dissecando Edison Oliveira

Sem aguentar mais a misteriosa doença da mulher, um homem opta pela separação. Narrado em primeira pessoa, veja o que este homem testemunhou para levá-lo a tal decisão. Sinistro resumiria bem o que vem por aí.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.
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DIANA



Enquanto terminava de arrumar minha segunda mala (o que me surpreendeu, já que para mim, uma mala seria o suficiente), Diana me perguntava o porquê daquela decisão repentina.
O que ela não sabia — mas provavelmente duvidava, — era que minha decisão de deixá-la não fora decidida na noite anterior, quando acordamos no meio da madrugada após mais um de seus ataques. Vinha nutrindo aquela expectativa há quase dois meses, mas o que me fez não partir a mais tempo não foi indecisão, mas simplesmente pena. Diana morreria sem mim. Ela não conseguiria sobreviver sem outra pessoa ao lado, controlando seus antibióticos e limpando toda sua sujeira. Não me refiro especificamente a merda e urina, mas também ao resto; Diana troca de pele assim como as cobras, e quando algo não lhe cai bem no estômago, ela vomita e come mais tarde.
Este caos entorno de sua doença começou a me afetar de alguma maneira, não apenas psicologicamente como também de um jeito físico, com dores angustiantes na cabeça e suor continuo na região das axilas. Creio que o que Diana possui seja algo contagioso, embora médico algum tenha mencionado coisa do tipo, mas, nem o que ela tem eles sabem dizer. Minha segunda mala ficou pronta rapidamente e a deixei aberta sobre a cama, ao lado da outra. Olhei ligeiramente ao redor, constatei que não havia deixado nada para trás e então a fechei. Diana me perguntou pela quarta vez naquela manhã se eu estava mesmo disposto a ir, e após refletir momentaneamente, disse que não havia outro jeito.
— Sabe que vou morrer se me deixar, não sabe? — disse ela, mas não parecia triste.
— Eu sei.
— E ainda assim quer mesmo fazer isso?
— Quero, — disse secamente, retirando às duas malas de cima da cama de onde Diana seguia deitada.
Ela já não levantava há uns quatro dias, pois seu corpo estava fraco e não posso negar que aquilo me deixava satisfeito. Em segredo, torci durante inúmeras noites para um dia acordar e vê-la morta ao entrar em seu quarto. Já estava dormindo no sofá nas últimas semanas, precavido, com nojo do que Diana havia se tornado. Cheguei a pensar que, se tivesse um pouco mais de paciência, poderia continuar vivendo com ela até que finalmente acontecesse. Fantasiei com Diana afogando-se com o próprio vômito, debatendo-se na cama e chutando os lençóis, ou até com ela partindo para o suicídio após meses de sofrimento e agonia. Até cheguei a deixar uma faca de lâmina afiada ao alcance de suas mãos.
Agarrei uma mala com cada mão e tentei dizer algumas palavras (foram cinco anos de um bom casamento, afinal), mas não consegui. Então percebi que só não estava conseguindo porque olhava para Diana; olhar para ela me deixava confuso, com medo da própria existência. Desviei o olhar para as paredes e disse:
— Já aluguei um quarto em um hotel próximo do trabalho. O aluguel aqui vence em dois dias. Não irei pagar.
— Pode ao menos me entregar um pouco de água? Estou com muita sede. Toda vez que troco minha…
Sai e fui buscar a água. Detesto quando Diana começa a falar em detalhes. Ela tinha adquirido esse hábito desde o início da doença, quando ambos pensávamos que tudo não passava de uma gripe forte ou até mesmo uma provável gravidez. Os sintomas foram confusos, e lembro com pesar até os dias de hoje da vez em que seus seios desapareceram, deixando seu peito reto como o peitoral de um homem.
Retornei com o copo de água e estiquei o braço para entregá-lo; evitava maior proximidade sempre que possível. Diana pegou-o devagar, a mão enrugada e trêmula. O copo agitou-se e a água saltou para todos os lados. Com pena (algo que se tornara o único sentimento meu para ela), peguei novamente o copo e disse que a ajudaria a beber. Ela agradeceu e se desculpou.
A água escorreu pelos cantos de sua boca e começou a pingar de seu queixo, fazendo com que lembranças agradáveis do dia em que nos casamos viessem a tona. A imagem com nossos braços entrelaçados, segurando as taças de champanhe, um dando de beber para o outro, e agora aquilo, uma mulher que não lembrava em nada a Diana que havia paquerado, namorado e casado. A repulsa me fez afastar o copo quase vazio, com pouca água e alguns dentes em seu interior. Eles boiavam ali dentro como pedrinhas em um pequeno lago.
— Vão nascer outros, você sabe — disse ela, sorrindo e mostrando-me suas frestas recém adquiridas.
Sabia que eram temporárias, mas jamais me acostumaria com aquilo. Diana perdia os dentes o tempo todo, os cuspia como milhos de pipoca pelo quarto inteiro, e no dia seguinte, outros cresciam no lugar daqueles. Sempre que ocorria, pedia com o máximo de educação possível para que ela não sorrisse para mim.
— Preciso ir, — falei, agarrando as malas e começando a andar. Quando estava atravessando o batente da porta e pondo um dos pés no corredor, escutei Diana me chamar. Era um chamado que vinha me enlouquecendo, me trazendo pesadelos durante as noites, algo que ecoava na minha cabeça por horas a fio.
Virei-me e perguntei o que ela queria.
— Nosso casamento foi bom, Rafael?
Antes da doença, foi muito bom, e Diana sabia de meu sentimento em relação a ele. Mas naquele instante (onde tudo que queria era partir e deixar aquela vida para trás), disse apenas o necessário.
— Foi.
Dei as costas e esperei escutar alguma proposta inútil para que não fosse embora, algum choramingo ou até um grito, mas tudo que ouvi foram os meus sapatos ecoando no piso.
Entrei em meu carro, girei a chave e em momento algum olhei pelo retrovisor. Procurei não pensar em nada que se relacionasse com Diana, mas falhei terrivelmente. Não conseguia parar de imaginá-la ficando cada vez mais fraca, com dores nos músculos desintegrados e tentando gritar por socorro e não conseguindo. Talvez ela até engolisse os próprios dentes e aquilo a afogasse. Eram inúmeras as possibilidades, e sentia vergonha de mim mesmo por orquestrar mentalmente cada uma delas. Então, dias depois em meu quarto de hotel, peguei-me pensando se Diana ainda estaria viva; com que ela teria sonhado, se já ocorrera se alimentar das próprias fezes. De fato não é fácil deixar uma vida para trás. Ou duas. Meu psicólogo costuma dizer durante as sessões semanais que o divórcio nunca significa exatamente uma separação, já que uma vez que você jura diante de Deus que irá amar uma pessoa na saúde e na doença, você faz uma promessa e não um simples acordo verbal. Nessas horas eu digo que ele tem razão, e que a separação de bens nem sempre é feita de maneira justa, embora existam exceções que se os homens não acham corretas, Deus deva concordar. Meu psicólogo sorri e diz que eu devo ter razão, então eu cuspo alguns dentes e me despeço.

18 de Julho de 2020 às 18:13 1 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Eduardo Miranda Eduardo Miranda
Olá Edison Oliveira, tudo bem? Faço parte do sistema de verificação e venho lhe parabenizar pela verificação da sua história. Que agonia, o que será que Diana é? Ou tinha? O texto mostra cena agoniante de uma moribunda e um Rafael esgotado, de tanto se dedicar acabou chegando ao seu limite tentando se livrar daquilo que se transformara em um castigo existencial para ambos. Seria ele a aberração? Incapaz de cuidar de seu amor até o fim? Um conflito emocional que me envolveu, senti a amargor dele e a tristeza dela, um pesadelo que dá a certeza que não haverá um final feliz ou sensato. E assim foi, um final que deixa claro, seja lá o que for, agora ele também tem. Impossível não me lembrar de um clássico do cinema trash, A MOSCA. Edison, como sempre mais um texto forte de mexe com as emoções e tira o leitor da zona de conforto fazendo-o refletir em sentimentos obscuros.
October 19, 2020, 03:39
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