Noite de segunda-feira. Hora extra. Chuva. E tudo confabulava contra Milie Myers, que completamente molhada, descia apressada as escadas do metrô, quebrando o salto do sapato e por pouco não caindo. Por sorte tinha reflexos rápidos para se agarrar ao corrimão e evitar que o dia terminasse pior do que já estava.
O homem sentado no banco e lendo um livro com fisionomia de total incredulidade, desviou a atenção para a jovem atrapalhada e depois voltou seu olhar ainda espantado para o livro, quando os vagões pararam rapidamente e abriram suas portas.
Milie tirou o sapato e desceu rapidamente as escadas, seguiu mancando pela plataforma, mas as portas do vagão já haviam se fechado. O trem partira sem ela, teria que esperar mais meia hora. Era muito azar para um só dia! E fez aquela pergunta mental que nunca devemos nos fazer: o que mais falta acontecer hoje?
Num dia normal já estaria em casa, de pijamas, jogada em seu sofá, com uma boa xícara de cappuccino e devorando um livro. Esse era o vício de Milie: ler. E justamente naquela noite não tinha trazido nenhum livro para matar sua insaciável fome de leitura. Dirigiu a atenção para o banco. O homem não estava mais lá. Provavelmente conseguiu embarcar no vagão, embora não tenha notado por estar ansiosa demais.
A plataforma estava vazia. O relógio no painel indicava 23:49. Nenhuma viva alma ali embaixo. Nunca é agradável ficar sozinha à noite em um subterrâneo de metrô, ainda mais para uma mulher. Começava a ficar nervosa, olhando para todos os lados e cantos escuros. Até perceber que havia um livro sobre o banco aonde o homem estava.
Milie se aproximou e sentou. E as perguntas ressoavam em sua cabeça: O sujeito esqueceu o livro na pressa? Que tipo de gente esquece um livro? E se eu pegar? E se o sujeito der falta e descer na outra estação e voltar? Ficou nesses pensamentos enquanto olhava para o livro. Era um livro. Um vício. Compulsão. Fome. Sentia-se mais tentada que Eva quando viu a maçã no Éden. E não era uma maçã. Era um livro. Embora ambos fosse a simbologia da oferta do conhecimento, eis que a curiosidade venceu. Tanto Eva quanto Milie. Agora teria diversão para a viagem.
Pegou o livro e sorriu ao ler o título: “O livro que você nunca vai ler”. Autor Allus Stuck. O escritor deveria ser um bom marqueteiro. Colocar um título desses só servia para desafiar qualquer leitor! Quem compraria um livro que dizia que você nunca o leria? Uma bela provocação para um faminto por literatura! Qual seria a história?
Saltou rapidamente das páginas iniciais, incluindo o índice, diretamente para o corpo da história. A fome literária faz isso. Então fez um semblante de indignação. Todas as páginas estavam em branco! Que brincadeira idiota! Realmente, esse livro nunca vai ser lido porque não havia nada para ler! Agora entendia porque o sujeito deixou o livro, não havia sido esquecido, havia sido deixado mesmo! Quanta enganação! O dono deve ter ficado tão furioso quanto ela, ao se dar conta do engodo. As editoras estavam começando a passar dos limites e os autores mais ainda, tudo por dinheiro! Que golpe de marketing mais cínico e imbecil! Um livro com páginas em branco! Isso era caso de processo, e como boa advogada, ela o faria certamente. Continuou folheando as páginas, tentando encontrar pelo menos uma letra, porque aquilo se tornava surreal e inacreditável.
E se for um tipo de impressão especial? Alguma tinta que se revele sob algum tipo de luz? E enquanto questionava olhando para as páginas em branco, meia hora se passara e o metrô parava em sua frente.
Alguns segundos e o metrô partiu. O banco onde Milie estava ficou vazio. Jazia apenas o livro aberto no índice, que se chamava "menu". Nele haviam capítulos escritos com nomes de pessoas e agora constava o nome de Milie Myers.
Aquele era um livro que nunca seria lido, pois era um livro que leria você. E fechando-se sozinho, ficou atirado ali, ainda faminto, num banco onde milhares de pessoas passam todos os dias, aguardando o próximo curioso e a próxima história de vida para se alimentar...
Obrigado pela leitura!
Lara mostrou-nos sua criatividade enquanto brincava com nosso psicológico, tecendo um enredo onde sua personagem principal conhece o contra de sua avidez por leitura. Somos devorados pela obra, e ao fim encaramos o texto de olhos arregalados. De agora em diante, fica a regra: sempre comece pelo índice! E assim, a autora conquista com muito mérito o segundo lugar no desafio #arrepiainks!
Se você também é alguém que não pode ver um livro que já quer ao menos folheá-lo, essa história é para você. Em "Sempre comece pelo índice" Lara nos mostra, de uma forma completamente nova e criativa, o que acontece quando se mexe com as páginas que estão quietas. Merecidamente, vendedora do segundo lugar do #arrepiainks.
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