passo.

1 de Dezembro de 2020 às 09:29 2 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Sueli Salles Escrevo desde a adolescência, mas esta é minha primeira experiência em publicação pela internet. Sou professora e gosto de escrever contos sobre a difícil arte de conviver.

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Clau Terra Clau Terra
Adorei...
December 01, 2020, 15:00

~