papironauta Rodrigo Borges

Esse texto é mais um da série em que escolho uma cena específica de um filme ou série e passo para o papel, ao fim de tentar me aproximar da sensação que um conteúdo audiovisual transpassa. No vídeo, discorro um pouco sobre a obra escolhida, bem como demonstro o meu processo para a construção e conclusão de meu texto. Link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=3QbtyXAHR2Y



Fanfiction Déconseillé aux moins de 13 ans.

#papironauta #rodrigo #borges #zumbi #zekes #youtube
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Evacuação



A sirene se soltou por entre os labirintos que eram as ruas do subúrbio. Ela percorreu bairros solitários e sangrentos, assistiu o que antes eram pessoas dilacerarem o que agora era comida. Presenciou até mesmo horrendos atos cometidos entre os próprios sobreviventes, tudo em um silêncio apocalíptico, onde apenas o vento e os pássaros - sobretudo os corvos com seus contos de terror assobiados através de seus bicos negros - ousaram acompanhar. E então ela chegou aos ouvidos daqueles que ansiavam escutá-la a qualquer momento.


Rose olhou para seu marido, um olhar cheio de significados, e ambos decidiram que aquela era a hora. Ele ainda arrumava sua mochila, colocando tudo que achasse essencial para o que viriam a enfrentar. Em tese, caso conseguissem mesmo serem evacuados, talvez nem precisassem daqueles suprimentos; mas depois do que enfrentaram para subir até aquele subúrbio, se abrigar naquela casa cheia de retratos de uma família oriental, sempre martelando que eles estavam longe do verdadeiro lar, toda precaução era um mero cálculo que deveria ser tomado a todo momento. Rose deixou seu marido remexendo as coisas na cozinha, pegou a sua mochila, que já estava feita, e desceu as escadas atrás de Anna, a filha dos dois.


- Anna, está na hora - disse ao entrar no quarto. Anna já tinha entendido a situação antes mesmo de escutar os passos da mãe pela escada, motivo que tentava guardar brinquedos, dados de RPG e canetinhas coloridas dentro da mochila já entupida de objetos sentimentais.


Sua mãe se agachou perto para ajudá-la, mas não havia tanto espaço assim na mochila da fila, então apenas jogou as coisas na boca da bolsa; se elas encontrassem espaço para se acomodar, bem, senão:


- Anna, vamos.

- Espera só…

- Anna, temos que ir agora.


Anna subiu as escadas presa à mão da mãe, que não parava de avançar, por mais que alguns brinquedos seus estivessem ainda jogados ao chão, sem dono como aquela casa e seus cômodos. Seu pai estava esperando as duas na porta da frente, e quando ficaram próximos uns dos outros, como uma família, demorou um tanto para abrirem a porta. Anna percebeu o tanto que seus pais se comunicavam pelo olhar, eles sempre faziam isso quando ela estava presente, quando um assunto importante demais devia ser considerado.


Apesar da sirene ser o sinal de que o perímetro estava livre até o ponto de evacuação, Rose e marido ainda tinham um pé atrás quanto a atravessar prováveis locais seguros até um destino duvidoso; essa ideia ainda fazia repousar um receio que percorria todos os cantos nervosos do corpo dos dois. Entretanto, Anna tinha que ser o foco, e ela estava ali agora, entre eles, os observando conversar por telepatia de casal. Ficar naquela estranha casa não devia ser uma opção, ela não cheirava ao lar que antes eles tinham.


Mas havia uma outra preocupação, uma que talvez Anna não conseguisse decifrar nos olhos da mãe, apenas ter uma vaga ideia ao olhar as expressões do pai. Rose vinha ignorando o estado de seu marido, porque pensar a respeito, pensar que em breve pudesse ficar sozinha com Anna, que perderia aquele homem que passou tantos momentos ao lado, poderia fazê-la desistir de tudo.


- Amor - disse o marido - vamos agora.


Então ele saiu primeiro, olhou para os lados com atenção redobrada, como se fazia ao atravessar uma via movimentada, e fez sinal para saírem também. A família começou num caminhar inocente, ainda testando os arredores com os olhos, mas mesmo assim, o marido ia ficando aos poucos para trás. Não demorou muito para um punhado de pessoas aparecerem entre as casas, correndo com o mesmo objetivo dos pais de Anna, depois mais e mais. Diferente de Rose, aquelas pessoas não caminhavam rápido, elas corriam como se a ameaça estivesse próxima.


Vê-las apressadas daquela maneira, fez Rose sentir a vontade de se entregar ao instinto e correr também, correr junto com Anna e, se possível, com o marido até para bem longe dali, até onde tudo aquilo não passasse de ficção transmitida em canais de streaming. Não, ela tinha que ter a cabeça no lugar; mantenha a cabeça no lugar! Rose olhou para o marido buscando alguma informação.


- Sim, acho que consigo correr.


Então começaram a correr. Aquilo foi um alívio para as pernas de Rose, que se empolgaram, correndo mais do que deveriam junto com as de Anna, até que seu avançar ser contido por um cordão invisível: seu marido estava ficando para trás. Ela olhou sobre o ombro, viu sua careta de esforço para disfarçar a dor que sentia e ofereceu a mão; e, antes que pudesse diminuir a velocidade para que ele a segurasse, o marido deu uma arrancada para equiparar a velocidade das duas, a fim de manter o mesmo ritmo que Rose achava confortável manter. Foi rápido a percepção de que, vendo o marido se esforçando para não se tornar um fardo para as duas, ela nunca o amou tanto quanto naquele momento, fazendo-a se empertigar numa felicidade potente mas rápida, logo abatida pela noção avassaladora das probabilidades. Só continue a correr!


Foi num piscar de olhos eles estarem rodeados, não mais por punhados, mas por uma multidão de sobreviventes que corria com o mesmo objetivo. Os sons das botas, a maioria de camping, eram diversos e variados, formando uma espécie de marcha apressada e nada sincronizada. As respirações também faziam-se iguais, dividida em vários tons, de cansadas a desesperadas.


E sobre todos esse barulhos de guerra, os helicóptero que iam de lá a cá pelo céu eram os tambores dela, com suas hélices quebrando o silêncio em um tuhm-tuhm abafado e absorto em pressão, assim como os corações daqueles que corriam até o ponto de evacuação.


Rose e sua família estavam prestes a virar à esquerda - onde conseguiriam ver o alvoroço do ponto de evacuação - quando avistaram outro grupo de sobreviventes tão grande quanto ir de encontro ao seu. Ver aquele monte de pessoas surgir tão depressa e de locais improváveis, fez Rose pensar em quais pesadelos aquelas várias casas suburbanas eram capazes de guardar atrás se si, em seus cômodos, quintes becos. O quão próximo aqueles malucos estão de nós?


O ponto de evacuação já estava uma completa bagunça antes mesmo de mais dois grupos chegarem. Filas únicas já tinham sido formadas por aqueles que chegaram cedo demais, e as vozes dos megafones ordenavam organização. Todos os militares estavam armados com fuzis, e vez ou outra se era confirmado que as armas não eram apenas para conter os malucos, mas também para controlar eventuais civis que se apresentassem desestabilizados demais para se manter calmo perante à disciplina daqueles militares.


Foi na outra fila que uma mulher foi impedida de entrar no caminhão; era uma asiática. Ela parecia não falar inglês, e provavelmente não tinha os documentos que provavam sua legalidade naquele solo americano em decadência, porém, ainda sim insistiu que tudo aquilo era baboseira, que ela iria entrar no caminhão e pronto; afinal, havia espaço para todo mundo. Houve empurrões e esforço por parte dela, mas a muralha camuflada parecia não se mover, e quando outra tentativa acabou com a paciência de quem a barrava, se foi apontado o cano de uma arma bem em seu peito. Ela levou a mão para cima em ar atônito, não acreditando em como podiam fazer aquilo com ela, e correu para alguma casa nos arredores, para onde Rose tinha sua dúvidas do que guardavam.


A família tinha escolhido a fila que parecia ser a mais curta. A situação da evacuação parecia mais real do que naqueles momentos em que os três ficavam sozinhos. Naquele ponto, todos estavam mergulhados em uma confraternização errática de receio, onde não tinha espaço para os inocentes pensarem em pegadinhas, que tudo não passava de mentira. Ali, todos acreditavam na merda que estava acontecendo, portanto, ela era mais que real, ela o matava depois de arrancar a carne de seu corpo.


Se era ressaltado as conversas medrosas entre parentes e as cautelosas de civis para com militares. Ali, os bebês, crianças e até mesmo os adultos choravam por variadas coisas; tudo como pilares que sustentavam a crença de que a merda estava mesmo afogando tudo que conheciam.


O rosto do marido, já vermelho, estava coberto de suor. Ele estava sentindo dor, Rose percebia isso nas fisgadas nos cantos de sua boca e também no apertar frequente de sua mandíbula. Ela tirou um lenço do bolso e enxugou o rosto dele e cochichou que iria ficar tudo bem, que era para ele fazer um último esforço. Eles entrariam no caminhão e um médico cuidaria daquela ferida. Simples. O marido concordou em uma convulsão de sim com a cabeça, e ali ambos sabiam que nada daquilo que Rose disse iria dar certo. Eles já viram como acontecia, uma mordida e pronto.


- Anna, você vai na frente - disse o pai.

- Mas pai…

- Escute seu pai, filha - Rose teve que concordar - anda, vamos.


Quando chegou a vez deles, Rose tirou os documentos dos três e apresentou para o militar, que deu um “ok” rápido e passou para os próximos da fila. Anna foi a primeira a ser revistada com pressa brusca, o que inflou o coração do pai, mas que se manteve calado, corado de frustração em não poder fazer nada. Depois verificaram seus olhos com uma lanterna; nesse estágio, um militar segurou os dois braços de Anna com indelicadeza.


- Ei, ei, vai devagar! - ordenou o pai.

- Calma, amor, calma - amainou Rose - está tudo bem.


O militar olhou para os dois com carranca dura e séria. Nada respondeu. Liberou o espaço para Anna, e outros dois milicos ajudaram-na a subir os degraus do caminhão.


Quando o marido se pôs aos olhos do mesmo militar, este o olhou dos pés a cabeça com curiosidade, avaliando seu estado.


- Alguma substância química? - perguntou.

- Não, senhor.

- Um de cada vez - o militar disse.

- Tudo bem.


Rose e marido concordaram em coro, mas o militar pareceu não sair do caminho. Ele ainda olhava o marido, tentando perceber o que escondia.


- Você está armado? - perguntou.

- Não, senhor.

- Ué, por que não?


Não houve resposta.


Dessa vez, o rosto do militar ficou bem perto ao do marido. Ele viu seu rosto vermelho, as gotas de suor, a expressão de sete chaves.


- Você está bem? - outra pergunta.

- Si-sim, senhor - o marido respondeu.

- Mãe - chamou a filha de cima do caminhão.

- Tá tudo bem, filha, espere bem aí, não saia daí - disse Rose. Ela olhou de relance para a farda do militar e viu um nome escrito: Uston, sendo o único suporte que viu para tentar virar aquela situação. - Uston… Uston, foi só a corrida, estávamos correndo para cá.

- Senhora, um passo para trás - ordenou Uston.

- O que?!

- Eu disse um passo para trás!


O militar pegou o marido pelo braço e o afastou da fila.


- São muitas camadas de roupas - o marido tentou justificar - estávamos correndo.

- Larga a mochila, abra as pernas e levante os braços.


O marido obedeceu. Uston começou a resvista-lo primeiro pelas pernas, subindo gradativamente, até que passou pela barriga do marido com sopapos, que pulou de leve e resmungou pela dor sentida. Uston o encarou de novo com aqueles olhos frios, esperando explicação.


- Só é um mal de barriga, senhor.

- Tira o casaco.

- Pai?

- Uston, por favor, é só a corrida - disse Rose, por sobre os braços de outro militar, que a impedia de ir até seu marido.

- Senhor, minha filha tá me esperando…

- Tira o casaco!


O marido obedeceu.


- Agora a camisa.

- Senhor…


Mais uma vez, o marido obedeceu. Ele desabotoou a camisa sem pressa, esperando por qualquer milagre. Seus dedos tremiam em todo o processo. Quando a tirou por fim, nenhum milagre aconteceu, Uston e todos presentes puderam perceber que sua terceira camisa estava manchada de sangue na lateral esquerda de sua barriga. Houve civis que saíram correndo na mesma hora, os que sabiam bem o que podia desencadear, porém, muitos ainda estavam parados, olhando a situação, esperando que ela se resolvesse para enfim embarcarem nos caminhões.


Uston olhou da ferida para seus colegas, se aproximou com cuidado e levantou a camisa, percebendo o ferimento coberto de gases já avermelhados pelo sangue vasado. As pessoas levaram um susto e os militares sacaram as armas, apontando para o homem ferido. Rose se desvencilhou dos braços do militar e correu até seu marido, fazendo parte do alvo promovido pelos fuzis dos soldados e olhares dos civis que ainda tentavam entender a situação.


Rose temeu tanto pelo marido que esqueceu por momento a situação da sua filha, não a escutando, talvez ignorando sua voz, que a todo momento gritava por eles, mas que permanecia em seu lugar, como antes mandaram. Foi num cruzar de olhar entre Rose e seu marido, aquele olhar que ambos conheciam bem, aquele olhar pioneiro da relação dos dois, que os militares cantaram os pneus dos caminhões, com Anna ainda dentro, gritando em plenos pulmões os nomes de seus pais.


Rose na mesma hora deixou o marido e correu, correu o máximo que conseguia para manter a proximidade com o caminhão, a fim de que suas palavras fossem as mais claras possíveis em meio à bagunça de pessoas desvairadas, perdidas que nem baratas sob fogo venenoso.


- Filha, espere por mim, espere por mim no estádio - ela gritou - eu prometo que estarei lá. Espere por nós!


E por mais que fosse verdade que ela lutaria até chegar ao estádio e ter sua filha de novo em seus braços, tudo que queria era continuar correndo atrás daqueles caminhões e não perdê-la de vista; tudo que queria era correr o suficiente para pegá-la no colo, voltar aos seu esposo e juntos lutar por alguma outra saída, mesmo que improvável sua existência. Mas então veio aqueles gritos inumanos, gritos saídos de gargantas putrefatas, cheias de bactérias e sangue e terra e todo tipo de sujeira que poderia imaginar. Eram gritos lúcidos, de certa forma, e carregados de um ódio cego que fazia claro seus objetivos.


Rose não entendia como aquela cadeia de eventos ocorreu tão depressa, um atrás do outro, mas olhou mais uma vez a sua filha abanar os braços, para então virar as costas e ir até seu marido, que ainda estava jogado ao chão, esperando Rose voltar.


Então ambos se ajudaram, homem e mulher. Ele preocupado em atrasar ela, e ela preocupada com o futuro, de quando ele fosse embora - isso era certeza agora - e tivesse que ir atrás de Anna sozinha por entre aquele mar de loucura que era o seu país.

17 Novembre 2019 19:26 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Rodrigo Borges Conto histórias e as vivo. Bebo cerveja e fumo, mas também como legumes e me exercito. Tenho um canal no Youtube (Rodrigo Borges - Papironauta) sobre a escrita, mas você não vai gostar dos vídeos. Também tenho um Instagram (@papironauta) voltado para o mesmo tema.

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