asheviere Marianna Ramalho

Um homem desesperado usa tudo ao seu alcance para trazer sua esposa de volta dos mortos. Então por que ela não parece feliz com isso? Inspirado pela música The Steven Bradley, da banda americana Bear Ghost. Criada para o desafio de songfics de 2023 no grupo do Nyah! Fanfiction


Fantaisie Déconseillé aux moins de 13 ans.

#songfic #fanfic #bear-ghost #conto #oneshot
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Dear, this mess was not intended when I began

É inútil tentar descrever o “antes” daquele despertar. A consciência não emergia de um mero sonho dormente e abstrato, mas da constância vazia do maior dos medos humanos. E que experiência há para se descrever naquilo que é definido pela inexistência? Um segundo atrás... Nada. Não havia nada. Apenas um corpo posicionado com cuidado no centro de um salão escuro. Tinha sido uma mulher. Seus cabelos estavam bem penteados e ela usava roupas leves e cerimoniais, tudo por meio de outras mãos, menos frias e inertes do que as que repousavam ao lado do corpo, tão rígida quanto o mármore sob elas.

Se em um segundo não havia nada, no seguinte ela abriu os olhos. Como uma criança que acabava de vir ao mundo, nada do que via fez sentido, tudo a assustava, não por ser desconhecido, mas por saber que não deveria estar ali. Os pulmões até a pouco inativos sentiram a dolorosa expansão de novamente abrigar ar dentro de si, fazendo o peito subir e descer violentamente até que o antigo ritmo retornasse e o ar parasse de queimá-la por dentro. Ela já estava sentada com a mão no peito, sentindo o ar estranhamente quente que escapava de seus lábios entreabertos. Aterrorizada e cega pelos múltiplos estímulos do mundo material como se tivesse nascido uma segunda vez, ela entendia apenas fragmentos da realidade: o gosto metálico, a dormência dos músculos, um líquido deslizando sobre sua testa, o cheiro de incenso queimado. Eram coisas individuais que não conseguia unir em um único quadro.

Abriu e fechou as mãos, sua mente começando a entender que estava ali, dentro daquele corpo outra vez, que era real e podia controlá-lo. Ainda observando as mãos com estranhamento, sons ritmados preencheram o local, e ela só lembrou que este era o som de passos quando um homem atravessou a porta e hesitou na entrada, encarando-a com alívio e ternura.

— Adrienne, você... Você está aqui... — Ele sorriu e chorou ao mesmo tempo, desprezando a distância entre eles em poucos segundos. A luz de uma vela que ela não percebera antes brilhou no caminho que as lágrimas deixaram em seu rosto, e sem esperar resposta, ele a abraçou.

Adrienne. A familiaridade parecia certa. Adrienne e Steven Bradley.

Adrienne não lembrava de já ter recebido um abraço assim. A força e o rosto de Steven enterrado em seu pescoço a fez perceber que o gesto era mais necessário para ele do que para ela.

— Que bom... Que bom que deu certo — ele disse, e riu como uma criança. — Eu passei dias para conseguir. Penteei seu cabelo, cuidei de você... Eu cuidei de você, Adri. Ah! Eu... Eu encontrei seu colar…

Ele tirou do bolso um adereço simples, uma pedra azul translúcida em um cordão preto. Adrienne olhou do homem para o colar e de volta para ele, a vela refletindo em seus olhos pelas lágrimas contidas. Com seu olhar sentido, quase como se ela ainda pertencesse ao luto e à dor, o sorriso dele esmaeceu, e ele abaixou o colar. Ele ainda chorava silenciosamente, estudando cada reação.

— Você disse que era o seu colar favorito.

Adrienne tocou o pescoço, sentiu as escoriações na pele com a ponta dos dedos, e por um instante o ar desapareceu. Sua mão envolveu o pescoço quase inteiro, segurando-o sem muita força, mas a sensação era muito parecida com a memória de outras mãos naquele lugar. O presente e o passado aconteciam ao mesmo tempo, ela era uma nuvem ao amanhecer, aquecida em uma face pelos primeiros raios do sol enquanto o outro ainda encarava a noite. Adrienne o encarou com uma expressão séria.

— Escute, amor — Steven estendeu a mão para o pescoço dela.

— Não encoste em mim…

Mágoa e rancor em cada palavra. Finalmente, uma lágrima escorreu pela bochecha direita e seus dedos vacilaram, trêmulos. Ela soltou o aperto em seu pescoço. Steven se sentou, a cabeça entre as mãos, soltando um longo suspiro antes de suportar a acusação dos olhos dela outra vez.

— Isso... — Ele não teve forças para verbalizar o que era isso. — Isso não era minha intenção. Por favor. Olhe ao redor, eu fiz tudo isso por você… Amor, se você apenas...

Adrienne recuou ao mínimo gesto. Ela chorava abertamente, agora que o choque e a confusão de não estar morta dera lugar a um outro tipo de choque e confusão.

— Você fez... O que você fez… Você me odeia tanto assim?

— Eu não queria! Vou provar para você, eu juro, eu nunca mais vou encostar em você, eu prometo.

Adrienne soluçou. Não era a primeira vez que ouvia essa promessa.

— Eu estava livre de você... Eu estava livre de você…

Steven parecia realmente magoado com as palavras dela, mas não conseguia olhá-la os olhos. Quando ele tocou sua perna, Adrienne estremeceu, mas não teve forças para recuar.

— Eu sei que você não quer dizer isso. Eu te amo e você me ama. Eu vou mudar.

Ele calçou os sapatos dela. Limpou as lágrimas, mas novas continuavam surgindo. Prendeu o cabelo dela para longe dos olhos e da bagunça que era seu rosto. Adrienne não dizia nada, apenas chorava.

— Eu sonhei com você todos os dias. Vi como podia fazer você levantar. Vi você dançar. Era esplêndido, Adri. Você é esplêndida e eu lhe amo. O que aconteceu jamais vai se repetir. Tudo o que fizemos foi por você.

Fizemos.

O choro parou. Seu sangue era frio novamente, como o do cadáver que era há poucos minutos. Engoliu em seco.

— Onde está o Lucas? — A mão em seus cabelos se afastou. Por mais que odiasse a voz dele, seu silêncio foi muito mais aterrorizante. Adrienne virou o rosto para encará-lo e repetiu a pergunta devagar, com uma mistura de raiva e medo. — Onde está ele, Steven?

— Eu precisava de você de volta, Adrienne. Não posso viver sem você, entende?

Adrienne ficou de pé, cambaleando um pouco pela falta de jeito com o próprio corpo. Apoiada no mármore da mesa, olhos na mesma altura que os dele, perguntou:

— O que você fez?

— Eu... Não era a intenção quando comecei tudo isso…

— Steven…

— Para trazer alguém de volta, é preciso sangue semelhante, sangue vivo. Pronto, está bom? — respondeu, impaciente.

— Você nunca foi cruel com ele — Adrienne se forçou a dizer, torcendo para que aquilo fosse só mais uma mentira cruel como tantas outras que tinham o único objetivo de aterrorizá-la. As memórias estavam completas novamente, e ela preferiria mil vezes a dor de não compreender quem era ou o que tinha acontecido do que a clareza fria dos acontecimentos.

Steven meneou a cabeça.

— O menino quis fazer isso, ele queria ajudar você também.

Adrienne caiu de joelhos, absorvendo a resposta. Seu menino...

A certeza de antes de antes, a do vazio da inexistência, não existia mais. Quanto mais tempo passava, mais se convencia que aquilo não era a vida. Ela ainda estava morta e esse era seu inferno, inferno mais que merecido, pois tinha sido egoísta o bastante para deixar uma criança entrar na vida miserável que ela tinha. Em sua cabeça, viu Lucas cobrindo os ouvidos quando Steven e ela gritavam um com o outro, ela o viu chorar tocando um hematoma roxo no rosto da mãe e se esconder por meia hora após o pai chegar em casa, para ter certeza de que poderia cumprimentá-lo. Deveria ter sofrido em silêncio, sozinha. Agora seu menino estava morto, ela estava morta, e seu inferno era continuar o mesmo inferno que tinha em vida, mas sem a única inocência e bondade que a vida já lhe concedera.

Sentiu uma mão em seu ombro.

— Não era a minha intenção... Mas foi tudo por você, ele também queria você, ele queria você bem.

— Você é doente... — murmurou, recuando de seu toque como se algo dele pudesse infectá-la e fazê-la enxergar pela mesma lente. — O que achou que ia acontecer? Fala! Achou que eu iria lhe agradecer?!

Ela nem percebera que estava gritando. Tudo girava ao seu redor, e as lacunas na sua percepção agora faziam sentido, tinham um significado horrível e profano. O gosto metálico. O líquido viscoso em seu rosto. Manchas vermelhas no chão, vestes descartadas de uma criança. Mas tudo era distorcido e diabólico através da lente das lágrimas.

Quando ele segurou seus braços para acalmá-la, calma era a última coisa que sentiria. Mas seu corpo ainda não havia se recuperado da desmorte. Estava cansada quando não deveria mais precisar lutar. Deveria estar em uma cova escura e solitária, na paz da inexistência. Mas não diziam que os mortos não descansavam enquanto ainda tinham negócios pendentes? Como podia pedir paz se deixara para trás um ser indefeso cuidado por um monstro?

O monstro tomara sua exaustão por calma. Alisou suas mãos com a voz distorcida em tons suaves, que ela assentiu sem ouvir, um som de fundo no ruído de seus pensamentos. Em algum momento, ele a soltou, mas não por muito tempo. Ofereceu-lhe uma xícara quente que Adrienne usou apenas para aquecer as mãos, e não tirou os olhos do vapor desvanecente sobre o líquido até que estivesse frio.

Nesse ponto, ele também já tinha desistido das palavras. Estava sentado por perto, sem tirar os olhos dela, esperando qualquer coisa, qualquer sinal. Ela parecia intocável, sua voz não a alcançava. Só queria perceber ela mudar o foco de sua atenção de um objeto para outro ou perguntar alguma coisa... Nesse ponto, ele até mesmo preferiria quando ela estava gritando do que esse silêncio ainda tão morto. Todo o seu esforço seria para nada? Tudo o que havia estudado e descoberto para tê-la de volta, todos os segundos de todos os minutos que passou cuidando dela, limpando-a, penteando seus cabelos, encontrando suas roupas, para que ela voltasse em bom estado e não sofresse com o reflexo cruel de uma atrocidade reanimada.

— Você está tão linda quanto antes — disse, sabendo que ela não estava ouvindo nada. — Ainda mais.

Inesperadamente, ela reagiu. Deixou o ponto invisível no ar para olhar para ele, um movimento lento como se apenas esse gesto exigisse que ela trilhasse novamente o caminho entre a morte e a vida.

— Eu quero saber o que você fez. Como conseguiu... — Ela abaixou o olhar, que se perdeu em suas mãos. Os movimentos leves que ainda não compreendia ser capaz de comandar. — Como conseguiu algo assim.

Ele sorriu.

— Eu faço o que você quiser. Só não me deixe de novo.

— Nunca — respondeu, com seriedade. — Nunca.

O monstro suspirou, aliviado, e se afastou para trazer suas pesquisas. Reuniu textos velhos e páginas manchadas, suas próprias elaborações e rituais antigos, resultados dos testes que fizera em pequenos animais antes do objetivo final. De relance, percebeu que a situação agora era oposta. Do outro lado do salão, Adrienne não havia tirado os olhos dele em um segundo. Ele suspirou. Tudo seria diferente no futuro. Ele tinha trazido sua amada de volta dos braços da morte, ela entenderia a grandiosidade desse gesto e retribuiria com a lealdade digna de uma esposa para seu marido. As brigas, as discussões, tudo acabaria. Ele não teria mais motivos para repreendê-la, pois não seria desobedecido, e, portanto, sua promessa era verdadeira: nunca mais encostaria nela como antes, pois Adrienne não lhe daria motivos para agir assim outra vez.

Ela não olhou para os papéis, apenas o encarava como se absorvesse cada palavra de tudo. Nunca tinha passado tanto tempo em silêncio antes. Talvez fosse vaidade, mas ele achou que fosse um bom sinal. Era cansativo como ela sempre tinha algo a dizer, algo a rebater.

Enquanto explicava com brilho nos olhos tudo o que tinha feito, o monstro segurou sua mão.

E tão certo como o movimento dos planetas, ela retribuiu com um aperto firme, como se quisesse garantir que ele não se afastaria dela.

Nunca. Nunca enquanto vivessem.

Apenas dias depois, quando ele caiu sobre a terra remexida de uma cova rasa e pequena demais para um adulto, com sangue jorrando por entre os dedos de uma ferida no pescoço que ele desesperadamente tentava conter, ele entendeu. Adrienne sequer hesitou enquanto a vida o abandonava, um demônio inabalável. Ela nunca o deixaria, não enquanto vivesse. Não era uma promessa, mas uma ameaça. Ele engasgou com o próprio sangue ao tentar falar o que certamente seria um xingamento.

Adrienne se ajoelhou na terra e segurou o rosto dele com delicadeza. Sem esboçar reação alguma, nem culpa, nem prazer, o que o assustava muito mais. Então a mão desceu e os dedos mergulharam no escarlate. Ele gemeu de dor.

— Não me culpe. Você disse sangue semelhante vivo, não é? O meu não serve mais…

Adrienne traçou uma faixa de sangue sobre a boca da criança, desenhou em sua testa os símbolos que havia aprendido. Os dedos da mão limpa roçaram a lateral do rosto infantil, e só então ela sorriu. Se não fossem os olhos abertos, Lucas pareceria estar dormindo. Adrienne os fechou com cuidado. Quando ele acordasse... ela precisaria ajudá-lo. O monstro não cuidara do corpo dele como havia cuidado do dela.

No momento em que o monstro parou de respirar, o garoto abriu os olhos. Com isso, seu maior remorso havia se dissipado, a paz era umapossibilidade. E, longe do monstro, Adrienne soube que podia fazer do inferno um bom lugar para eles dois.

28 Février 2023 00:14 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Marianna Ramalho Também posto no Nyah, no Spirit e no Wattpad sob o nome de Jupiter L. Se houver interesse pela minha escrita de forma "integral", sugiro acompanhar pelo Nyah ou Inkspired. Nem todas as histórias são postadas no Spirit e no Wattpad.

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