papironauta Rodrigo Borges

O quarto do garoto sempre atraiu criaturas indesejáveis. Coisas as quais se é melhor manter-se afastado. Que castelo a se cuidar! Porém, parece que essas coisas desistiram de entrar pela porta ou janela para invadir o seu sentir. Conto do universo Residencial Buritis. Para lembrar que mesmo em Residencial Buritis pode haver monstros de todos os tipos, inclusive os que dá para sentir.


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos. © All Rights Reserved

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Barulhos




O barulho, que só vinha à noite, podia significar muitas coisas.


Primeiro pensou na hipótese de ser um morcego, já que vez ou outra algum dos bichanos entrava na casa para dormir longe do relento. Era plausível que fosse um morcego, se parar para pensar que, dias antes, os membros da casa tinham encontrado fezes do sacana em um dos corredores. Não era completamente impossível. Além das fezes, também teve episódio em que essa sombra com asas dormira dentro do guarda-roupas do caçula, quem agora matuta sobre esse estranho barulho da madrugada.


E um rato? Também não é impossível, posto que, igualmente ao segundo episódio do morcego, um já se escondeu dentro do mesmo guarda-roupas. Na época, o pai da família ajudou a caçá-lo, matando-o, ao final de pulos e sustos, com um golpe de perna. O garoto sentiu-se mal, mas apenas fingiu ser forte e buscou a sacola que serviria para carregar o corpinho morto.


Enterrar. Isso era tudo em que conseguia pensar. Se não tinha sido corajoso o suficiente para manter a situação e arranjar um jeito de expulsá-lo do quarto de maneira a mantê-lo vivo, ao menos enterrá-lo-ia.


Mas então a dúvida surgiu. Será que o rato estava morto? O golpe do pai pareceu fraco demais. E se estivesse apenas incapacitado, ou até mesmo fingindo estar morto? Pensar em enterrar o bichinho ainda meio vivo era crueldade. Meio morto, meio vivo. Então, perto do montículo de terra do quintal da casa, jogou a sacola, que continha o rato, no chão de bloquete e pisou com força e velocidade - uma finalização indolor. Levantou a perna e pisou mais uma vez para se certificar, e mais outra, até que o animal não fosse mais que pasta vermelha dentro da sacola branca de mercado.


O garoto enterrou o rato, mas sentiu o céu estrelado o julgar pelo pecado. Não era crueldade, era confusão; pensou em dizer isso pros olhos brilhantes lá em cima, mas apenas suspirou e carregou o fardo para dentro de casa. Apesar de não se sentir melhor (sentia-se pior, na verdade), seu quarto estava livre da praga.


Mas o barulho, isso, o barulho! Lá estava ele em mais uma noite.


O garoto pensou em pedir ajuda pro pai, mas logo despertou-se a que ajuda este prestaria. Não, dessa vez iria fazer do seu jeito; conquistaria seu quarto expulsando os malfeitores, não matando-os. Bom, esse era o objetivo, mas o garoto não fazia a mínima ideia de como o alcançaria. Se rato ou morcego saíssem correndo e voando pelo quarto, estaria mais propenso a entregar seu nicho a ambos que lutar.


Calma! Nada tinha acontecido ainda. O garoto afastou a cena da cabeça e permaneceu firme. Não iria pedir ajuda pro pai.. Pegou a lanterna do celular e um bastão de madeira (um cabo de vassoura partido ao meio) e se pôs a cutucar os cantos do quarto.


O guarda-roupas, empoeirado e escuro por dentro, foi o primeiro alvo. Se algo habitasse o seu quarto, lá seria o local mais provável. A primeira porta foi aberta, as jaquetas penduradas balançadas. Nada. Então veio a segunda porta, onde as roupas mais leves ficavam erguidas por cabides, e, logo abaixo, as gavetas. Das roupas penduradas apenas muriçocas voaram, irritadas. Das gavetas, nada. A terceira porta… bom, a terceira o garoto não abriu. Dela só viria lembranças que não queria ter no momento, e ele tinha quase certeza de que nada usava seu guarda-roupas como casa, com exceção das malditas muriçocas.


Tudo limpo por aqui, capitão!


Pras estantes então. Não havia muito coisa a averiguar nas estantes. O mofo de outrora já havia ido embora, deixando seus livros em paz. Tudo que restava eram as teias e suas aranhas, as quais o garoto insistia em deixar, pois, vez ou outra, insetos com asas caíam nos invisíveis tecidos e paravam de importunar o silêncio astuto que enchia o quarto nos finais de tarde.


Tá, embaixo da cama. O garoto demorou para aceitar essa missão em específico. Era dali perto que o barulho parecia vir. A base da cama era oca e forrada por um tecido preto. Houve um dia em que o garoto rasgou uma pequena parte desse tecido para esconder alguns de seus segredos embaixo da cama, literalmente. Se algo realmente estivesse se escondendo, ali seria o lugar ideal, talvez até mais que o guarda-roupas, pois escuro era e perto do chão frio também.


O garoto agachou-se e apontou a lanterna, primeiro para toda a extensão abaixo da cama, depois para o buraco feito no tecido. Parte do pano preto caía ao chão, revelando uma caverna propícia para bichos-papões. Seus segredos ainda estavam lá, formas de bichos-papões também, e que, olha a ironia, ficavam escondidos embaixo, e ainda por cima literalmente, de sua cama.


Não… não seria certo contar-lhes que tipos de segredos eram. Nenhuma relação guardam com o barulho. Mas talvez o barulho guarde com o garoto, que sempre escuta de forma a atrapalhar o sono. Porém, mesmo assim, desviemos a atenção desses segredos para a minha desonestidade.


Digo-lhes que não fui totalmente sincero… Tudo bem, nesse buraco abaixo da cama além dos segredos nada mais havia. A verdade era que seu quarto estava livre de animais maiores que aranhas de pernas longas ou muriçocas chatas pra caralho.


Talvez o garoto não tenha pedido ajuda por achar que devia fazer do seu jeito: expulsar o animal e não matá-lo. Mas também havia fatias diferentes nessa sua vontade, seja para que a terceira porta do guarda-roupas permanecesse fechada, seja pro pai não descobrir os segredos que tanto guardava embaixo, literalmente, da cama.


Não posso esquecer-me de dizer que também sentiria vergonha se visse o pai averiguar todo o quarto, assim como o fez, sabendo que o barulho, desde sempre, vinha da janela. Sim, da janela. Havia revistado os cantos do quarto para parecer com o que o seu pai faria, ignorando aquela cena que sempre vinha à sua cabeça: a do monstro do outro lado da janela. O barulho, nunca lhes contei, era alto e um tanto brusco, como dedo seco friccionado na superfície da janela tapada por cortinas. Rápidas batidinhas abafadas de carne contra vidro.


As cortinas impediam o garoto de ver o monstro que tanto arrancara-lhe noites de sono. Mas o barulho havia, e alguém do lado de fora o fazia. Outro porém era a crença do garoto. Que parte da sua maturidade deveria acreditar que havia um monstro lá fora, do outro lado da janela? Ele encarou a cortina por algum tempo na noite da revista, mas não teve coragem de arriá-la, nem mesmo de longe, com o seu bastão ninja.


A noite que se seguiu foi de atmosfera iminente, pois, detrás de todos os sons típicos, esperava-se o barulho conquistar seu destaque. No entanto, o monótono do silêncio não fora quebrado, e o garoto, apesar de esperar, com a coberta até o queixo, o barulho, acabou pegando no sono.


No amanhecer, óbvio, o sol não inundou o quarto. As cortinas o detiveram, deixando transpassar apenas a claridão de seu resvalo. Os olhos do garoto abriram-se e, tão rápida quanto o primeiro fio de luz visto, a lembrança de que barulho algum houve naquela noite, portanto, monstro algum bateu à sua janela, o aliviou mais que banho de sol em dias de meio de ano.


E por muito tempo, à partir desse amanhecer, o barulho não tornou a manifestar-se novamente. No início, claro, o garoto esperou por ele em algumas noites ansiosas, já que sempre voltava alguns dias depois. No entanto, passaram-se 5, 10, 20 dias! Um mês inteiro, lapso maior do que de costume.


O tempo havia passado, e o garoto esqueceu-se completamente do barulho. Simples assim. Ele cresceu, e a memória desse barulho, do suposto monstro que aguardava ao lado de fora em noites de sono, ficou turva como lembrança de infância.


O que quero dizer é: o barulho da janela, de batidinhas abafadas de dedos contra vidro, nunca mais foi escutado no quarto. Isso é diferente de falar que nenhum barulho existia. Talvez esses barulhos pioravam conforme se crescia. Multiplicavam-se feito bactérias, pois muitos outros barulhos agora existiam e todos eles vinham de dentro do garoto, atrapalhando-lhe o sono igualmente, senão mais.


Chamem de barulhos usurpadores, se quiser, pois não são originais quanto o primeiro. Eles eram como cutucadas pontiagudas finas demais para deixar marca. Agressões escondidas por detrás das vestes. Doía preocupar-se com eles, mas não eram palpáveis como morcego e rato, ou, me arrisco dizer, até mesmo como o suposto monstro do outro lado da janela.


Eram solidão e insônia, amor e dinheiro, vícios e sobriedade. Desejos que pululavam no antro que eram os seus pensamentos. Talvez esse fosse o maior problema desses barulhos. Se rato ou morcego entrassem em seu quarto, a ajuda seria objetiva; e, à época, se contasse aos pais sobre o monstro, estes o consolariam. Agora, que problemas eram esses? Que barulhos eram tão silenciosos ao ponto de suprimir ajuda precisa? Esses sim pareciam ser paranoia. Ergua-se, menino! Não o monstro na janela. Eram problemas a serem enfrentados sozinho. Isso se eles realmente existirem; porque, caso contrário e tudo não passar de ilusão, o tempo não poderia ser recuperado mais.


Houve muitos dias em que o garoto encarou a parede com olhar vazio à espera deles cessarem, mas, devo dizer, houve muitos outros que também riu consigo mesmo. Era uma batalha de barulhos melhores que outros. Porém, se bom ou ruim, eles sempre pareciam lhe atrapalhar o sono. Sentia-se só e envergonhado por ter que enfrentar todos esses monstros invisíveis, tal qual quando calou-se sobre o monstro à janela.


Mas então veio uma noite em específico - essa eu nunca vou esquecer - quando garoto escutou um barulho familiar. Um que se distinguia dos demais.


Deitado e a se preparar para o sono, escutou sua respiração e a quietude da noite. O chiar icônico de ouvidos agitados havia. O som de asas de pernilongos também. Algum inseto voador pareceu chocar-se na porta e entrar. O garoto ligou a lanterna para ver se não era nenhuma barata. Foi uma mosca. Deitou mais uma vez, pronto para se empossar de sono.


É estranho lhes contar que o quarto nada mudou, apesar do tempo se passar. Os mesmos insetos estavam por ali, os voadores e os das teias acima das estantes abarrotadas de livros. É estranho ter este dejávù, agora com o garoto um tanto mais crescido.


Foi o barulho abafado de dedos contra vidro que escutou, o familiar barulho que não lembrava ao certo; como uma palavra na ponta da língua. As cortinas estavam fechadas também, mas dessa vez era porque queria o quarto afogado em penumbra, tal qual seu interior, não pelo fato de pensar existir um monstro à janela - isso já não mais era para a sua idade. Ele olhou para as cortinas e percebeu que o barulho vinha de lá. Pensou um pouco em arriá-las, mas seu pensar foi refletido em olhar vazio, assim como o fazia com as paredes do quarto.


Uma lágrima caiu. Apesar de ser a primeira vez que falo sobre seu choro, essa não foi a primeira lágrima que o garoto havia derramado para chegarmos onde estamos. Mas foi a lágrima mais sincera, uma que logo caiu e fez o garoto virar-se de lado na cama, de costas à janela.


Ele só queria dormir.


Sim, havia um monstro lá fora, e ele sempre pediu para entrar. Um ser inominado, sem olhos nem boca, sequer ouvidos. Sem nariz nem cabelo, sequer sobrancelhas. Ah, sem cabeça então? Sim, sem cabeça, e sem pescoço também. Não existia nem peito ou braços, o que, decerto, não dava espaço para existir genitálias ou pernas.


O garoto apenas ignorou como sempre fez, como nunca foi aconselhado fazer.


Achou ser bom que esse monstro permanecesse lá fora, ausente de atenção, recluso às praias da irrealidade, da irracionalidade. Pois, se convidado fosse, ele seria real, e a imaginação do garoto deixaria de ser mais uma de suas meras paranoias. Então, ou ele dormiria para sempre, ou ficaria acordado até dormir para sempre, pois com monstros que atrapalham o sono - disse para si mesmo - não se pode brincar.

11 de Junho de 2020 às 03:00 2 Denunciar Insira Seguir história
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Continua…

Conheça o autor

Rodrigo Borges Conto histórias e as vivo. Bebo cerveja e fumo, mas também como legumes e me exercito. Tenho um canal no Youtube (Rodrigo Borges - Papironauta) sobre a escrita, mas você não vai gostar dos vídeos. Também tenho um Instagram (@papironauta) voltado para o mesmo tema.

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Delvan Sales Delvan Sales
Conto muito bom! Me identifiquei com o garoto em algumas parte da história/minha vida. Certos monstros é melhor que deixemos às praias da realidade msm.
June 11, 2020, 14:06

  • Rodrigo Borges Rodrigo Borges
    bom que gostou, cara!! a gente tem que acampar depois kkk June 11, 2020, 16:14
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