dissecando Edison Oliveira

Ele só queria ir ao encontro do irmão...


Conto Impróprio para crianças menores de 13 anos.
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MAIS ALTO QUE VOCÊ PODE IMAGINAR



Se acho que sou capaz de subir até o topo? Não estaria subindo nessa coisa se não achasse que poderia.
Lembro muitíssimo bem de encher minha mochila com garrafinhas de água, pacote de biscoitos e até algumas balas. Foi assim que enxerguei a minha aventura naquela época. Quando pus um de meus pés no primeiro degrau, fazia frio e o sol estava fraco. Lembro de olhar para cima e enxergar as nuvens, calmas e cinzentas, enquanto os degraus se estendiam para além de todas elas. Não tive medo de começar a subir. Era aquilo que eu precisava naquele momento, sentindo-me perdido e só. Minha mãe deveria estar limpando algum cômodo da casa enquanto meu pai atendia telefonemas em seu escritório no centro. Quando dessem por minha falta, provavelmente eu já estaria voltando, agarrado nos ombros de meu irmão mais velho, que subira até lá depois de ser atropelado por um caminhão.
Não sei ao certo como aqueles degraus surgiram nos fundos de minha casa, brotando do chão e subindo até a imensidão do céu, mas creio ter a ver com a minha dor. Todas as noites antes de dormir, eu me ajoelhava diante da cama e juntava as mãos, pedindo a Deus por um milagre, alguma coisa que trouxesse o meu irmão de volta, sorrindo e me colocando na cacunda. Acho que esse tipo de coisa era impossível para Deus, então ele cedeu sua escada.
Assim que cruzei a marca dos cem degraus, parei e apoiei a cabeça em um deles. Não olhei para baixo. Diziam que se você estivesse nas alturas, jamais deveria olhar para baixo, e obedeci. Retirei com cuidado uma garrafa de água da mochila, girei a tampa e empinei o gargalo na boca. A água escorregou fácil pela garganta, fresca e sadia. Na hora de recolocar a tampa, desequilibrei-me e quase caí, resvalando um dos pés no degrau abaixo. Fui obrigado a agarrar como pude um dos corrimões, e nisso a tampa e também a garrafa despencou e girou pelo ar, afastando-se cada vez mais até que não pudesse mais vê-las. Ocorreu-me estar acima das nuvens, e então minha preocupação era dar de cara com algum avião.
Achava que seria capaz de escutar se algum deles se aproximasse, então recoloquei a mochila e segui rumo ao infinito, tentando enxergar sem sucesso o final dos degraus.

Aquela aventura iniciou-se em uma tarde qualquer, de um mês qualquer, algo distante demais para que minha cabeça seja capaz de lembrar.
Parei de contar assim que ultrapassei a marca dos mil degraus, das mil noites e até dos inúmeros anos.
Minha mochila esvaziou-se já faz muito tempo, e a última coisa que coloquei na boca foi um biscoito salgado que desceu arranhando a garganta. Assim que percebi que trazia comigo um peso morto, arranquei-a das costas e a joguei imensidão abaixo. Minhas roupas de inverno perderam a tonalidade das cores, ficaram esfarrapadas e pouco me esquentam. De algum modo, elas cresceram conforme eu também fui crescendo.
Outra coisa que cresceu foi o tempo, o infinito e a quantidade destes degraus, maiores a cada passo e parecendo tão longe do seu final.
Não sei bem para onde estou indo, mas espero que no fim, meu irmão esteja lá, de braços abertos e com aquele sorriso que nunca esqueci em seu rosto. Espero também que ele me reconheça, pois, sempre que olho para minhas mãos, as vejo enrugadas como eram as de meu avô. Deus, essa é uma escada e tanto, inacabável, assim como imaginei que seria depois de estar alto demais para voltar.
Se já pensei em soltar as mãos e deixar o corpo cair para trás? O tempo todo. Mas acho que subi tão alto que levaria mais tempo caindo do que tentando subir, se essa matemática é mesmo possível. Creio que logo chegarei em meu destino, e lá encontrarei não apenas meu irmão, mas também os meus pais, deixados em terra sabe-se lá quantos anos atrás. E assim sigo subindo e subindo, sem nunca olhar para baixo e focando apenas no topo, seja ele onde for. Creio que esteja mais próximo, agora.
Posso sentir. Não me pergunte como, eu apenas posso. Há uma leveza no ar, em meu corpo e até na minha alma. De fato, às vezes a morte pode ser leve como uma pena.

22 de Maio de 2020 às 04:39 1 Denunciar Insira Seguir história
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Fim

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Leandro Severo Leandro Severo
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May 22, 2020, 04:47
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