Estigmas
NOTA DO AUTOR: Esta é uma obra de ficção, que utiliza o simbolismo judaico-cristão e elementos de seu conjunto de crenças para a construção da narrativa. O intuito não é ofender fiéis das referidas religiões, tampouco ridicularizar suas crenças. Se isso ainda assim for capaz de ofendê-lo(a), recomenda-se abandonar a leitura aqui.
Prólogo
Beatrice respirou fundo, inserindo mais um dardo na besta.
Conforme avançou a passos cheios de cálculo na direção do cadáver, agora com a parte de trás do pescoço banhada em sangue devido à seta ter destroçado sua jugular, lembrou-se das palavras que há muito havia ouvido, mas que ainda mantinha vivas em sua mente: "A besta é a arma perfeita para você, tão silenciosa quanto a dona".
Ela sempre fora discreta, quando criança entrando escondida na cozinha do avô na ponta dos pés para roubar biscoitos de shoyu ou ficar conectada na rede planetária até depois da hora de dormir. Nisso se assemelhara muito à gata da casa, Nix, negra como o céu – e capaz de surgir inesperadamente em qualquer lugar e em qualquer momento. Agora ela utilizava o benefício da cautela para eliminar pessoas e se infiltrar despercebida em locais proibidos – fazendo-a se perguntar se o avô ficaria orgulhoso ou não de si. Ela julgava sua causa nobre, ainda que os métodos fossem questionáveis.
Aliás, não vinha sendo difícil passar silenciosa pelos sentidos de seus inimigos, já que todos aparentavam se tornar mais surdos desde que os seres humanos haviam emigrado – inclusive ela mesma. Como dizia o velho ditado: No espaço nada se ouve. Nem mesmo o seu lamento.
Perguntando-se por que pensava a respeito de tais coisas e desejando voltar a se focar na missão, a jovem de longos cabelos loiros e lisos – vestindo um traje tático negro collant com um coldre preso ao cinto e botas de fibra plástica – abaixou-se junto ao cadáver que fizera em meio ao corredor iluminado por fortes lâmpadas brancas.
Um Acólito, como ela logo constatou ao virá-lo para cima – observando a farda branca e o broche metálico em formato de cruz pendurado à direita de seu tórax, junto a uma pequena estrela na base. Julgou promissor. Começou a revistar seus bolsos com uma das mãos enluvadas, imaginando se o religioso pensaria em trair seus votos se fosse apalpado daquela maneira ainda vivo. Puxou uma das pálpebras fechadas do sujeito, verificando seu globo ocular em perfeito estado por baixo.
Bingo!
Levando as mãos ao cinto, Beatrice apanhou dois objetos metálicos: um em forma de cilindro e outro constituído de uma haste que se expandia na direção de uma das extremidades, lembrando um desentupidor. Juntou os dois num som pressurizado, a haste dentro do cilindro – e, após se esforçar por um instante para manter o olho do morto aberto com uma mão, usou a outra para posicionar um dos lados do tubo sobre a cavidade, pressionando uma pequena alavanca...
Num breve ruído de sucção, o globo ocular inteiro do morto subiu pelo cilindro, feito um peixe branco e balofo nadando ao alto de um aquário. Um fio de sangue escorria pelo buraco aberto no crânio do Acólito, enquanto a jovem abria o cilindro pela outra extremidade e apanhava o olho pelo nervo óptico, preso a ele feito um cordão vermelho.
Virou-se para a porta mais próxima, conduzindo ao Setor 27 das instalações, de acordo com o mapa preparado por Lucio – se estivesse correto. Só espero que a segurança desse lugar seja desleixada como nos outros setores até aqui... – Beatrice pensou, aproximando-se lentamente da entrada com o trunfo em seus dedos. – Se o desligamento da gravidade artificial fizer parte dos protocolos de alerta, será o fim... E ela já estava caminhando normalmente pelos corredores há bons minutos. Ao menos não ousariam desativar o sistema de aquecimento. Todos – perseguidores e intrusa – morreriam de frio, e ela deixara seu traje de superfície escondido bons andares acima para conseguir reavê-lo antes de virar picolé.
No metal da porta estavam gravados o nome e o símbolo da antiga Europe Mining Co. – o Novo Vaticano tendo mantido a antiga estrutura do complexo exatamente como era, mesmo depois de mudar os nomes das quatro luas de Júpiter – agora "Iessu" – por considerá-los "heresia pagã", transformando "Europa" em "Lucas", gravitando em torno do gigante gasoso junto com os outros três evangelistas. A marca do passado até fazia sentido: o local devia passar por esquecido, assim como as pessoas ali trancafiadas.
Beatrice levou o globo ocular até o painel ligeiramente enferrujado junto à porta, apenas um fino fio de luz vermelha no visor revelando ainda estar operacional. A retina foi lida numa fração de segundo, enquanto o mecanismo emitia um som pesado, logo depois deslizando para a direita, exalando forte cheiro de ozônio. Do outro lado, a luz praticamente inexistia – as pupilas da invasora precisando de alguns instantes para se adaptar. Isso, no entanto, não chegou nem perto de tolher sua coragem: atirou o olho longe feito uma bola de ping-pong e prosseguiu sem tardar, a besta novamente em mãos.
O ambiente era cavernoso, aberto em rocha nua, com paredes irregulares e ásperas. Conforme o adentrou, Beatrice percebeu algumas antigas lâmpadas de claridade amarela penduradas em alguns pontos pelo caminho, compondo única fonte de luz. O complexo devia ser mesmo anterior à Contagem Final, a julgar pelo toque ingênuo e o otimismo que ainda aparentava pairar no ar. Continuou seguindo em silêncio através do chão de terra batida conforme tentava identificar o que havia adiante. E, ao primeiro vislumbre do que se tratava, passou a temer pelo pior.
A garota de vestido branco e límpido estava de pé no centro da sala, mãos e pés presos por correntes magnéticas ligadas às paredes de rocha ao redor, os membros esticados em cruz numa posição que deveria causar dor e dificultar a respiração – mas a menina, de olhos fechados e em profundo silêncio, não parecia sentir; ou se cansara de lutar. Os cabelos empapados, de tom branco-azulado, estavam colados ao seu pescoço e ombros, o rosto ainda infantil apresentando hematomas e cortes. O halo de luz projetado do teto sobre ela parecia fazê-la flutuar, numa sádica impressão de claridade enviada do Céu. Beatrice fitou-lhe as mãos, as palmas dominadas por ferimentos profundos e cobertos de sangue seco. Baixou o olhar aos pés descalços. O padrão se repetia.
Uma Estigmata, parte do grupo tão perseguido pelo Novo Vaticano. Exterminados pelas tropas de Acólitos tão logo eram descobertos. Por meses ela e Lucio haviam conjecturado o que poderia estar sendo escondido naquelas instalações. Agora Beatrice não tinha tanta certeza se gostara de saber.
A mão esquerda desceu de novo ao cinto, a direita segurando a besta. Os dedos procuraram a faca isolante, querendo romper aquelas correntes o mais rápido possível. Já que seria aquela menina quem deveria ser tirada dali, Beatrice ao menos desejava que terminasse rápido...
A ação foi tão súbita que seu coração quase estourou, a faca escapando-lhe da mão num estalo mais barulhento do que poderia querer, a besta só permanecendo em seu outro punho devido aos anos de treinamento. Diante de si, a menina com os olhos recém-abertos dominava sua visão, as íris em tom avermelhado encarando-lhe a própria alma. Seu rosto estava de repente a poucos centímetros do dela; e sua mão vazia segurada por ambas as mãos da garota, misteriosamente livres das correntes.
Julgando-se de algum modo hipnotizada, corpo completamente estático, Beatrice só conseguia acompanhar com o olhar os movimentos da prisioneira. Arrancando-lhe a luva e em seguida tateando sua palma como uma quiromante, a textura áspera das chagas resvalando de quando em quando em sua pele, a menina exalava inocência e ameaça. Quando a dor pungente despertou no centro de sua mão, a guerreira não se conteve e gritou.
– Você é uma de nós... – a menina afirmou em tom infantil, os dedos continuando a passear pela palma de Beatrice enquanto ela irrompia em sangue, uma grande ferida nascendo na carne e atravessando-a até despontar nas costas da mão. – Só estava adormecida. Agora ficaremos juntas!
Beatrice continuava a berrar, por mais que sua experiência lhe alertasse a parar, sabendo que atrairia mais Acólitos até ali. Seus instintos, entretanto, não queriam acatar a ordem. A visão turvou-se, o corpo perdendo as forças enquanto sangue continuava a jorrar de sua mão lacerada feito um chafariz... e, quando finalmente a garota soltou-a, a invasora caiu para trás, tudo se apagando quando a nuca colidiu com o chão.
Merci pour la lecture!
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