Adorava ficar sentada diante da janela, observando os dois correndo pelo jardim, um com uma toalha presa nas costas fingindo voar e o outro segurando uma réplica de revólver feita de madeira.
Assim eles passavam suas tardes após a escola, meus dois queridos, e hoje meu coração quase congela quando olho pela janela e vejo apenas um. Não apenas isso; toda essa casa suspira em segredo, pois, ela foi construída no tamanho ideal para eles. Existe um quarto onde até hoje estão as duas camas, uma mesa na cozinha com lugar para três e cada brinquedo possui uma réplica. Não há como viver aqui dentro sem perceber que falta alguma coisa. Ultimamente tem sido difícil, veias que transportam dor ao invés de sangue, mas Renan e eu estamos nos virando bem. Às vezes ele me pergunta, deitado em sua cama prestes a dormir, se o irmãozinho está protegido lá sobre as nuvens. Meus olhos embaçam nessas horas e eu digo que sim, tentando me manter firme, fazendo minha parte como mãe.
Depois que beijo sua testa e saio sem apagar a luz (Renan ainda não foi capaz de dormir com ela apagada desde que o irmão se fora), desço até o porão, devagar, mas ainda assim os degraus rangem. Ali encontro-me com Rene, deitado sobre uma velha cama de molas, com seu terninho preto e sua pele cada vez mais branca. Os braços dele estão dobrados sobre o peito, o cabelinho penteado e tudo que consigo pensar é em como ele parece estar apenas dormindo. Uma semana atrás ele estava lá encima, ao lado do irmão, ambos vestidos iguais e me pedindo para que lhe contasse uma história. Já no porão, tudo que posso fazer é olhar para ele, ver como seu corpinho está e lhe fazer estranhas promessas.
Ali naquela casa que agora era grande demais, vivíamos de certa forma bem, sem olhares próximos (outra grande vantagem de se viver entre as colinas) e uma vez por semana eu precisava ir até à cidade abastecer a despensa. Nessas viagens, levava Renan comigo. Não podia deixá-lo sozinho com apenas seis anos, e também não queria que ele sorrateiramente entrasse no porão.
Não demorava para que alguém, fã ou velho amigo, me parasse dentro do mercado e perguntasse sobre Rene. Costumava dizer que ele estava na casa dos avós, de férias escolares, e quando insistiam sobre o porquê do irmão não ter ido junto, desviava o assunto e logo a conversa ganhava outro rumo. Nisso, falava sobre meus shows e de antigas participações em programas de TV.
Ali, naquele pedaço de mundo, eu era quase uma celebridade; as pessoas lembravam de mim graças as minhas visitas a alguns programas televisivos, onde fazia números de hipnose com a plateia (pura atuação), e falava sobre meus métodos hipnóticos — tudo verdade.
Chegava em casa uma hora e meia depois, pedia para Renan me ajudar com as sacolas e assim que ele era liberado para brincar, fazia minha caminhada difícil até o porão.
Lá, limpava as mãos e o rostinho de Rene. Ele ainda não estava cheirando, mas por vezes era necessário espantar alguma mosca. O fazia com certa raiva; não queria nenhum inseto asqueroso sobrevoando o meu pequeno. Então, escutava os passos de Renan pela casa e subia depressa, não sem antes me despedir com um beijinho em sua testa. Meus lábios sentiam sua pele fria. Começava a desconfiar que o tempo estava indo depressa demais, e que logo deveria fazer… Aquilo.
Olhar para Renan me deixava confusa. Isso porque Rene estava no porão, sem vida, mas com o mesmo rosto que o irmão. Eles eram gêmeos idênticos, e por vezes até me perguntava qual dos dois havia de fato contraído pneumonia e partido. Fazia frio naquela tarde e estávamos em julho, os três dentro de um porão não tão escuro, eu sentada diante de meus meninos, que agora estavam deitados um ao lado do outro. Renan não sentiu medo como achei que sentiria; ele apenas apontou para o irmão e depois olhou para mim, sorrindo.
— É o mano! — festejou ele, e não nego que meu coração deu um nó.
— Sim. É ele sim.
Coloquei-o ao lado de Rene e pedi que não se movesse. Era importante que ele não se distraísse.
Observando os dois, meu peito começou a pesar. Estavam lindos daquela forma, como sempre foram, desde quando os vi no berçário até quando nos mudamos para estas colinas. Pedi então para Renan fechar os olhos. Ele fechou e de repente sorriu.
— O quê foi, filho?
— O mano está espiando, não é?
Arrepiei-me e quando me dei conta, olhava para Rene, certificando-me de que os olhos dele também estavam fechados. É claro que estavam.
— Não, filho, ele não vai espiar. Agora fique quietinho.
Ele obedeceu. Permaneceu ao lado do irmão, imóvel, como se estivesse dormindo. Nisso, pedi que escutasse apenas a minha voz. Praticamente sussurrei para ele. Falava exatamente como nas vezes em que lhes contei histórias para dormir, baixinho, na entonação perfeita, apenas suavemente, o desespero de uma mãe sendo contido o máximo que podia.
— E quando acordar, você será ele… — falei, contando regressivamente do dez ao um logo em seguida.
Ao final, estalei os dedos. Renan abriu os olhos devagar, e ansiosamente aguardei que ele olhasse para mim, pois só assim saberia que havia funcionado. As mães sempre reconhecem o olhar dos filhos.
Enquanto aguardava, notei que meus dois queridos estavam com os olhos abertos.
Com o susto, saltei da cadeira. Continuei olhando para os dois, mas apenas Renan devolvia o olhar.
Rene seguia impassível, os olhos estáticos encarando o teto. Imaginei que aquilo possuía um motivo; aqueles olhos não deveriam jamais se abrir depois de mortos. Estiquei o braço e trouxe Renan para perto de mim. Notei que ele parecia mais leve, um tanto sonolento. Fiquei por um tempo encarando Rene, que após um instante de confusão existencial, conseguiu finalmente virar o rosto para mim. O fez lentamente, e baixinho escutei seus ossos estalarem. Senti que uma lágrima escorreu-me pela bochecha, e abraçado a mim, agora Renan também percebera que o irmão estava (meu bom Deus!) Vivo.
— Mano, acordado, — resmungou Renan, apontando na direção da cama.
— É! Está sim, filho. Está, sim.
Ainda confusa, permiti que Renan corresse e abraçasse seu irmão recém vindo dos mortos.
O transe (como eu bem sabia) tinha rápida duração. Quando eu fazia com que alguém comesse uma cebola achando que era uma maçã, tinha ciência de que aquilo acabaria em algum momento, fosse por meu comando ou por completa exaustão do indivíduo. O transe é constituído por uma linha fina demais, uma teia de aranha ligando o sujeito ao seu subconsciente.
Por tanto, não fiquei surpresa quando Renan pareceu despertar um pouco mais e Rene fechou os olhos, deixando-os como deveriam estar. Subimos até a cozinha e prometi lhe preparar um achocolatado.
Renan perguntou-me se o irmão não iria vir junto, e sem muito o que dizer, falei o que ocorreu-me no momento:
— Ele está muito cansado, filho.
— E gelado, também — me disse ele, o que causo-me um arrepio.
Enquanto ele bebia seu chocolate quente, pensava no que deveria ter ocorrido; minha experiência no ramo suspeitava que, por serem gêmeos, ambos sempre possuíram uma ligação fora do comum, o que talvez tenha ocasionado tal fato perturbador. Mas, minha experiência como mãe, dizia apenas que um ainda precisava do outro, assim como eu necessitava dos dois.
Convencida o suficiente, passei a imaginar como as coisas seriam após aquele fato.
Duas sessões mais tarde, Rene ainda seguia deitado. Ele podia abrir os olhos, virar um pouco a cabeça, olhar dentro de meus olhos esperançosos e apenas isso. Às vezes, sentia que ele queria dizer alguma coisa; seus lábios roxos mexiam um pouco, mas nada saía dali exceto um cheiro ruim. Aquilo fazia com que o irmão se queixasse e abanasse diante do rosto.
Com o tempo (e outras três sessões depois), tive a ideia de colocá-lo sentado na beirada da cama. O barulho que os ossos dele fizeram agoniou-me por horas. Rene permaneceu sentado e imóvel, percorrendo o olhar em volta. Dava para notar que estava familiarizado com o lugar, ou até com medo, assim como o tinha antes da pneumonia agir. O porão sempre fora um lugar de lendas, e sempre o deixei trancado a chave nos dias em que os dois corriam pela casa. Tentando deixá-lo mais tranquilo, fiz com que o irmão sentasse ao lado dele.
— Mas ele está cheirando mal, — retrucou.
— Vá! Cuide de seu irmão.
Com relutância, ele foi. Sentou-se um pouco afastado e preferiu não olhar para o irmão. Bocejou e mexeu nos olhos. Estava cansado, certamente. Dividir a alma em duas era uma tarefa e tanto.
Por minutos, observei os dois ali, lado a lado, como jamais deveria deixar de ser. Logo eu os veria como antes, ativos, felizes por estarem juntos, e talvez até poderíamos sair e fazer compras. Já estava agoniada de vê-los vestidos de forma diferente. Também não estava gostando do crescimento de Renan; ele estava quase um dedo de altura maior. Não era certo. Gêmeos precisam ser iguais.
Sentei-me no meio dos dois e os abracei. Não senti o calor que pensei que sentiria, mas tudo estava bem. Logo daria certo.
— Vocês não fazem ideia de como amo vocês, meus meninos — falei, acariciando-os nos ombros.
Uma mosca tentou pousar na testa de Rene e a afastei com um tapa no ar. Começava a me irritar com aqueles insetos. Por vezes eles sobrevoavam o meu menino, tão indefeso que nada podia fazer.
Naquela noite, depois do jantar, convenci Renan a dormimos os três juntos no porão.
Fiz a mudança no dia seguinte. Em poucas horas, todas as coisas do quarto haviam sido colocadas no porão, exceto o guarda-roupas que era enorme e pesado demais.
Enquanto fazíamos isso, reparei que Renan se cansava muito depressa. Ele suava e respirava pela boca, queixando-se de dores pelo corpo. Supus que aquilo tinha a ver com suas viagens subconscientes; neste plano, a mente viaja distâncias inimagináveis.
Mas, era algo necessário. Ele precisava do irmão, e eu de ambos, como deve saber. Dei-lhe algumas horas de descanso, e poucos minutos depois o encontrei dormindo no sofá, em posição fetal. O cobri com um cobertor e não ver o irmão ali com ele me causou desconforto. Desci até o porão e por um instante me peguei pensando em dar de cara com Rene, sentado e sorrindo para mim, dizendo “olá, mamãe, me dê um abraço” e em seguida correndo na minha direção.
Essa sensação logo desapareceu assim que cheguei na metade da escada e senti aquele cheiro. Não estava me incomodando até então, mas, naquele momento minhas narinas arderam. Corri até a cama e afastei todas aquelas moscas. Utilizei um pano de prato como reforço.
— Xô! Deixem meu garotinho em paz! — e elas voavam, mas não iam muito longe. Segundos depois pousavam sobre o rostinho dele, enormes, esverdeadas, zunindo como abelhas.
Lembrei-me então do mosqueteiro que havia ganhado em minha festa de casamento, anos antes. Aquilo deveria servir. Iria instalá-lo prontamente, antes que mais larvas começassem a sair pelo narizinho do meu menino.
Dormimos bem aquela noite. Deixei que Renan ficasse sozinho, em sua cama a nosso lado. Ele insistiu que não suportava o cheiro que vinha do irmão, e que tinha medo dos bichinhos que caíam da dentro dele.
Reprovei aquela atitude, e por isso ele ficou sem sobremesa. Abracei-me em Rene e senti, pela primeira vez, que o estava protegendo de verdade. Não estava me enganando, ou a ele, assim como fiz da última vez logo após deixarmos o consultório médico, quando ignorei completamente o diagnóstico e insisti que aquilo não era uma pneumonia grave, mas sim, o início de uma forte gripe. Não. Jamais cometeria aquele erro outra vez. Que tipo de mãe eu seria se o fizesse?
As sessões seguiram durante todos os dias, na parte da tarde, mesmo com a má vontade de Renan.
Ele cruzava os braços, fazia bico, e por fim, sem mais armas, dizia que não suportava mais a dor. Sentava-me diante dele, acariciava seus joelhos e pedia com todo meu carinho, e depois, sorrindo, lhe permitia saborear todas as balas que quisesse. Renan ainda relutava, mas durante a tarde, lá estávamos nós, no porão, como tinha de ser. Eu falando devagar, suave, e Renan deitado ao lado do irmão, tapando o nariz com os dedos.
Naquele dia em especial, chovia lá fora. O barulho era menor ali no porão, mas ainda assim dava para escutar os pingos da chuva chapinhando no telhado e na calha. Sem dúvida era mais uma ajuda na sessão; creio que Deus quis que acontecesse, foi quase como enviar um sinal, uma luz indicando que eu devia continuar. E continuei. Pude ver que Rene abriu o olho (o outro havia vazado e deixado apenas um buraco escuro), e este único olho procurou e me achou. Vi que ele brilhou, e tive certeza que ele iria me chamar. Cheguei a aproximar o rosto. Nada aconteceu.
Limpei o rostinho dele com um lenço, e este saiu borrado e com pedaços de pele.
— Oi! Meu menino.
A resposta dele foi piscar o olho, bem devagar. Senti meu coração se encher de alegria (uma piscada fora uma avanço) e decidi colocá-lo sentado mais uma vez. Renan seguia um pouco afastado, ainda cansado, ainda querendo desistir daquilo, agindo como um egoísta, algo que nunca lhe ensinei.
Na beirada da cama estiquei os braços e falei para Rene:
— Venha, filho. Eu ajudo você.
Um de seus braços (o esquerdo) tremeu minimamente. Foi como se recebesse uma pequena onda de choque. Meu coração disparou e eu insisti, mas só então reparei que ele não poderia fazer aquilo; seu ombro havia desaparecido por debaixo do terninho preto.
Cuidadosamente o deitei outra vez e lhe cantei uma canção, enquanto alisava sua testa que já estava em carne viva. Minutos depois, seu olho se fechou e tive lembranças de outras épocas, todas boas e sem aqueles malditos insetos.
Fechei o mosqueteiro, virei-me e notei que Renan estava caído na cadeira.
A cabeça dele estava pendida. Não havia pulso. Agarrei-me em seu corpo ainda quente e o chacoalhei.
— Acorda! — gritei. — Precisa do seu irmão. Ele precisa de você. Eu preciso de vocês!
O sacudi inutilmente por mais algumas vezes, chorei agarrada em suas pernas até que finalmente desisti. Peguei-o no colo e o deitei ao lado do irmão. Estavam unidos mais uma vez, embora ninguém que visse aquilo diria que os dois eram gêmeos. Não sabia se ainda estava chovendo, e o silêncio ali no porão me causou angústia, uma solidão que nunca havia experimentado. Passei então a dormir todas as noites ali embaixo, com meus meninos, como rigorosamente tem de ser. Estou aperfeiçoando minha técnica, tenho praticado, e posso garantir que a auto hipnose de fato funciona, algo que realmente me surpreendeu. Procuro deitar no meio dos dois, relaxar, pensar em nada além da minha concentração, esvaziar a mente e fechar os olhos. Está tudo bem aqui entre as colinas. Estamos todos bem. Os três. É disso que estou convencida. Então começo a contar regressivamente do dez até um.
Obrigado pela leitura!
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