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blog Jackie Inkspired Blogger Era uma vez... mas nem toda história começa assim. Lá estava ele: o computador, aberto no tear de vidas. E a personagem. Estava tudo certo, mas, então, ela viu o autor. Curiosa, seu dedo quase o alcançou, e a roda do tear girou. Foi assim que as coisas se tornaram tênues: um toque e tudo daria errado, outro diferente e daria muito certo! A Bela Adormecida representa a fragilidade dos elementos construtivos da história. Uma história não vem pronta, ela é construída com enredo, sinopse, capítulos... O tear representa essa construção, enquanto que a agulha é o perigo de tudo desandar com sua Bela Adormecida. Nós queremos, neste blog, mostrar a vocês dicas para que consigam tear histórias cada vez mais harmônicas.

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Diálogos

Olá, pessoas! Tudo certo?


Vamos trabalhar em dupla neste texto. Eu e a Camy temos visões um tanto diferentes sobre os limites do uso gramatical nos diálogos, isso porque existem vários pontos de vista. Eu sou muito aberta, mas também muito conservadora em certos momentos e caberá a você saber escolher o que funciona para suas histórias e talvez até para apenas um momento da sua história, pois pode ser que você escolha jeitos diferentes para personagens diversos ou situações que lhe peçam algo que você não costuma fazer. Eu farei a maior parte do texto, mas a Camy mostrará o ponto de vista dela quando falarmos sobre linguagem por aproximação.


Com relação aos diálogos, você já deve saber que eles podem trazer muita dor de cabeça para um autor, principalmente porque são os responsáveis por dar vida aos personagens. Para nós, brasileiros, isso pode ser ainda mais complicado; isso porque, na língua portuguesa, é muito difícil deixar um diálogo natural por conta das regras gramaticais.


Por esse motivo, já vi, em diversas histórias, autores usarem “cê” ou “vamo” como uma tentativa distorcida de diminuir a artificialidade da fala dos personagens. Acontece que escrever errado, tentar copiar a fala dessa forma sem a devida e adequada justificativa, é erro gramatical. É algo que eu, Karimy, estudante de Letras e, como já disse, um pouco conservadora quanto a movimentos “fortes”, penso, mas também acredito na flexibilidade e que, se justificado, tudo pode ser feito. Este é um assunto tratado de forma muito inteligente nos livros de Raimundo Carrero, escritor, jornalista e detentor de outros títulos, que também já revelou vários escritores conhecidos, como Marcelino Freire. Vale muito a pena conferir o trabalho dele.


Mas não fique muito preocupado. Essa falta de naturalidade das falas não é uma dificuldade que só nós temos. Na verdade, esse problema também é muito presente no espanhol e foi comentado durante uma entrevista pelo escritor, jornalista, editor e ativista político colombiano Gabriel García Márquez. Ao ser questionado pelo jornalista Plínio Apuleyo Mendonza sobre seu livro Cheiro de Goiaba, García Márquez explicou que não dá tanta importância aos diálogos em seus livros por causa do distanciamento entre o diálogo falado e o escrito, e que o diálogo escrito acaba sendo falso.


Vamos separar em tópicos os assuntos que temos a tratar, porque é bastante coisa e queremos simplificar ao máximo para que você entenda o que queremos dizer.


Linguagem por aproximação (vertente tradicional)


Calma! Não perca as esperanças! Existe uma solução para isso e uma em que você não precisará escrever errado para deixar a fala natural, que é a linguagem por aproximação. Um grande escritor que faz isso de forma maravilhosa é Guimarães Rosa, no livro Grande Sertão: Veredas, usando a regionalidade dos personagens.


Você já observou duas pessoas conversando? Por mais parecidas que elas possam ser, mesmo que gêmeas idênticas que usaram até roupa igual durante a fase de crescimento e tudo o mais, ainda assim existem diferenças nas falas delas. Isso acontece porque, quando falamos e escrevemos, recorremos ao léxico internalizado em nós — aquelas palavrinhas que aprendemos durante nossa vida. Nossa mente vai lá, como uma pinça, selecionando a palavra que consideramos mais adequada para uma situação ou outra. Bacana, não é mesmo?


Existem pessoas, por exemplo, que, quando estão conversando, utilizam muito o “é”, enquanto outras repetem muito o “oxe”, “uai”, outras dizem advérbios terminados em “mente” o tempo inteiro. São essas coisinhas pequenas que tornam nossas falas reconhecíveis. Talvez você ache que é pouco, mas provarei que não.


Para quem não sabe, Camy e eu somos até chatas quando o assunto é correção. Uma vez, estávamos corrigindo um texto para o Esquadrão da Revisão quando ela me disse: “Eu queria tirar esse ‘Palavras proparoxítonas’ e deixar o texto corrido”. O problema é que, naquele momento, eu não podia analisar a situação de perto, e a Camy sabe que uso uma linguagem informal nos textos dos blogs, principalmente no Esquadrão da Revisão, então, ela me mandou uma sugestão de troca para a situação em questão. Veja só:


“Ufa, o pior já passou. Vamos agora ver as palavras proparoxítonas!”


A única coisa que fui capaz de fazer ao ler isso foi rir e responder: “Muito eu! Pode pôr”. A Camy foi capaz de reproduzir uma frase bem próxima da minha escrita porque ela observou o meu jeito de escrever, as palavras que uso.


Então, a primeira dica que deixo para você é esta: observe as pessoas conversando, veja o que diferencia uma pessoa da outra. Não imite, entenda as particularidades das falas e as transporte para sua história. O importante em um diálogo não é se ele é bonito ou feio, se tem palavrão, se é antiquado ou até idiota, mas se é natural e sincero. Pegue um bloquinho de notas, sente perto de pessoas que estão conversando e anote as falas delas. Observe o comportamento, veja as nuances de uma conversa real para melhorar sua experiência criativa.


Linguagem por aproximação (vertente nem tão tradicional assim)


Bom, gente, é agora que eu, Camy, vou falar sobre um grupo de escritores que é um pouco mais liberal no quesito diálogos. Aqui é importante ressaltar uma coisa: não existe uma vertente “certa” e uma vertente “errada” sobre a área dos diálogos. A verdade é que a gramática não passa de uma ferramenta e é escolha do autor utilizar suas regras ou não. É essencial que todos conheçam as regras, mas, se eu vou segui-las ou não, aí o problema é meu. Eu não estou tirando isso do nada, ok? Saramago, por exemplo, foi um grande escritor português que estudou gramática por anos, resolveu que não servia para ele e criou seu próprio sistema; Valter Hugo Mãe é outro que resolveu deixar os ensinamentos tradicionais de lado e criar seu próprio sistema de pontuação e diálogos (e eu o detesto um pouco por isso, porque seus textos são difíceis de ler justamente devido à pontuação confusa).


Não estou dizendo que vocês agora vão pegar uma gramática qualquer, lê-la e decidir que não querem nada disso. Calma lá, baixem o ego, estamos falando de pessoas que estudaram a língua por anos antes de decidirem qualquer coisa. Não, o meu ponto é o seguinte: em alguns momentos, a gramática mais atrapalha do que ajuda, e no diálogo é que vemos isso em maior evidência.


Eu tive aulas por dois anos com o professor Paulo Ledur, escritor conhecido aqui de Porto Alegre, e ele era o primeiro a dizer que pontuação depende de contexto. É claro que nós não vamos reproduzir a fala escrita tal como ela acontece na realidade, ou teremos algo como “as guria disseram que vinham”, “vô te falá um negócio”, “as casa são muito feia”. Não que não exista; Margaret Michell, em E o vento levou…, constrói a fala dos personagens analfabetos dessa forma. Chega a ser muito desconfortável de ler, porque ela retira os -r do final, abrevia palavras, come letras… Enfim, ela ultrapassa os limites do que até eu considero adequado (mas o livro é maravilhoso, fica aí a sugestão de leitura). Então, não, nós não vamos simplesmente pegar a gramática, jogá-la pela janela e transcrever as falas do nosso dia-a-dia.


Manteremos os plurais e mesmo as conjugações verbais em sua maioria. O que eu defendo é que podemos, sim, modificar estrutura e mesmo ortografia em alguns casos. Um exemplo simples: qualquer texto literário meu que vocês encontrem na Internet terá “cê" em vez de “você" durante os diálogos. Eu também uso e abuso de “tá" e da construção “verbo + pronome do caso reto" (ver ela, em vez de vê-la, por exemplo), que também é condenada pela gramática normativa.


“Eu estava falando com ela, desculpa-me por não te ver" — isso é o que a gramática normativa espera.


“Eu tava falando com ela, desculpa não te ver" — isso é o que eu defendo, e a forma mais tradicional da linguagem por aproximação.


Aquele “tava" ali não causa absolutamente nenhum desconforto ao leitor, inclusive deixa a leitura bastante natural e, se a narração mantiver um bom nível de português padrão, o leitor não pensará que eu cometi um erro; ficará claro que a minha intenção sempre foi usar as palavras do jeito que eu fiz.


É claro que tudo depende do contexto da sua história; não vá fazer um adulto com graduação, passado dos quarenta anos, chamar outro com “Bora dar um rolê?” sem que tenha uma ótima justificativa. Mas, na boca de um adolescente, essa fala seria verossímil.


A ideia que a Karimy deu antes de sentar e transcrever o que as pessoas falam é muito bacana. Eu também faço Letras e isso na verdade foi uma das nossas tarefas na cadeira de Conceitos Básicos de Linguística. A atividade foi muito legal e a discussão que surgiu sobre isso em aula depois foi melhor ainda. Façam isso quando estiverem no ônibus ou mesmo no trabalho ou na escola; só escutem o que as pessoas dizem e prestem atenção em como as palavras são pronunciadas.


Alguns escritores brasileiros também se aventuram nesse mundo do diálogo sem tantas regras, como Daniel Galera e Jô Soares. Eles ainda vão ao extremo de modificar a pontuação para que ela siga o ritmo da fala que eles querem, porém esse assunto é para outra hora. Em As Esganadas, do Jô Soares, há um trecho em que um personagem está ouvindo a narração de uma partida de futebol. Eu sei que isso não é um diálogo, mas ainda é uma fala, algo que sai da boca de um personagem. Eu gostaria que vocês vissem como ele fez:


Pelas ondas curtas do rádio, Gagliano Neto tenta animar a torcida:

“Nosso valoroso goleiro Walter não se abate amigos ouvintes de todo Brasil pois sabe que o tiro itálico era indefensável! Romeu dá nova saída passa a bola a Luisinho Luisinho perde para Andreolo que chuta para fora! Zezé cobra o lateral em direção a Machado mas quem recebe o balão é Colaussi Colaussi mata a bola no peito mas perde para Lopes Lopes tenta fugir pela direita mas é desarmado por Foni que passa a Locatelli! Nosso meio-campo com Martim Luisinho e Perácio parece envolvido pelos adversários! Nesta altura o técnico Adhemar Pimenta deve lamentar a ausência daquele que já é considerado o maior crack da competição Leônidas da Silva o Homem de Borracha! Adhemar alega que o player sofre de dores musculares porém alguns comentam que Pimenta estaria poupando o Diamante Negro para a final! A verdade é que o nosso brilhante center-forward está fazendo falta!”

(SOARES, 2011)


Como dá para perceber, a gente fica até sem fôlego lendo, certo? É uma ideia bacana. Eu não sei se usaria num texto meu, mas é interessante pensar em como autores publicados costumam fazer.


Falando em autores publicados, quero apresentar vocês a Daniel Galera. Ele é brasileiro e já ganhou dois prêmios muito importantes: o prêmio Machado de Assis de Romance, da Fundação Biblioteca Nacional, e o prêmio São Paulo de Literatura. O último ele ganhou com o livro que vou usar de exemplo aqui. Eu estou falando isso porque muita gente ainda vê como erro certas abordagens ao diálogo. Eu, por exemplo, tenho mil e um receios com quem não usa travessão. Inclusive, o Daniel é um que não o usa e eu demorei bastante para pegar os livros dele justamente por isso. Os diálogos dele têm uma pontuação própria, indo muito do ritmo de fala que o autor quer passar, e mesmo a grafia das palavras muda. Ele usa termos como “afoder” e outras gírias (principalmente gaúchas, porque cresceu em Porto Alegre, apesar de ter nascido em São Paulo). Quando eu leio os livros dele, tenho a sensação de estar ouvindo as pessoas conversarem.


Sei lá, esqueci tudo. Não sei como tu decorou essa merda toda. Tu é jornalista. Eu sou burro. Não tem como me mandar por e-mail?

Porra tchê.

Desculpa. Arquivo do Estado, né? Polícia Civil.

Olha...

Gonçalo pondera um pouco do outro lado da linha.

Faz assim, deixa comigo. Eu tenho a manha de falar com essas pessoas. Eu tô atolado apurando essa sujeirada do Detran aqui — aliás, tu viu essa merda? Uma roubalheira do cacete, quarenta e quatro milhões, explodindo na governadora — mas assim que der pra respirar eu vou fazendo umas ligações e tento adiantar alguma coisa pra ti.

(GALERA, 2012)


O trecho é pequeno, mas tem dois pontos que quero chamar atenção. Primeiro: falta de vírgula depois de “porra”. A gramática nos manda escrever assim: “porra, tchê!”. Quem vive aqui no Rio Grande do Sul sabe que a gente fala essa frase em diversos tons e com muita velocidade. Na fala, a vírgula realmente não é percebida. Do jeito que está, sem a exclamação, é porque ele falou rápido e baixo, sem dar ênfase à frase, mais como um resmungo mesmo. Se houvesse a vírgula ali, nós poderíamos ler diferente, com mais pausas.


Lembram que eu disse que o Galera não usa travessões? Pois é, eu estava me referindo aos travessões que ficam antes das falas. O que ele faz nesse último parágrafo é adicionar uma informação extra sem cortar totalmente a narrativa. Cortar as frases assim com travessões é muito comum na literatura norte-americana porque eles usam aspas em suas falas, por isso colocar um travessão no meio não é problema. Para nós, por outro lado, isso pode ser uma complicação. Principalmente em plataformas online, temos o costume de escrever da seguinte forma:



Por causa disso, usar os travessões para cortar nossas falas pode ser confuso. Uma alternativa é usar parênteses (é o que eu faço), ou então escolher uma das outras tantas formas de diálogos que temos: não usar travessão, usar aspas, entre outros. Lembrem-se sempre de fazer o possível para que seu texto seja fácil de ser compreendido. Em plataformas online, como o Inkspired, é comum haver algum tipo de introdução às falas, seja com o travessão ou com as aspas. Você sempre pode escolher não utilizar nada, é claro, mas lembre-se de que nem todos os leitores saberão como acompanhar seu texto sem se perder.


Como nós já falamos: não existe certo ou errado, o que podemos fazer aqui é apontar o que os escritores costumam fazer. Enfim, é isso. O que você precisa saber é que é possível fazer de mais de um jeito e escolher o que se encaixa melhor na sua realidade, lembrando que existem autores que não concordam com o grau de flexibilidade que a Karimy concorda, menos ainda com o meu, por acreditarem que a norma da língua deve ser seguida ao pé da letra.


E nunca esqueça de contexto! Leia os textos sobre Ambientação e Criação de personagens, porque tudo aquilo também influencia como você vai construir seus diálogos. E agora devolvo vocês às mãos mais do que capazes da Karimy, que vai continuar falando sobre as outras possibilidades que existem na nossa língua.


Tipos de diálogo


Tudo explicadinho com perfeição pela Camy. Incrível saber um pouco mais sobre tudo isso, não é mesmo? Mas agora vamos nos aprofundar em outro aspecto dos diálogos. Pelo exemplo dado acima pela Camy, vocês já puderam ver falas sem marcação. Vejam agora as demais alternativas, lembrando que existem várias formas de diálogo, mas mostrarei as cinco mais conhecidas para vocês.


1. Diálogo direto

2. Diálogo entrecruzado

3. Diálogo interno

4. Diálogo interno dramático

5. Diálogo sem sinais gráficos


1. O diálogo direto é aquele marcado por aspas ou travessão. Os constituintes de um diálogo são os discursos e os incisos. Observe:



Quando escrevemos um diálogo assim, usamos verbos de elocução dicendi, sentiendi ou declarandi no inciso do autor. Existem vários desses verbos, mas o querido “disse” é o mais utilizado, assim como o mais simples e importante. É legal que você entenda que, em uma narrativa, o simples é algo muito bom. O ser contemporâneo é fragmentado, cheio de coisas na cabeça, ele quer simplicidade. Inventar coisas estranhas para usar no lugar desse “disse” pode ser arriscado.


Também não é muito bacana colocar incisos em todas as falas. Eles devem ser bem colocados, aparecendo apenas quando necessário, ou fica cansativo para o leitor. Antigamente, usava-se o inciso em todas as falas porque as leituras eram feitas depois do jantar e a pessoa que lia o fazia em voz alta para os demais que estivessem presentes. Não é mais assim hoje, definitivamente.


— Você tem mesmo certeza? — perguntou ela. — Eu nem sei o seu nome.

— Eu sou India — respondi. — Como o país ou a tinta India, mas a maioria das pessoas me chama de Imp. Portanto, você pode me chamar de Imp ou de India. Qualquer um deles está bom.

— Ok, Imp. Bem, é muita bondade sua. Prometo que vou tirar tudo do seu caminho no máximo amanhã à noite. E meu nome é Abalyn, que é como todo mundo me chama. Só não me chame de Abby. Odeio.

— Ok, Abalyn. Espere aqui. Volto daqui a pouco.

(KIERNAN, 2015)


Você vê os incisos no início da fala, mas depois eles não são mais necessários.


2. Gustave Flaubert foi o responsável pela criação de outro tipo de diálogo, o diálogo entrecruzado, que permite que as vozes se tornem mais livres nas narrações, sem apoio de incisos enormes, criando personagens com estilo. Veja a utilização desse recurso em Madame Bovary, em que a voz do conselheiro é ouvida entre as vozes de Emma e Rodolphe, em uma cena que se passa na Câmara:


— E alguma vez ela se encontra? — perguntou Emma.

— Sim, um dia encontra-se — respondeu ele.

"E foi isso que vós compreendestes", dizia o conselheiro. "Vós, agricultores e trabalhadores dos campos; vós, pacíficos pioneiros de toda uma obra de civilização! Vós, homens de progresso e de moralidade! Vós compreendestes, dizia eu, que as tempestades políticas são ainda mais temíveis, na realidade, do que as desordens da atmosfera..."

— Encontra-se um dia — repetiu Rodolphe —, um dia, de repente e quando já não se tem esperança. Então abrem-se os horizontes, é como que uma voz que grita: "Aí está ela!" Sente-se necessidade de fazer àquela pessoa a confidência da nossa vida, dar-lhe tudo, sacrificar-Lhe tudo! Não há que dar explicações, tudo se adivinha. Já nos conhecíamos nos nossos sonhos. (E olhava para ela.) Enfim, está ali o tesouro que tanto procurávamos, ali, diante de nós; ele brilha, resplandece. No entanto, ainda duvidamos, não temos coragem para acreditar; ficamos deslumbrados, como se tivéssemos saído da escuridão para a plena luz.

E, a rematar estas palavras, Rodolphe acrescentou a pantomina à sua frase. Passou a mão pelo rosto, como quem se sente atordoado; depois deixou-a cair sobre a de Emma. Esta retirou a sua. Mas o conselheiro continuava a leitura do discurso:

"E quem poderia admirar-se de que assim acontecesse, meus senhores? Unicamente quem fosse suficientemente cego, suficientemente mergulhado (não receio dizê-lo), suficientemente mergulhado nos preconceitos de uma outra época, para desconhecer ainda o espírito das populações agrícolas. Onde, efectivamente, se poderá encontrar mais patriotismo do que nos campos, mais dedicação à causa pública, numa palavra, mais inteligência? E não me quero referir, meus senhores, àquela inteligência superficial, vão ornamento dos espíritos ociosos, mas antes a essa inteligência profunda e moderada que se dedica, acima de tudo, a alcançar objectivos úteis, contribuindo assim para o bem de cada indivíduo, para o melhoramento comum e para a protecção dos Estados, fruto do respeito pelas leis e da prática dos deveres..."

— Ainda mais esta! — disse Rodolphe. — Sempre os deveres, estou cansado de ouvir aquelas palavras. São uma data de velhos caturras de colete de flanela e de beatas de escalfeta e rosário na mão, repetindo-nos sempre a mesma cantilena aos ouvidos: "O dever! O dever!" Caramba! O dever é sentir aquilo que é grande, amar o que é belo e não aceitar todas as convenções da sociedade, com as ignomínias que ela nos impõe.

— No entanto..., no entanto... — objectava a senhora Bovary.

— Oh, não! Porque se há-de declamar contra as paixões? Não são elas a única coisa bela que existe na Terra, a fonte do heroísmo, do entusiasmo, da poesia, da música, das artes, enfim, de tudo?

— Mas é necessário — disse Emma — seguir um pouco a opinião da sociedade e obedecer à sua moral.

— Ah!, mas é que existem duas — replicou ele. — a mesquinha, a convencional, a dos homens, a que varia constantemente e berra tão alto que se agita no chão, terra a terra, como esta assembleia de imbecis que está a ver. Mas a outra, a eterna, essa circunda tudo e está acima de tudo, como a paisagem que nos rodeia e o céu que nos ilumina.

(FLAUBERT, 2003)


E o diálogo continua dessa forma por um bom tempo, mostrando toda a confusão na cabeça de Emma, a situação que a rodeia e as palavras débeis de Rodolphe.


3. Depois, temos o diálogo interno, mas que não deve ser considerado o mesmo que um monólogo. O monólogo é quando o personagem está pensando consigo mesmo, enquanto, no diálogo interno, existe mais de uma voz. Observe um exemplo tirado do livro Ana-não, em que Algustin Goméz faz isso de uma forma linda e sem nenhuma marcação:


Isso quer dizer que a senhora não está com pressa. Pode permitir-se um dia de atraso na viagem. Seu filho não correrá o risco de partir sem avisá-la.

Um dia de atraso?

Estamos preparando uma festa, minha cara senhora. Uma espécie de festa nacional, uma adesão maciça aos interesses da pátria, que são os nossos. Viagem e alimentação pagas. Mais uma achega de duzentas pesetas, em dinheiro miúdo, se prefere, para não lesar os trabalhadores. A pátria e os trabalhadores, para nós, são a mesma coisa.

(GOMÉZ, 2006)


4. O diálogo interno dramático tem, realmente, uma função de conflito psicológico. Ele pode ser apresentado com aspas ou itálico, além de poder vir carregado com sinais gráficos para aumentar ainda mais seu caráter dramático. A escolha de como fazê-lo deve ser muito cuidadosa, porque esse tipo de diálogo pesa muito em uma narrativa. Você pode ver isso sendo usado entre parêntesis em Carrie, a Estranha, de Stephen King:


Carrie engoliu tentando desobstruir a garganta, mas só o (não tenho medo; que nada tenho sim) conseguiu parcialmente.

(KING, 2013)


5. Os diálogos sem sinais gráficos são aqueles que não possuem marcador — travessão ou aspas. O autor apenas coloca o discurso e depois o inciso precedido de vírgula. Daniel Galera costuma fazer isso, como vemos a seguir:


Senta aí, diz o pai, acenando com a cabeça para o sofá branco de dois lugares, imitação de couro.

É início de fevereiro e, independente do que alegam os termômetros, a sensação térmica em Porto Alegre e arredores está acima dos quarenta graus. Ao chegar viu que os dois ipês que montam guarda em frente à casa estavam carregados de folhas e padeciam no ar parado. Na última vez em que esteve aqui, ainda na primavera, suas copas floridas de roxo e amarelo tremiam no vento frio. Ainda dentro do carro passou pela parreira cultivada à esquerda da casa e avistou numerosos cachos de uvas miúdas. Dava para imaginá-las transpirando açúcar após meses de seca e calor. O sítio não tinha mudado nada nesses poucos meses, nunca mudava, um retângulo plano tomado de capim à beira da estrada de terra, com o campinho de futebol jamais utilizado entregue ao desleixo habitual, os latidos irritantes do outro cão na rua, a porta da casa aberta.

Cadê a caminhonete?

Vendi.

Por que tem um revólver na mesinha?

É uma pistola.

Por que tem uma pistola na mesinha?

(GALERA, 2012)


Vamos agora dar uma olhadinha em um outro aspecto do diálogo e, para isso, viajaremos no tempo! Iremos para 1950 quando Enry Green, em sua apresentação na rádio BBC, sobre diálogo na literatura, falou sobre a presença vulgar dos advérbios no inciso do autor.



Green diz que essa explicação mata a “vida”.


Quando conversamos com alguém, é difícil acertamos com certeza o que uma pessoa sente ao dizer algo. Na narrativa não é muito diferente, principalmente se o ponto de vista dela não for o daquele personagem com inciso enfeitado com advérbio.


Em vez disso, podemos recorrer às expressões dos personagens, ao tom de voz, à maneira como a fala foi dita e até mesmo à escolha de palavras que foi feita pelo locutor.


Como tudo apresentado até aqui para você, isso não é uma regra geral; existe um lugar para tudo em uma narrativa. Você só precisa saber o que está fazendo e fazê-lo com cuidado. Escrever um diálogo requer delicadeza, principalmente em situações de grande impacto. Através dos diálogos, podemos mostrar muita coisa para o leitor, inclusive grau de escolaridade, jeito de pensar e até se o personagem é introvertido ou extrovertido.


Algumas vezes, a grande jogada em uma narrativa é esconder o diálogo. Isso pode acontecer por vários motivos. Basta você analisar bem a situação e decidir o que deve ser mostrado e o que deve ficar oculto ao leitor. A ocultação pode acontecer quando o personagem estiver em uma situação de constrangimento, quando for um diálogo que nada acrescentará à história, um diálogo que ocorre em um momento impróprio ou em que o personagem está sob algum tipo de pressão. Algumas outras vezes, podemos apenas suprimir uma parte do diálogo, colocando o pensamento do personagem ou a narração no lugar. A escolha do que será melhor dependerá apenas do que você quer passar para seu leitor. Veja um exemplo tirado dos primeiros parágrafos do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós:


O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei d.Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, pôr cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde

Arga até ao mar de âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº.202. Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D.Galião, descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:

— Ó Jacinto Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?

E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o sr. Infante D. Miguel!

(QUEIRÓS, 2010)


D. Galião se encontra de forma vergonhosa com D. Miguel e fica “aturdido e deslumbrado” ao notar quem foi que o ajudou. D. Galião respondeu D. Miguel? Claro que sim! Mas na narrativa não mostra isso. Por quê? Simples: D. Galião estava tão embaraçado por ter encontrado o príncipe D. Miguel (que foi exilado e, por conta do exílio do príncipe, o próprio D. Galião decidiu se mudar para Paris), de tanto que o admirava, que a resposta direta de D. Galião foi omitida.


Por conta do constrangimento de ter encontrado seu príncipe depois de escorregar em uma casca de laranja, e também por outros motivos que podem ser notados pelo caráter da obra, a resposta de D. Galião não aparece.


Naturalidade no diálogo em português brasileiro


Mudando um pouco de assunto: você já percebeu como nós, brasileiros, nos portamos durante uma conversa?


Escrevi nós, brasileiros, porque estas características que mostrarei são muito fortes e até assustam alguns estrangeiros: falar ao mesmo tempo que outra pessoa; mudar de assunto quando sequer encerramos o anterior, até mesmo deixando questões sem respostas; interromper a fala de outra pessoa.


É válido salientar que esse tipo de coisa costuma acontecer quando pessoas mais íntimas estão conversando, mas também acontece com pessoas que estão tendo seu primeiro contato. Temos um exemplo disso muito conhecido na televisão brasileira, o apresentador Fausto Silva. Ele não é o único; por ser uma figura pública, porém, é mais visado. E existe também aquele momento em que sequer prestamos atenção no que uma pessoa diz.


Essa marca de diálogo nacional é pouco explorada, mas, se usada de forma inteligente, pode trazer muitos benefícios, principalmente quando consideramos o fato de que, quando uma pessoa conversa com outra, ela também tenta passar toda uma carga emocional, além de uma boa impressão para seu interlocutor.


Já aconteceu de você estar conversando com uma pessoa e ela lhe responder pronunciando uma palavra errada ou usando uma inexistente na tentativa de lhe impressionar? Não? Poxa, comigo acontece!


Isso tudo pode até parecer besteira, mas essas “besteiras” podem criar um grande significado de sentido dentro de uma narrativa, principalmente se seu personagem for brasileiro, porque haverá maior identificação. Isso nos remete ao texto sobre ambientação. Lembra-se dele? Pois é! Usar a ambientação junto do diálogo pode ser uma boa jogada. Veja um exemplo disso em Missfanfic, um romance original que escrevi. Quando o Ian está conversando sobre a Carla (a personagem principal que provocou curiosidades no Ian, um escritor) com seu agente e amigo, Willian. A primeira fala é do agente:


— Ah, estou entendendo. Mas me disse que nem sabia o nome dela.

— Não sabia, até encontrar com ela no grupo de escrita do Flávio.

— Ah, cara, mentira?!

— É sério. Ela é gostosa demais. Parece até um anjinho pecaminoso com aquela pele cor de bronze que tem!

Willian riu.

— Eu sabia! Investe nela. Mas nada de compromisso, não cai nessa de novo. Acabou de sair de um relacionamento traumático e não vai ser nada legal se envolver com alguém.

— É! Mas tem um problema.

— Qual? — questionou o agente, tirando o celular do bolso do terno e começando a responder uma mensagem com um sorriso de orelha a orelha. Ele era um negro com olhos mel, sempre de roupa social, bem-arrumado, e tinha um porte confiante que a maioria dos homens não conseguia conquistar, o que atraía muitas mulheres para perto.

— Parece que ela gosta de um garoto que também participa do grupo.

Willian ainda escrevia.

— Pode falar, cara, estou te ouvindo.

— Então, ela parece nem me notar. Percebi que fica o tempo todo olhando para esse garoto.

— Hum?!

— Ele se diz amante de literatura! Mas, cara, ela escreve muito melhor do que ele. E o pior é que esconde isso de todo mundo. O único que vê um pouco da escrita dela é o Flávio. Isso me deixa indignado, porque tenho quase certeza de que ela não conta que faz histórias só por causa que o babaquinha não gosta de plataformas de fanfics. Acredita?

— É? — disse Willian, guardando o celular no bolso. — Como é mesmo o nome dele?

— Murilo. E ele é um autor autopublicado.

— E você está se sentindo acanhado por causa dele?

— Não é isso. Que parte do ela gosta dele você não entendeu?

— Ele é só um garoto, Ian. Preste atenção.

(MISSFANFIC)


Viu só o que Willian estava fazendo? Vai me dizer que você nunca ficou no WhatsApp enquanto conversava com alguém pessoalmente?


Isso não quer dizer que o Willian não estava interessado no que o Ian falava, não. Isso só quer dizer que ele possuía outro interesse também, o que fica muito claro no inciso que o descreve e diz que sua aparência e confiança atraíam muitas mulheres.


Perceba que eu não apenas usei uma característica comum de um diálogo como também a ocultação de informações, que acabaram acrescentando ainda mais coisas à situação.


Traduções


Antes de encerrarmos, gostaríamos de fazer uma observação aos nossos escritores bilíngues: é muito comum bolar os diálogos em outra língua (em especial o inglês, que tem um diálogo muito natural na escrita) e os traduzir para o português depois, o que pode ocasionar construções que não soam naturais aos brasileiros; é o que chamamos de tradução literal.


Olhem a tabela:



* como gaúcha (Camy), um “Bem que tu queria" soa melhor ainda, porque nós usamos muito o “tu".

** para não usar outro palavreado, considerando que este ainda é um blog de respeito, usamos “nojento” e “maldito”, mesmo que essas não sejam as traduções literais de “fucking”.


Você possui muitas ferramentas para desenvolver um diálogo em sua narrativa, mas o mais importante de todos é, realmente, a observação. Transformar algo real em palavras pode ser difícil às vezes, mas, quando dá certo, fica algo incrível!


Mil beijos de nós duas a vocês!


Texto: Karimy e Camy

Revisão: Anne Liberton


Referências:

CARRERO, Raimundo. Os segredos da ficção: um guia na arte de escrever narrativas. Agir, 2005.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003.

GALERA, Daniel. Barba ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

GARCIA MARQUEZ, Gabriel. O aroma da Goiaba. Dom Quixote, 2005.

GOMÉZ, Algustin. Ana-não. São Bernardo do Campo: Mundo Editorial, 2006.

KIERNAN, Caitlín R. A Menina Submersa: Memórias. Barueri: DarkSide, 2015.

KING, Stephen. Carrie, a Estranha. São Paulo: Suma de Letras, 2013.

QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.

SOARES, Jô. As esganadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

10 de Abril de 2019 às 00:00 0 Denunciar Insira 14

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