dissecando Edison Oliveira

Aquele terno escuro... Ele não deveria estar lá! Se quer saber o porque, já sabe o que precisa fazer.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.
Conto
1
4.3mil VISUALIZAÇÕES
Completa
tempo de leitura
AA Compartilhar

AQUELE TERNO ESCURO


Já tinha ensacado praticamente tudo. Das gavetas, retirou uma dúzia de meias, marrons, brancas e pretas. Da parte superior, onde haviam quatro portas, Alencar teve mais trabalho; ali, ficavam as camisas, todas em cabides, muito bem passadas, pois, seu pai adorava se vestir muito bem. Elas eram em sua maioria formais, sob medida, com cores mais escuras, algo que evitava chamar muito a atenção. Seu pai fazia o tipo calado, um homem sério (por vezes rabugento) que sentava em sua poltrona aos domingos segurando uma lata de cerveja e ficava contemplando as alegrias e frustrações do futebol.
A poltrona ainda está lá embaixo, na sala de estar. Alencar pensou ter sentido o cheiro do pai quando passou por ela. Era esquisito voltar até aquela casa tanto tempo depois de ter partido, atravessar o jardim silencioso, olhar em volta e reconhecer — mesmo que vagamente, — alguns lugares e não anunciar para absolutamente ninguém que estava chegando.
No interior da casa estava escuro e vazio. Havia um odor pairando pelo ambiente, talvez de mofo ou simplesmente da casa em si, já trancafiada há pouco mais de uma semana debaixo de chuva e dias ensolarados de verão. A vista acostumou-se com a escuridão pouco tempo depois, e já há mais de meia hora Alencar estava no segundo andar, enfiado no quarto do pai com um saco enorme jogado no chão.
Este saco estava com a boca arreganhada, e lá dentro, apenas lembranças se amontoavam umas sobre as outras. Cada peça de roupa possuía uma história, um momento ruim ou bom, e ainda assim nada daquilo importava mais; elas já tinham sido úteis, impressionado pelo aspecto que davam à seu dono, e agora eram apenas pedaços de pano, lembranças de costuras que de nada serviam a não ser para causar desconforto. Benjamin Silva era o nome dele. Sujeito que falava pouco e fazia demais. Ele ficava bonito quando vestido socialmente, e até mesmo atraente quando usava jeans e camisa polo. O Jeans fora presente de Alencar para o pai em seu aniversário passado (o último em que ambos trocaram algumas palavras antes das veias do coração do pai entupir), e agora estava ali, no topo da pilha de roupas, com uma das pernas pendendo na borda do saco. Alencar não se sentia cansado ou incomodado por ser ele a estar ali; em uma conversa com sua irmã, Letícia, dois dias após o enterro e por telefone, ambos concordaram que ele era a melhor opção para viajar durante duas horas até a casa do pai, ao norte de Pedra Negra. Letícia tinha de cuidar da pequena Maria, sua sobrinha de apenas três anos que mal conhecera o avô, pois este não era tão chegado em crianças. Maria dava trabalho quando sentava na cadeirinha em viagens muito longas, e Letícia não soubera lidar muito bem com a morte do pai, mesmo que este não tenha sido o melhor para ela nos últimos anos. Então, Alencar esperou o sábado chegar, abasteceu seu automóvel e viajou até ali, lembrando da infância quando cruzou pelo antigo campo onde jogava futebol, e de certos momentos da adolescência quando passou lentamente diante de um edifício abandonado, um lugar que lhe serviu de esconderijo para fumar seu primeiro cigarro e sua primeira erva, e também como abrigo para sua primeira transa.
Lembranças. Doces e amargas, assim como tudo dentro daquele saco. Estava olhando ao redor (um quarto que pouco mudou desde quando morara ali) e inevitavelmente enxergou o pai deitado naquela cama acolchoada. O via abatido, os cabelos brancos, desgrenhados, olhos cinzentos apontados para cima. Olhar de quem visualiza a morte e espera, sem pressa ou medo.
Pensativo, Alencar suspirou e olhou para o guarda-roupa. Enxergou um terno escuro, alinhado, pendurado no cabide. Desconfiado, aproximou-se e antes mesmo de tocá-lo, retirou o celular do bolso e ligou para a irmã.

Três chamadas mais tarde, Letícia finalmente atendeu. Sua voz estava sonolenta, e Alencar desconfiou que talvez fossem pelos remédios que vinha tomando.
— Está em casa? — falou Alencar, encarando o terno escuro.
— Sim. Foi até a casa do papai?
— É, eu vim. Está com cheiro de velho.
Um sorriso fraco no outro lado da linha.
— Papai tinha quase noventa. Que cheiro acha que ele tinha?
— Escute… Lembra da roupa que ele estava usando, no dia do enterro?
Letícia sumiu por quase um minuto, e em seguida sua voz ressurgiu ao telefone.
— Era um terno escuro. Lembro bem. Fui eu quem escolheu a roupa. Ele amava aquele troço. Presente da mamãe.
Alencar engoliu a seco. Esticou o outro braço e encostou no tecido do terno, para ver ser era real. Arrepiou-se quando constatou que ele era e instintivamente seu braço recuou.
— Por que está perguntando isso? — perguntou Letícia, e em seguida ela pareceu bocejar.
— Por… Por nada. Foi só algo que me ocorreu. Preciso desligar, está bem? Isso aqui está uma bagunça.
Encerrou a ligação antes mesmo que a irmã falasse novamente. Guardou o telefone no bolso, com dificuldade. Sua mão trêmula dificultou as coisas. Quis tocar no terno mais uma vez, sentir o tecido, mas seu braço não teve forças para se esticar. Confuso, levou a mão ao queixo. Pensou na possibilidade de a irmã ter se confundido, de ter entregue outro terno escuro para o pessoal da funerária. Aquelas coisas aconteciam, as emoções faziam merda com a cabeça da gente.
Convenceu-se disso e aproximou-se novamente do guarda roupas, um pouco mais aliviado, e agarrou na alça do cabide. Escutou alguma coisa chiar e olhou um pouco para baixo.
Enxergou que porções de terra caíra do escurecido paletó.

Soltou o terno na metade do caminho e ele balançou e voltou para dentro do guarda roupas. Ficou ali, sacudindo devagar. Um pouco mais de terra esfarelou-se no piso. Uma terra escura, ainda umedecida, pois chovia no dia do enterro do pai.
Alencar enfiou uma das mãos no bolso e agarrou no celular. Ligaria mais uma vez para a irmã, contaria que algo não parecia certo e que talvez, finalmente, a morte do pai começava a lhe afetar de alguma maneira.
No entanto, desistiu da ideia. Soltou o celular e sentou-se na cama. Ela rangeu e Alencar olhou assustado. Não se sentia tão acuado desde a infância, quando olhar debaixo da cama ainda era um desafio. Dali, encarou o guarda-roupa e seu interior. As portas abertas, uma escuridão predominante lá dentro. Mal se via o terno. Mas dava para sentir o seu cheiro, agora dava. Era o cheiro de seu pai, mas não de um pai sadio, sentado na poltrona favorita e apreciando sua cerveja gelada. Era um cheiro de terra molhada, de pântano, um odor que não deveria existir fora de uma cova.
Tentou (falhando terrivelmente) não pensar naquilo tudo enquanto dava um nó na boca do saco. Suas mãos tremiam e aquele nó não sairia, então Alencar o fechou no punho e o trouxe para cima do ombro. Deixou o quarto, mas não sem antes olhar para trás e ver a silhueta do terno, ainda se movendo, bem devagar, sendo soprada ou empurrada por uma brisa fantasmagórica. Ele deixou a velha casa minutos depois, dirigiu sem fazer nenhuma parada e só foi falar novamente sobre os pertences do pai na semana seguinte, em uma visita que fizera a sua irmã. Eles estavam conversando sobre o bazar que realizariam, enquanto a sobrinha de Alencar brincava com sua boneca ali a seu lado.
— Vai dar um bom dinheiro, — falava Letícia, ascendendo o cigarro em sua boca. Ela voltara com o hábito do fumo assim que o pai fora sepultado. Dizia que lhe acalmava. Alencar achava que tudo era apenas uma desculpa.
— Um pouco, sim. Alguns móveis que ele tinha já estão comidos por cupins, mas outros darão uma graninha.
— Conseguiu doar todas aquelas roupas?
Lembrou-se imediatamente do terno. O maldito terno.
— Ah! Sim. De uma só vez. Para um asilo que fica no caminho para o meu trabalho.
— Isso é ótimo. Ah! Se lembra daquele guarda roupas antigo que ele tinha?
Alencar não tinha como esquecê-lo. Era o lar da porra daquele terno.
— Sim. O que tem ele?
— O vendi antes mesmo do bazar iniciar. Um vizinho do papai o comprou.
Foi como se um peso saísse dos ombros de Alencar, e seu corpo aliviou-se naquele sofá, sentiu-o confortável pela primeira vez desde que se sentara ali naquela tarde.
— Nossa, isso é ótimo! Aquela coisa já estava me assombrando.
— Por quê? — disse Letícia, sorrindo depois.
— Modo de falar, — disfarçou Alencar.
— Consegui um bom preço por ele. E o comprador ainda levou um brinde.
— Brinde?
— Havia um terno dentro do guarda roupas, segundo o senhor Valdemar me disse ao telefone. Não dei muita importância, já que você me disse que ensacou todas as roupas e levou para doação. Sabe, o velhinho é um tanto biruta. Confundiu as coisas. Daí falei que podia ficar com o terno, caso quisesse.
— Duvido que queira, — falou Alencar, sentindo novamente aquela sensação desconfortável.
Pensou naquilo o resto da tarde e até na hora em que se deitou para dormir. Temeu que o sono viesse e o levasse para a terra dos sonhos e dos pesadelos, aqueles lugares que nos deixavam vulneráveis, incapazes de ter o controle das coisas. E pouco depois o cansaço lhe trouxe o sono, e o sono uma coisa com portas que se abriram e revelaram apenas uma silhueta.
Pesadelos não deveriam possuir cheiro. Muito menos vestir ternos.

22 de Agosto de 2020 às 18:20 0 Denunciar Insira Seguir história
4
Fim

Conheça o autor

Comente algo

Publique!
Nenhum comentário ainda. Seja o primeiro a dizer alguma coisa!
~