luccafroes Lucca de Felice

Voltando para a cidade natal depois de anos no interior, dois irmãos muito diferentes entre si podem descobrir na viagem a chance de finalmente se entenderem.


Conto Todo o público.

#irmãos #conto #viagem #crônica
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Mil e Trezentos

O dia ainda não havia nascido. Em meio a um silêncio quase sepulcral, Mariano fechou a porta de casa atrás de si e andou pelo jardim descuidado até o Fusca estacionado na rua. Abriu a porta, e, num gesto descuidado, atirou no banco de trás a pesada mochila que carregava consigo, entrando no carro em seguida.

Ao tomar o lugar ao volante, lembrou-se de dar uma "bombada" no acelerador antes de ligar o carro. Em seguida, pisou na embreagem e girou a chave. O carro engasgou uma, duas, três vezes, mas, em seguida, o ronco do cansado motor Volkswagen se fez ouvir, rasgando o véu de silêncio da madrugada. Mariano deu umas duas aceleradas para esquentar, e, satisfeito, desceu do carro, mantendo o motor ligado, e voltou até a casa.

— Josué! — disse à porta. — Vamos embora. O carro já está ligado.

— Eu ouvi — respondeu uma voz.

Depois de trinta ou quarenta segundos, apareceu Josué, carregando sua própria mochila.

— Tudo certo? Pegou o café? — inquiriu Mariano, enquanto trancava a porta.

— Mas com certeza.

Entraram no Fusca em silêncio. Mariano soltou o freio de mão e pôs o carro em movimento, olhando o surrado relógio de pulso rapidamente.

— Que horas são? — perguntou Josué, enquanto sacava da mochila uma garrafa térmica.

— Cinco e dez. Estamos em tempo. Bota um café aí pra mim.

Enquanto o carro deixava para trás a rua de casas idênticas, Josué colocava, desajeitadamente, café numa caneca plástica, para em seguida servir Mariano.

— Café é vida, bicho — disse, ao sorver, com satisfação, o primeiro gole. — É bom que deixa a gente alerta.

Josué aquiesceu, servindo café para si próprio também. Não estava muito afeito a palavras. Decerto havia concordado em voltar a Salvador, ainda mais depois de tanto tempo sem ver a terra natal, mas não seria uma viagem fácil, ou uma chegada fácil. Abandonar o interior também lhe custava algo no coração — e rever certos lugares e pessoas na capital talvez mexesse com velhas feridas.

Mariano guardou silêncio por alguns minutos, enquanto transitavam pelas ruas desertas da cidadezinha. Sabia como estava sendo difícil para Josué. Mariano era mais desapegado, "cidadão do mundo", como gostava de dizer; havia morado em vários lugares, nunca guardara objetos, limitando-se a meia dúzia de livros, o mínimo de roupas, e, claro, o bendito Fusca, que a tantos lugares o levara. Mas Josué, seu irmão mais novo, era diferente. Apegava-se a moradas, pessoas, objetos. Sair de Salvador lhe fora muito custoso, e deixar a cidadezinha também seria.

Por fim, o Fusca chegou ao limiar da rodovia. Mariano reduziu a velocidade na rotatória que saía da cidade, e, ao ver a estrada totalmente vazia, acelerou com gosto, passando a terceira marcha, e, após uma boa esticada, também a quarta. O intrépido motor de 38 cavalos roncava à toda, o que, para Mariano, era música, mas que para Josué não seria muito melhor do que o ruído de uma furadeira.

— Olha bem pra cidade, Josué. Não sabemos quando vamos vir de novo — alertou Mariano.

Josué olhou pela janela, aproveitando que a rodovia se elevava naquele trecho, permitindo que se visse boa parte da cidade. Não havia nada de mais: casinhas, comércios, árvores, como quase todo interior. Mas para Josué, fora um lar, um local de trabalho e a moradia de vários amigos que lá ficavam.

Após mirar a cidade enquanto pôde, Josué voltou o olhar para a frente, percebendo a luz surgindo no horizonte.

— Falou com minha tia? — perguntou apenas.

— Sim, liguei para ela ontem à noite. Ela tem duas chaves reserva, não temos pressa de devolver a que ficou com a gente. — pausa. — Agradeci também a gentileza. Ela cobrou bem barato pelo aluguel.

— Verdade. Pelo menos, nesse período, consegui economizar uma grana.

Silêncio.

— Pra que é que você guarda dinheiro? — perguntou Mariano, com tom neutro.

— Ora, como, pra quê? — Josué estava surpreso. — Pra guardar, ué. Porque posso precisar, ficar sem emprego, ou ter uma emergência... Você não guarda?

— Guardo — respondeu o outro, os olhos fixos na estrada. — Mas eu guardo pensando sempre em algo específico. Consertar alguma coisa no carro, viajar, trocar de óculos, sei lá. Quer dizer, não muda muito, mas o que eu estou tentando expressar é que, quando eu boto um qualquer na poupança, imagino o que vou fazer com aquilo. Você parece que não. Que só guarda e pronto.

— Eu só guardo e pronto — disse Josué apenas. — Não vejo qual é o problema.

— Não é problema.

Novamente, silêncio, exceto pelo forte ruído do motor.

— Por que você mantém esse carro? — inquiriu Josué de repente, levando Mariano a torcer os lábios. Pronto, pensou. Ele não gostou da pergunta sobre dinheiro e agora quer devolver.

— Preferiria que eu não tivesse carro nenhum?

— Perguntei o porquê desse carro.

— Qual é o problema com esse carro? — Mariano, mais velho (e pretensamente mais sábio) que era, procurava manter a paciência. Nada pior do que uma briga durante uma viagem.

— É velho, quebra muito, é fraco, barulhento pra caramba, não tem espaço nenhum...

— Veja, eu não tenho dinheiro pra muito mais do que isso — disse Mariano, olhando rapidamente para Josué e voltando a atenção para a estrada. — E não compensa ter um usado mais novo. A dor de cabeça sempre vem e a manutenção com certeza vai ser mais cara do que a desse aqui. Além do mais, eu gosto de carros, e quem realmente gosta de carro, gosta de Fusca.

Josué riu, olhando para o irmão em seguida.

— Mas é claro — prosseguiu Mariano, batendo amigavelmente no volante. — Isso aqui é uma maravilha da engenharia. Era barato de construir, portanto barato para comprar. Motor resfriado a ar, supersimples de consertar... O Fusca tá na história da indústria automotiva mundial pra sempre.

Josué aquiesceu sorrindo, sem levar muito a conversa adiante. Não queria provocar o irmão demais, principalmente num assunto tão delicado. Mas não entendia como alguém tão desapegado podia passar tanto tempo com um carro velho como aquele.

Ao mesmo tempo, Mariano, satisfeito por não ter continuado o papo, pensava em como o irmão não o entendia e gostava de o provocar gratuitamente. Mas também eu não o entendo, pensou em seguida. Achava que estavam sempre num eterno ruído de comunicação.

O silêncio verbal permaneceu. Com o dia finalmente clareando, Mariano desligou os faróis do carro. Olhou pela janela em direção ao nascente, vendo o sol forçar passagem através das copas das árvores distantes.

— Que momento você acha que é o nascer do sol? — perguntou.

— Hein? Como assim?

Mariano suspirou. Josué nunca entendia direito suas divagações, não de primeira, pelo menos.

— Qual o momento exato em que o sol nasce? Quando ele começa a aparecer? Ou quando ele termina de aparecer por completo? E se o horizonte estiver repleto de prédios, muda alguma coisa?

Josué pensou por um instante.

— Poxa, não sei. Mas o nascer do dia, ou do sol, tem que ter um momento exato?

— Não sei, me diga você.

— Pra mim não.

Como nenhum dos dois achou maneira de continuar o assunto, ambos voltaram a ficar em silêncio. Depois de dez ou quinze minutos, Mariano falou, mas apenas para pedir café, que foi servido sem palavra.

Apenas depois de mais dez ou quinze minutos que o silêncio foi quebrado — desta vez, por Josué, para a surpresa de Mariano.

— Ansioso para chegar em Salvador? — perguntou.

— Bom... Sim — respondeu o irmão, procurando palavras para que a conversa rendesse sem mal-entendidos. — Eu prefiro morar em Salvador do que no interior. Ainda mais agora, com essa oferta de trabalho.

Josué aquiesceu.

— Verdade. Mas não tem nada lá que você preferiria deixar "guardado" mais um tempo?

Mariano pensou por um instante.

— Tem. — olhou para o irmão. — Mas você também tem, talvez até mais do que eu, e, no entanto, estava mais animado para voltar do que eu — finalizou com um risinho.

Josué deu de ombros e percebeu que não tinha o que responder.

As conversas entre Mariano e Josué, muitas vezes, eram assim. Começavam do nada, morriam do nada. Os dois se gostavam muito, e sabiam disso, mas tratar de qualquer assunto era uma missão por vezes complicada.

— Você não acha que a gente tem um problema, sei lá, de compreensão mútua?

Josué pensou em responder "hein?", mas, um instante antes de verbalizar, percebeu que sera irônico demonstrar não ter entendido uma pergunta que era justamente sobre compreensão. Segurou a língua e pensou por um momento.

— Acho que sim — respondeu finalmente. — Não sei, acho que eu não entendo suas inspirações, seus interesses. Você também não me entende. Meio que existe um abismo em qualquer assunto.

— Concordamos nisso, pelo menos — Mariano riu, ainda que estivesse com os olhos fixos na estrada. — Também no fato de que existem alguns fantasmas em Salvador que seria melhor não confrontar agora.

— Também no fato de que preferimos fazer esse confronto do que ficar no interior — arrematou Josué.

— Verdade.

Com essa concordância mútua, ambos ficaram satisfeitos, e o silêncio voltou a reinar. Desta vez, talvez pelo alívio e satisfação dos irmãos, o silêncio durou mais ainda. Josué, por fim, voltou a falar, um pouco mais animado:

— Esse Fusca é o quê, mil e trezentos?

Mariano parou por um instante, perplexo. Josué demonstrando interesse no carro? Só podia estar querendo agradá-lo.

— Cilindradas, você diz? Sim, mil e trezentas. Se disser trezentos, vou ficar achando que você está falando do valor — riram. — Não vale tão pouco assim. Mas, pois é, são mil e trezentas cilindradas. O Fusca clássico.

— Se você tivesse uma boa grana, trocaria de carro?

— Talvez. Não sei — respondeu Mariano de imediato, sem se preocupar em dar uma resposta definitiva.

— Se trocasse, estaria feliz por ter um carro melhor, mas triste por se desfazer do Fusca, imagino?

— Com certeza.

— Meu retorno para Salvador é exatamente assim — prosseguiu Josué, olhando perdidamente para a paisagem, recebendo pela janela o vento gelado da manhã ainda não totalmente formada. — Eu comemoro voltar, mas também lamento. Não sei, velho. Não sei. Gostaria de ir e ficar. Ao mesmo tempo.

Mariano deixou o silêncio permanecer por um minuto.

— Sei como é — disse enfim, olhando encorajadoramente para o irmão no exato instante em que Josué voltava o olhar para dentro do carro. — Sei exatamente como é.

Josué calou-se, os pensamentos a mil, mas satisfeito por ter sido compreendido. Ao seu lado, Mariano deixou a conversa morrer, aliviado por ter conseguido demonstrar alguma compreensão.

"Acho que nos entendemos, afinal", pensaram ambos, ao mesmo tempo, em meio ao ruído constante do barulhento motor de mil e trezentas cilindradas.

19 de Junho de 2020 às 20:01 0 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

Conheça o autor

Lucca de Felice Sou geminiano, portanto essencialmente inquieto e curioso. Gosto de falar, mas gosto ainda mais de escrever, e faço isso desde pequeno. Tenho me especializado em contos e crônicas, falando de personagens comuns, críveis, com sentimentos honestos e humanos, mas meu negócio mesmo é escrever romances.

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