sandranaua Sandra Braz

Algumas taças de vinho e uma farta dose de reflexões acerca da impermanência que a tudo e todos ronda.


Conto Todo o público.

#vinho #impermanencia #existencia
Conto
0
2.9mil VISUALIZAÇÕES
Completa
tempo de leitura
AA Compartilhar

...

Ela despejou o último conteúdo da garrafa de vinho na taça. Uma taça de cristal que, de tanto desejar, um dia tomou coragem e retirou da prateleira da loja justificando a aquisição como um mérito pessoal. O vinho era de origem sul-africana, descrito como rico, aveludado e estiloso e tinha ar imponente, embora fosse de baixo custo. Quando uma bebida vem de uma terra distante normalmente nos inclina a pensar que é mais rara e, por que não, mais saborosa? De fato, goza certo prestígio. Talvez pela aventura do deslocamento, talvez pelo nascimento numa cultura diversa. Uma mulher, uma taça soberba e uma garrafa de vinho de feições aristocráticas. Ela pôs a garrafa sobre a pia enquanto mentalmente combinou de jogá-la no lixo mais tarde. Um recipiente e uma bebida estrangeiros que percorreram um extenso itinerário e exigiram a disposição do sol, da terra, do clima e de tantas mãos e rostos ignorados vão ter o mesmo destino final: o lixo. O da rua e o do esgoto. Detida por essa reflexão (re)observou que tudo, acessível ou não pelos dedos, contatado pela retina, palatável e etc.cessa como uma vela que se consome. Parte desse tudo, no máximo se transforma recebendo outras identidades que também se extinguirão. Cedo ou tarde tudo rui. “Essa finitude de tudo é tão melancólica”, concluiu. Até as sonatas de Beethoven um dia, por alguma razão, perecerão. A fascinante Monalisa, o majestoso edifício Burj Khalifa, coroas e pompas reais, o discurso dos tolos de togas e gravatas, o amor validado em tatuagem, o ronronar da gata de olhos melados que dorme no tapete da cozinha, o audacioso rato que roeu a roupa do rei! O próprio ego quando a existência esgotar. Essa lei universal não salvaguarda nem o belo nem o feio, nem o miúdo nem o colossal, nem a pluma nem a rocha. Muito menos a alegria ou a dor. Caracteriza-se por essa indiferença absoluta sobre os objetos independente das qualidades agregadas. As filosofias estoica e orientais aludem vigorosamente a impermanência e a ilusão do apego que faz com que demos às coisas e emoções uma película falsamente duradoura que nos conduzirá, inevitavelmente, ao lodo do sofrimento. A sugestão dada pelos sábios é dançar na liquidez da vida libertando-se de toda a solidez que nada contém. Ela finaliza o último gole da taça, dirige-se a adega e escolhe um rótulo francês. Cepa Carménère. “A antipática a um tanto de bebedores de vinho”, ocorre-lhe enquanto retira a rolha com a destreza que revela um inventário de botelhas manipuladas. “Quantas uvas cabem numa garrafa? Quanta sobriedade cobra uma farta taça?” Indagações desimportantes para serem submetidas à investigação científica. Ela acha elegante o design do frasco oriundo do país de Bonaparte e da Carla Bruni*, característica simpática que não o salvará do despejo. C’est la vie.


O título é a tradução de trecho da música Liberté da Carla Bruni que em francês é "Elle a regardé l'existence".

*A cantora nasceu na Itália, mas foi criada e reside na França, sendo

considerada franco-italiana.

29 de Junho de 2020 às 13:24 0 Denunciar Insira Seguir história
0
Fim

Conheça o autor

Comente algo

Publique!
Nenhum comentário ainda. Seja o primeiro a dizer alguma coisa!
~