dissecando Edison Oliveira

Da pra ouvir os seus latidos raivosos, seu rosnado e até mesmo o arrastar de sua corrente. Ele causa pesadelos no pequeno Solano, que de modo algum põe os pés na Rua C


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.
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O CÃO DA RUA C



Era de causar aflição, uma sensação incômoda, um frio na barriga que parecia que todos os intestinos estavam sendo congelados, e ainda faltavam doze minutos para a aula acabar. O problema das aulas acabarem era que, todos os dias, Solano precisava caminhar até chegar em sua casa, uma caminhada que deveria ser simples e tranquila, talvez de seis a dez minutos da escola até lá, mas, fazer o contorno obrigatório esticava este tempo para quase meia hora.
Não dava para ouvir a sineta, se despedir dos amigos e sair andando, chutando latinhas pela rua e chegar em casa descontraído. Isso era impossível. Um desejo distante, uma miragem utópica em um mundo medonho, um mundo raivoso, que baba, rosna e late. Solano já o escutara uma vez; um latido forte, alto, quase rouco. Só de ouvir aquilo seus ossos petrificaram. Aquele latido ecoou em uma tarde comum, vindo de uma rua qualquer, de uma direção desconhecida, mas terrivelmente próxima, um som perturbador, uma coisa que apenas uma fera seria capaz de produzir.
O rosnado fez com que Solano paralisasse instantaneamente. Seu corpo não foi para frente nem para trás. Suas mãos procuraram refúgio em seus bolsos, e o som do mundo (carros, pessoas conversando, passarinhos assoviando nas árvores ali perto) simplesmente desapareceram, certamente apavorados com aquele eco das trevas. Naquela oportunidade, Solano esperou o corpo voltar a si. As pernas finalmente obedeceram, e seus olhos não paravam de procurar. A noite, teve pesadelos com o dono daquele latido. Nele, via-se preso em um labirinto escuro, cercado por telas de arame. Andava em todas as direções, abraçando o próprio corpo, olhando tudo ao redor e ouvindo apenas os próprios passos na terra pura. Chamava pelos pais e ninguém respondia, apenas um silêncio aterrador, uma coisa crescente, um mundo de nada que ainda assim causava desconforto. Seguia caminhando, dobrando para a esquerda, depois para a direita, um caminho que não levava a nada a não ser outros caminhos de terra e paredes de arame. Já ouvira falar de lugares como aquele; lugares onde tudo era exatamente igual, construídos sabe-se lá por quem, apenas para causar confusão na sua cabeça. Seguia por aqueles corredores ainda acuado, ciente de que sim, estava dormindo e encarando um pesadelo, mas um pesadelo que era estranhamente perigoso, pois em algum momento reparou que a tela de arame estava estraçalhada, arrebentada por garras ou talvez dentes. Talvez até mesmo pelos dois. Então Solano berrava pelos pais e daquela vez, o silêncio sumia, e a resposta que ecoava nos corredores escuros não era a voz carinhosa de sua mãe ou o resmungo afetivo do pai, e sim daquela coisa que escutara na rua enquanto retornava da escola.
Não lembrava de quase nada na manhã seguinte (exceto do latido enraivecido), e após comer biscoitos e beber seu copo de leite, Solano ia para a escola e sempre optava pelo contorno obrigatório, chegando sempre atrasado nas aulas.
Aquilo seguiu-se por algumas semanas, e dois meses depois de escutar pela primeira vez o latido, Solano finalmente descobriu a quem ele pertencia.

Foi durante o intervalo.
Fazia calor, mas não tinha sol, e um vento morno soprava pelo pátio. Alguns garotos (entre eles Alfredo Salim, dois anos mais velho que os demais e com muito mais experiência), estava cercado por uma pequena multidão. Ali no meio de tudo, Solano apenas escutava. Alfredo, de pé sobre o banco de madeira, falava sobre a criatura que vivia na rua ali próxima. Uma coisa enorme, que só sabia latir e babar, uma fera enjaulada em um terreno baldio.
— Ele tem uma pelagem marrom! — detalhou Alfredo, narrando enquanto a multidão nem sequer piscava amontoada abaixo de si. — Já o vi, amigos. Mais de uma vez. Tive a coragem de andar pela Rua C, e lá estava ele!
Rua C. Agora, Solano sabia onde a fera vivia. Já andara por lá em outras ocasiões, muitos anos antes, quando ainda era um bebê de cinco anos. Hoje, aos oito, ainda se sente como um quando escuta a fera latir. Ouviu Alfredo falar sobre a força da fera, e de como ela arrastou a árvore quando puxou a corrente ao correr na sua direção.
— E como a árvore não caiu? — questionou um dos meninos, um que Solano não sabia o nome, mas já vira durante os intervalos.
Alfredo procurou o autor da pergunta no meio da multidão, e quando o localizou, respondeu:
— Quem disse que ela não caiu, rapaz? Caiu! Eu mesmo vi a danada tombar. Rezei para que caísse sobre o bicho, mas não foi bem assim.
A multidão suspirou e rapidamente o murmurinho se estendeu. Uns falavam com os outros, todos ao mesmo tempo, e Solano seguiu em silêncio, apenas ouvindo, imaginando, assustando-se com o que pensava. De repente, a sineta interrompeu seus pensamentos e o próprio murmurinho. Todos se levantaram, limparam os traseiros com uns tapas e seguiram rumo às suas respectivas salas, conversando, amedrontando uns aos outros, a inocência cruel daquela maioria.
Antes de entrar na sua sala, Solano escutou a voz de Alfredo gritar, não apenas para ele, mas para todos:
— Evitem a Rua C, amigos!
Para Solano, aquele pedido sempre fora seu lema.

Tudo se seguiu como sempre seguia na sua vida agitada de oito anos, com idas e vindas da escola, desenhos na TV durante as tardes, biscoitos, balas e todos os outros doces, com Solano ainda amedrontado, ainda escutando latidos que agora possuíam um endereço.
Ele falara com os pais sobre seu pavor, sobre a fera da Rua C que parecia latir para tudo, mas principalmente para ele, e os pais sentaram-se com ele no domingo e explicaram que aquele cão estava preso, incapacitado de lhe causar qualquer mal. O pai tentou convencê-lo de ir até lá, primeiro andando e depois dentro do automóvel, mas Solano recusou prontamente. Os dias seguiram e o verão cedeu passagem ao outono, o que deixou as ruas cobertas com folhas secas e amarronzadas, um chão que estalava quando você pisava sobre ele. Os latidos seguiam vindo de todos os lados, não apenas da Rua C, como se a fera vivesse em todas aquelas casas, com olhos, dentes e garras guarnecendo todos os lugares. Os pesadelos de Solano ainda aconteciam, às vezes com ele acordando aos gritos no meio da noite, apontando, virando o rosto, babando. Isso tudo se acumulou por mais uns dias, quando Alfredo Salim, em pé e falando para sua multidão, garantiu que um dos alunos daquela escola havia sido atacado pela fera. Fazia um pouco de frio naquele dia, e a maioria permanecia ao redor com os braços cruzados.
— E como está o menino? — quis saber um garoto ruivo e sardento.
— Morto, — falou Alfredo, friamente.
— Isso é papo furado! — retrucou outro, este com um risinho cínico nos lábios.
Alfredo virou-se para ele, sério.
— Pergunte ao diretor. A mãe do menino esteve aqui. A escola fará suspensão das aulas.
E assim aconteceu, sem muitas explicações, no final daquele dia na escola, com o diretor Gabriel Moraes visivelmente abalado, procurando as palavras certas em um momento tão errado. Solano assimilou aquilo com seu labirinto particular e escuro, com o diretor completamente perdido, amedrontado, preso diante de uma situação difícil. Saberia ele da fera, tão próxima, tão raivosa, que agora sentira o gosto de sangue de uma criança e que nunca mais viveria sem ele?
Daquele dia em diante, dormir só era possível com a mãe ou pai em seu quarto. As luzes tinham de permanecer acesas, iluminando, revelando tudo e todos, tornando impossível esconder-se pelos cantos.
Se um cão latia lá fora, Solano tremia e começava a chorar. Em seguida, era encontrado encolhido num canto, abraçando as próprias pernas. Dali uns dias, começaram as sessões de terapia, algo que foi difícil no início, mas que com o passar das semanas acabou se tranquilizando. Ele visitava o doutor Franklin toda quarta-feira, durante uma hora, e passou a gostar de lá.
O consultório tinha cheiro de morango, e Solano assimilava aquilo com os biscoitos que gostava de comer. Além disso, haviam diversos brinquedos que ficavam próximos a ele, todos coloridos e nada ameaçadores, pequenos e não enormes com dentes afiados e que latem. Era uma hora bastante agradável, uma hora onde todas as feras do mundo não o encontravam, mesmo que farejassem o ar em qualquer das direções.
Passou a sentir-se bem, mais confortável, dono das próprias vontades, com medo natural do escuro, mas não do que poderia encontrar dentro dele. Mesmo que escutasse alguma coisa latir, seu coração não acelerava mais. Ainda sentia a espinha ouriçar, mas não passava disso. Calafrios todos sentiam, até mesmo os adultos como mamãe e papai. Enquanto bebia um achocolatado quente numa tarde gelada de sábado, cercado por miniaturas de super-heróis e carrinhos que simulavam perfeitamente ambulâncias e viaturas policiais, Solano escutou o pai dizer que iria até à Rua C. Imediatamente sua atenção voltou-se para aquela conversa.
— Vai tentar conversar com os donos do tal cachorro? — perguntou a mãe, remexendo na geladeira.
— Vou, sim — falou o pai, endireitando o cachecol no pescoço. — Até eu já estou curioso para ver esse cão. Pensei em levar o Solano comigo, sabe, para…
— Esqueça! — interrompeu a mãe, virando-se nervosa para o pai. — Vamos dar mais um tempo para ele.
— É. Você tem razão — concordou, e quando estava de saída, deteve-se e virou-se para a esposa. — Quer algo do mercado?
A mãe disse que não precisava, pediu para que ele não demorasse e em seguida continuou concentrada na geladeira.
Solano sentiu-se incomodado, procurou lembrar-se das palavras sempre práticas e confortáveis do doutor Franklin, aquelas que quando escutava sentia a mesma sensação agradável quando assistia desenhos ou jogava seu vídeo game preferido.

O medo pode ser trancafiado, ele dizia.

O medo não pode lhe fazer mal, não quando você está com seus super-heróis à sua volta!

Solano foi até seu quarto, levou todas as miniaturas de seus super-heróis consigo e deitou-se junto delas em sua cama, fitando o teto, não querendo fechar os olhos, pois era quando dormia que o labirinto surgia, com sua escuridão, sua tela despedaçada e seus latidos raivosos.
Com esforço, evitou dormir. Ficou ali por horas, escutando a mãe andar pela casa, mexer nas coisas, abrir a porta, perguntar para ela mesma porque o pai estava demorando tanto e em seguida fechar a porta. Após um instante de silêncio, ouviu o telefone da mãe tocar. Ela demorou para atender. Quando finalmente atendeu, Solano escutou a voz da mãe, distante.
— Alô?
Silêncio. Estava longe demais para escutar a conversa, mas, lá fora, ecoou o rosnado mais furioso que Solano já ouvira até então.

1 de Setembro de 2020 às 20:09 2 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Isabela Ferreira Isabela Ferreira
Eu simplesmente amei! A história é cativante, eu não conseguia tirar os olhos da tela, queria muito saber o que ia acontecer. E eu amei o fato dos pais do Solano ter levado ele para terapia quando ele contou do medo, foi um detalhe que me fez amar ainda mais a história! Você tem muito talento! Parabéns!
September 14, 2020, 01:41
JasMoon Letta JasMoon Letta
Amei sua escritaaa e o plot do conto é muito bom também, parabéns!❤
September 09, 2020, 14:29
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