O segundo a chegar foi Peixes, tão distraído e completamente abismado com a arquitetura local, toda trabalhada em detalhes e surpreendentemente belo – apesar do calor que o fazia sentir como se tivesse sido empurrado para dentro de uma fornalha de pizzaria – que quase trombou com Áries, batendo o pé com irritação para um homem que segurava uma prancheta com ar aborrecido do tipo “odeio o meu emprego”.
– Como assim eu não tenho direito a um advogado? É claro que eu me recuso a entrar aí sem provas de que eu realmente mereça. O que é isso? Não imaginei que o inferno fosse tão mal gerenciado. Exijo falar com seu supervisor.
E cruzou os braços.
Peixes parou ao seu lado, decidindo de última hora entrar na onda de Áries para, quem sabe, se safar também. Se havia uma chance de conseguirem um advogado de defesa e poderem subir ao céu ao invés de ficar ali...
– Eu... hã, também gostaria de um advogado.
– Só pode ser brincadeira. – O homem, que era Virgem, resmungou e virou algumas folhas em sua prancheta – Recém-falecidos e essa ilusão da justiça, como se os deuses precisassem de algo tão humano. O Universo sabe bem o que fizeram e quem foram em vida, por isso estão aqui.
– Então o Universo é um intrometido fofoqueiro? – Áries levantou e dobrou as mangas de sua blusa até os cotovelos – Onde ele está? Quero ter uma conversinha com ele em particular.
– Não é preciso. Está tudo aqui. – Virgem indicou a prancheta, todo profissional. Ele já tinha lidado com aquele tipo de gente muitas vezes antes.
– Nesse papel A4? – Peixes arregalou seus olhos azul-piscina, surpreso.
– Você pediu por provas de que merece estar aqui Áries, bom, posso levantar algumas, como insultar religiões e crenças diferentes das suas, comentários maldosos em publicações do Facebook, intolerância com homossexuais, as incessantes brigas no trânsito, uma da qual você saiu do carro para bater boca com um motoboy e depois quebrou o braço dele...
– Foi um acidente. – Áries murmurou, franzindo o rosto – Eu só estava querendo usar uma tática do Krav Maga.
Virgem ergueu os olhos da prancheta por um minuto.
– Você não fazia aulas.
Áries deu de ombros.
– Eu vi algumas no YouTube.
Peixes tentou conter um risinho, mas não teve sucesso, o que lhe rendeu uma fria encarada de Áries, que o fez dar um passo para trás. Se Áries fosse tão ruim e maldoso quanto aquele olhar insinuava, ele com certeza tinha porquê estar ali.
– Se for por isso, tenho algumas pessoas para indicar. – Áries ergueu o queixo protuberante, falando com seriedade.
– Pode acreditar. – Virgem suspirou, voltando para a prancheta – Todos que merecem estar aqui, estão.
Áries notou um tom melancólico na voz dele, ou seria imaginação sua?
– Eu também? – Peixes arriscou, mordendo o lábio com nervosismo.
Virgem se absteve de responder, somente lhe estendeu a prancheta, após virar a folha. Peixes leu em silêncio, a cada linha suas bochechas ficando mais e mais vermelhas até ele devolver a prancheta para Virgem, envergonhado e cabisbaixo.
– Está bem. Onde é a entrada?
– Logo ali. Depois do Cérbero.
– Depois de quem? – Áries seguiu a direção que ele apontava e seu rosto ficou branco como um fantasma, o que era irônico na sua situação. Aquele era um cachorro tamanho Clifford de três cabeças?
Três?!
Virgem sorriu com certa satisfação pessoal.
– Não se preocupem, ele só morde mortais. E idiotas que tentam mexer com ele, de vez em quando. – Ele se dirigiu especialmente para Áries, na última fala. Então seu sorriso sumiu e ele gritou, para o grupo que começava a se juntar, atrás dos dois – Próximo!
– Não fui com a cara dele. – Áries disse, depois de terem passado de Virgem, em direção ao cachorro de três cabeças, alguns metros de distância – Só Deus sabe o que ele deve ter feito para receber um emprego no inferno. Sem trocadilhos.
– Pelo jeito ele também não gostou muito de você, não.
Peixes ainda estava se sentindo melancólico com o que havia lido na prancheta. Era tudo verdade, mas, ainda assim, ele não deixava de se sentir insultado, afinal, nunca agredira ninguém, nunca quebrara o braço de ninguém no trânsito... Ele só havia sido um pouquinho manipulador.
Mas, afinal, quem não era, certo? O que não fazemos pelas coisas que acreditamos e queremos?
O inferno devia estar mais cheio do que ele imaginara.
– Esse é o plano: entrar pela porta sem olhar na direção no cachorro. Vamos simplesmente entrar, já que merecemos estar aqui mesmo.
Peixes olhou para Áries com certo receio.
– E se não der certo?
– Você distrai o totó e eu corro pra dentro.
– Mas se eu ficar para distrair o Cérbero é possível que eu não consiga passar pela porta.
Áries olhou para Peixes como se estivesse lidando com uma criança.
– Você é tão ingênuo, o que pode ter feito para acabar aqui? Roubou o doce do amiguinho? Ficou acordado depois da hora e violou as regras da mamãe?
Peixes fechou a cara, percebendo a zombação arrogante. O surpreendia ter demorado a notar, visto que muitos haviam sido do mesmo jeito com ele durante sua vida, acreditando que sua docilidade aparente era uma fraqueza, quando na verdade era sua maior vantagem. Ninguém espera ser nocauteado por alguém assim. É o elemento surpresa.
– Eu tenho uma ideia melhor. Você poderia abraçar o rabo do cachorro e enquanto ele estiver ocupado com você, tentando engoli-lo e coisa e tal, eu passo tranquilamente pela porta. O que acha disso?
A súbita mudança de espírito de Peixes deixou Áries completamente perplexo. Ele definitivamente não estava esperando por isso. Contudo, ambos estavam no inferno, os dois tinham um histórico negro atrás das costas.
– Esquece o que eu disse – ele sorriu, enganchando o pescoço de Peixes com o braço – Você é um dos meus.
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