hopzismo Le Loustic Hop

(DRAMA) - Uma equipe de cinema sofre cortes no orçamento, e essa é a oportunidade ideal para o cinegrafista, um homem amargo e desagradável, mas apaixonado pela arte, tentar consertar os erros do passado. Gatilho: Machismo.


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COMPLETO - Corações Como Cubos de Gelo (1928)

PREFÁCIO

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

O título possui esse "1928" entre parênteses porque, além de ser o ano em que se passa a história, tem a intenção de parecer com aquelas remissões que são feitas ao lado do título de filmes que possuem refilmagens, diferenciando-os quanto ao ano em que foram produzidos. Por exemplo: Carrie (1976) e Carrie (2013).

As premiações do final da história não são as do Oscar nem são quaisquer outras do mundo real, e sim premiações absolutamente fictícias, sendo existentes somente no universo ficcional no qual o conto está inserido – apesar de ele ser muito semelhante ao nosso.

Isso porque a "indústria cinematográfica" é, para a história, apenas um plano de fundo. A história de verdade é sobre uma tentativa de redenção.

Quem tiver olhos para ver verá.



CORAÇÕES COMO CUBOS DE GELO (1928)


Primeiro, iríamos realizar uma filmagem de cinco cenas. Era o que estava no segundo argumento, e que foi mantido até as últimas versões do roteiro. Depois, as cenas foram reduzidas. De cinco, passaram a ser três. Isso significou um corte de 1.000 pés, ou metade de um rolo de 35 mm, o equivalente à perda de 11 minutos e 12 segundos no tempo total do filme. Onze minutos num filme de noventa e cinco minutos – consegue imaginar?

Finalmente, o estúdio anunciou o que já estava predito há muito tempo pela própria má vontade deles: que não havia sido liberada verba do orçamento para filmarmos nada fora dos Estados Unidos.

Esse trecho do filme se passaria no Pólo Norte. Tratava-se de uma sequência não contínua do arco do protagonista. Nela, seria revelado, aos poucos, que o protagonista teve uma relação extraconjugal com uma colega de trabalho durante uma viagem a negócios. Sequência essa particularmente interessante, que nos deixou bastante empolgados. Pois, se entendi bem todas as modificações feitas no step-outline[i] até se chegar ao roteiro final, a sequência toda era relativa a uma subtrama com impacto de extrema relevância na trama principal – inclusive para o correto entendimento dela –, já que deixaria em xeque o falso moralismo que o protagonista nunca disse que tinha, mas que a sociedade lhe exaltava tanto.

Após longuíssimas reuniões, finalmente o diretor e eu conseguimos convencer os investidores sobre a importância da tal sequência de cenas.

Era de se comemorar, não era? Era. Exceto pelo fato de que a vitória fora somente parcial e com as seguintes “pequenas” modificações: a locação seria transferida do Pólo Norte para o Alasca; o número de pessoas da equipe seria restrito a apenas cinco; e as cenas seriam reduzidas de três para uma única cena.

As duas primeiras mudanças são financeiramente compreensíveis? Talvez. Mas a terceira não é de se compreender sob qualquer hipótese. É uma ofensa!, eu falei. É um absoluto desrespeito com a arte. Conosco. Se não bastassem as constantes intervenções dos estúdios em absolutamente tudo, tudo, agora queriam reescrever o roteiro? Queriam ditar o que é bom para o público ou não?

Jim disse para eu me acalmar. Ele disse: Tom, por que está tão irritado? E aí disse: você é cinegrafista, porra, ou o é quê? Sim, sou cinegrafista. Opero a porra de uma câmera. Mas eu vivo a arte. E talvez, só talvez, tenha um olhar sobre ela muito mais delicado que o seu, cujo trabalho em tese é o de garantir que os atores atuem e que o roteiro seja respeitado, seu bunda mole. Frouxo.

Assim foi nossa última conversa antes de partirmos em viagem. Nela, seríamos: Jim; eu; o outro Heart; a “estrela” em ascensão, Melissa Hawthorne; e o queridinho Jake Grandia – que estava no seu terceiro papel, atuando exatamente igual atuava sempre: o mocinho, o cavaleiro no cavalo branco, o amado por todos.

Lá, chegaríamos a um set improvisado de um garimpo de aluvião, e contaríamos com a ajuda e mão-de-obra dos residentes e dos trabalhadores locais, que nos serviriam de figurantes e de ajuda técnica para que rodássemos as cenas. Aliás, para as cenas não, para a cena. A única cena que nos liberaram fazer. Mas como se desgraça pouca fosse bobagem, Melissa Hawthorne foi diagnosticada com gripe dois dias antes da viagem.

Ela tem de ir, eu disse a Jim. Está na porra do contrato, ela tem de ir, eu disse. Se não formos agora, se cancelarmos agora, o estúdio não vai nos deixar rodar nunca mais. Eu peguei a cabeça dele com as duas mãos e disse: Jim, pelo amor de Deus, você não entende?

Ele entendia. Mas ficou acordado que a Melissa iria viajar logo assim que se recuperasse. Os advogados dela ameaçaram nos processar por assédio moral, caso continuássemos a importunar a cliente deles. Que arrancariam, só de indenização, o dobro do valor estipulado como cachê caso continuássemos a insistir em sua viagem em condições insalubres e de risco.

Então fomos só nós: eu, Jim, Jake Grandia e o outro Heart.

Talvez tenha sido porque aquelas foram as semanas mais rigorosas do inverno de 1928. Mas a viagem foi muito extenuante. E que fosse mesmo. Era para ter sido mesmo. O ferro da alma só é moldado com muitas porradas. E por estarmos numa época tão rigorosa, o trabalho para carregarmos todo o material, as câmeras, as lentes etc., nada se comparou ao trabalho de manter os rolos intactos. Eu podia dar conta. Aliás, eu dei conta. Estou nesse ramo a – o quê? – vinte anos? Mais? Estive com Méliès. Conheci os caras da Brighton School. Eu dou conta de uma porrinha de frio. Mas eu talvez não imaginasse que o frio real fosse intenso demais.

Pedi a Jim que me emprestasse o outro Heart para que me servisse de segundo assistente, apesar de eu não ter tido acesso a um primeiro assistente. Eu mesmo era meu primeiro e único assistente, como sempre fui. Eu ajustava o foco da minha vida. Eu arrumava o cenário para que a vida, o filme, a arte fluíssem. Mas precisava dele para me livrar; para livrar os rolos daquele frio.

— Mas ele é o roteirista, Tom — foi o que Jim me disse. E eu disse: foda-se. Só isso, “foda-se”. Essa cena em específico pode mudar a sua carreira, a minha carreira, a de todo mundo aqui. Sem os rolos bem cuidados, você vai fazer o quê? Ham? Escrever um livro? Porque filmar é que não vai. Se você não tivesse sido um frouxo com o estúdio, não precisaríamos de nada disso. Se você não fosse um frouxo com a aspirante à atriz famosa, não teríamos que ficar aqui à toa por uma semana abanando as mãos.

Assim, no dia seguinte, o outro Heart foi transferido para o meu alojamento. Eu disse a ele o que precisava ser feito para manter a higidez dos rolos. Ele disse que sabia o que fazer. Eu disse que, mesmo assim... – e ele me interrompeu, dizendo que sabia o que fazer, que teve um “professor” de merda que o obrigara a saber todas aquelas coisas. Lembra? Que o “professor” o ensinou tudo o que ele próprio sabia: não sobre a vida. Não sobre afeto. Não sobre proteção. Não sobre compreensão. Mas sobre filmes e câmeras? – ah, isso ele ensinou pra cacete. Então eu disse: como quiser. Só não ferra com tudo, ok? E eu repeti: ok?! Responde, caralho. E ele disse: eu ouvi da primeira vez. Olhando nos meus olhos ele disse: eu não vou ferrar tudo, porque não sou eu que sou assim.

Na semana seguinte, no fim do prazo da Melissa, recebemos a notícia do estúdio de que ela não iria mais. A gripe havia evoluído para pneumonia, então Deus a livre de ir ao Alasca filmar uma cena de 10 minutos. Eu disse que isso ia acontecer, não disse? Eu disse exatamente que isso ia acontecer. Jim falou para eu me acalmar. Eu? Me acalmar? Ele é o diretor. O outro é que é o roteirista. Eu só filmo, irmão. Eu só dou ao espectador absolutamente tudo o que o cérebro e a alma dele vão ver através dos olhos. Eu só arranjo todas as cenas para que elas existam no mundo real, e não no mundo ideal do faz de contas do diretor, ou no de papel, do roteirista. Mas, eu me acalmar?

Naquela noite eu fui beber com os caras da petrolífera. Eles me levaram ao bar que já tinham me apresentado. Foi divertido. Era a última noite, então era para ser a mais divertida de todas. Mas eu só não estava no clima. No dia seguinte iríamos desmobilizar a merda toda, então eu só não estava no clima. Semanas jogadas no lixo. Uma oportunidade jogada no lixo junto com lenços de papel sujinhos com o catarrinho da Miss Hawthorne. Não há clima, a não ser o frio de verdade.

Quando cheguei ao alojamento, muito antes – e menos bêbado – do que estava acostumado a chegar, vi o outro Heart mexendo nas minhas coisas. Na minha bolsa.

— É essa a sua filha? — ele me mostrou uma foto que estava na minha carteira.

Eu disse: é. E ele disse: bonita. Parece simpática. Deve ter puxado à mãe. E eu disse: só a conhecendo pessoalmente para saber. Mas acho que você não vai, né? E estiquei a mão. Ele a reteve por um segundo e disse:

— Não. Acho que melhor não.

Naquela noite eu não consegui dormir. Fiquei pensando em como as pessoas desistiam de seus sonhos por conta de outras pessoas. Em como se deixavam viver vidas de merda para as quais não se programaram em virtude do que outros lhes sentenciavam. O frio estava intenso demais.

Pela manhã, eu chamei Jim num canto. Os homens estavam começando a desmobilizar o set. Jake Grandia e o outro Heart os ajudavam. Eu disse: Jim, temos que filmar. Ele riu da minha cara. Filmar? O quê? A cena, eu disse. Ele riu de novo. Eu o segurei pelo braço e apertei. Repeti: temos que filmar. Então ele mandou que eu olhasse ao redor. Ele mandou que eu olhasse para cada floco de neve e lhe dissesse se eu estava vendo alguma porra de Melissa Hawthorne por ali.

E eu disse: vamos filmar a cena original.

E ele disse: que cena original? A da step-outline, eu disse. As cenas mais honestas e sinceras são aquelas da step-outline. As que ainda são mais emoção quente que técnica fria. São nelas que o coração do roteirista reside de verdade. Entende?

O outro Heart ouviu tudo e disse que não. Que a ideia era péssima. E eu o mandei calar a boca. Naquele momento, ele era só um segundo assistente. Então que calasse a boca, sob a ordem do diretor cinematográfico, que no caso era eu.

Eu disse: James, seja um frouxo sempre que quiser. Seja um cagão sempre que quiser. Só não o seja agora. Por favor. Só não agora.

Não temos o ator, Tom. Foi o que ele disse. E eu disse: temos mais que isso. Temos a pessoa que, não só a escreveu, como viveu a história de verdade.

Por favor.

E então filmamos.

Editamos.

E o filme foi exibido no ano seguinte.

Quando viram a fatídica cena, as pessoas – em sua maior parte cegas, mas também havia as que preferiam não enxergar – disseram que o filme podia ter sido encurtado em 10 minutos. Que nele continha uma cena sem propósito. Uma em que o grande astro Jake Grandia troca diálogos incompreensíveis com um figurante desconhecido e não creditado ao final.

Na referida cena, o diretor da empresa de garimpo, que é o personagem de Jake, viaja até o Pólo Norte para investigar boatos acerca da descoberta de supostos veios de ouro ocultos sob toneladas de camadas de gelo. Se fosse verdade, isso salvaria a companhia dele. Entretanto, a informação é falsa. Não há ouro algum.

A cena é basicamente diálogo, e ocorre entre Jake e um encarregado, que é um personagem que foi interpretado anonimamente pelo próprio roteirista: pelo outro Heart. Ela é assim: ambos os personagens estão em seu alojamento, pouco antes de as luzes do dormitório se apagarem. O personagem de Jake está deitado, apoiado num cotovelo, olhando para o encarregado, o personagem do outro Heart. E esse outro personagem diz lamentar que Jake tenha vindo de tão longe e, mesmo assim, não tenha encontrado o que esperava.

Então o personagem de Jake diz com um sorriso genuíno e doce, que não havia sido feito em nenhum outro take:

— Eu vim encontrar ouro. Talvez o tenha encontrado.

Os dois se entreolham fixamente. As luzes do dormitório se apagam. Zoom in. Na cena seguinte, Jake está de volta à companhia nos EUA, nos braços de sua amada esposa, para conseguir a reviravolta financeira do final da trama e ser feliz para sempre – rico e longe do vício por álcool a que o título do filme faz referência (“Cubos de Gelo”).

O significado da cena é óbvio.

Mas fingem não entender.

Interessante notar que se toda ela tivesse ocorrido entre Jake e Melissa Hawthorne, e não entre Jake e o encarregado anônimo, todas as pessoas teriam entendido, e admitido, tanto a cena quanto o diálogo.

Mas era 1929.

Assim sendo:

Por nada, Melissa Hawthorne é premiada como melhor atriz numa cerimônia feita para poucos convidados. Uma na qual ninguém nunca ouviu nem nunca ouvirá falar.

Por retaliação, Jacob Grandia e James Harrigan são apenas nomeados para a grande premiação. James poderia ter sido o primeiro diretor do mundo a ser premiado nela, mas não o foi.

Por retaliação, Robert John Heart é obrigado a usar pseudônimos para assinar seus roteiros. Só a partir daí passou a ganhar placas e troféus. Foi premiado na categoria de melhor roteiro por dois anos consecutivos, falando sobre assuntos os quais as pessoas queriam ouvir, e não aqueles os quais deveriam tentar entender e debater. Até sua morte, em 1936, nunca subiu ao palco para receber nenhum desses prêmios. Nunca conheceu a irmã.

Por ter sido 1929, não existia categoria para mim, Thomas Anthony Heart.


_________________________________________

[i] Step-outline é um rascunho produzido antes dos argumentos. Os argumentos são o esboço do roteiro. Logo, step-outline seria como o rascunho do rascunho.


1 Juin 2023 21:16 2 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

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Le Loustic Hop Escritor - Ficção, Fantasia & Terror

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Wesley Deniel Wesley Deniel
Meu irmão, eu já estava pirando para poder voltar a ler seu trabalho, o do Marcelão... E, antes de ir para o mais recente, quis dar uma garimpada em obras mais antigas suas, histórias que, infelizmente, passaram batidas. E que bom que eu fiz isso ! Mermão, até hoje não creio que não seja um escritor com anos na estrada. A sua escrita é refinada demais, bem sacada demais, Hop. É coisa que não encontramos nem em muito caboclo com tarimba por aí. O que só consigo conceber ser o tal do "dom". Tem gente que tem. Ponto. Já sou seu fã no terror e na ficção, já me encantei com doses suas de drama, mas aqui, aqui é para terminar de ler e ficar ruminando por muito tempo. É triste, é um soco, é – e deve ser ! – incômodo, pois, se não for, como evoluiríamos ? Hollywood (nós, no final das contas, pois, mesmo lá, se trata de vidas) tão podre em 1928, no finalzinho da era do cinema mudo, já era decadente e hipócrita como hoje. Aliás, esses dias para trás, li a história de nosso querido Corey Feldman, astro mirim dos anos 80 (para sempre em nossos corações) e, meu amigo, que coisa trágica ! Bom, tragédia é sinônimo de Hollywood. É mais fácil achar alguém que não tenha sido ferrado pela máquina suprema do entretenimento do que somar os prejudicados. Excelente história, meu irmão. Tramas assim têm de ser lidas por todos. Em um mundo ideal, pessoas como você, o Marcelo e outros companheiros de escrita seriam o sucesso de nossa época. Eu farei minha parte: faço questão de compartilhar e recomendar, pois quero muito ver esta visão realizada um dia ! Parabéns, meu velho. 🙏🏻
December 11, 2023, 06:07

  • Le Loustic Hop Le Loustic Hop
    Deniel, muito obrigado pela leitura, seu tempo e comentário. Cara, por muito tempo, essa foi a minha história favorita; mas eu imaginava que ela dificilmente cairia nas graças dos leitores, por ter, desde o título, algo diferente, até a história "obscura". Ela fala sobre a relação de um pai (Thomas Heart) preconceituoso e machista que acaba estragando sua relação com o filho homossexual (Robert Heart, ou "o outro Heart"), mas, passados uns anos, tem que trabalhar com o próprio filho nessa filmagem "Cubos de Gelo". Ele tenta "emendar" o estrago, tenta se desculpar, incitando o diretor a incluir uma cena (escrita originalmente pelo filho, e retirada do tratamento final). Mas, numa sociedade da década de 20, o deslinde é esse que você leu: cair na geladeira da indústria, sendo obrigado a usar pseudônimos para continuar escrevendo roteiros (e ganhando prêmios); até falecer precocemente sem nunca, por escolha própria, ter voltado a visitar o pai ou conhecido a irmã. Obrigado pela leitura, Deniel, mesmo não sendo das melhores coisas que escrevi (apesar de gostar muito dela). December 11, 2023, 15:37
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