pricilaelspeth Pricila Elspeth

Num futuro não tão distante, a Terra está erodida e não conseguirá sustentar a vida por muito mais tempo, a humanidade está condenada; mas não toda ela. Alguns ricos e poderosos se mudaram para Marte, onde cultivam uma floresta privada alimentada com os recursos roubados da Terra. Nesse contexto, surge um grupo de mulheres cansadas de suas vidas medíocres e esperançosas, elas se juntam e formam uma gangue de motoqueiras destinadas a saltar a Terra e derrubar o império marciano em ascensão.


Post-apocalyptique Déconseillé aux moins de 13 ans.

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Nova Atlantis, 2180

A intensa tempestade de neve negra recaia sobre a cidade, deixando prédios, ruas, veículos e transeuntes completamente cobertos de fuligem, tingindo-os com tons de cinza amargo, sombrio e solitário, tal qual a alma das pessoas que a haviam criado.

O frio não era proveniente de uma estação climática, mas sim de uma densa camada de partículas expelidas na atmosfera, o que acabava bloqueando o Sol na maior parte do tempo. A sensação sufocante e tóxica era presente o tempo todo, quando não através das máscaras com poderosos filtros, era através da inalação direta do nocivo e mortal ar das capitais.

Na esquina de um digipub com letreiros neon, um homem tremia por conta do frio, não estava agasalhado o suficiente. Naquela mesma calçada um garoto caminhava enrolado por seus próprios braços, trajando um uniforme vermelho e velho de alguma fábrica pouco conhecida. O gorro sujo e esfarrapado com protetores de orelhas envolvia sua cabeça, o cachecol grande enrolava o pescoço e a face por baixo da máscara de tubos, as luvas furadas que deixavam as falanges para fora ofereciam um diminuto conforto às mãos e o casaco encardido e esfarrapado por cima de tudo amenizava aquela confusão visual. As botas eram pedaços de algum tecido sintético em estado de putrefação e deixavam para trás uma trilha fácil de ser seguida.

Os ossos de sua face tilintavam, o estômago roncava e a cabeça doía e girava. Ele sentiu um gosto amargo invadir sua boca e logo um líquido azedo e ácido ameaçou subir pela garganta, mas ele se conteve. Apoiou-se numa parede de concreto e respirou pesadamente, limpou os óculos de proteção com a manga do casaco e olhou para trás certificando-se de que estava sozinho.

Prosseguiu caminhando por mais dois quilômetros até alcançar o beco que daria acesso ao seu esconderijo. As calçadas estavam inundadas por dejetos das incontáveis fábricas e apesar do odor característico de esgotos, nenhum animal grotesco encontrava-se naquelas dependências. O garoto tossiu e sentiu o gosto ferroso, engoliu de volta e agarrou os ombros esfregando-os freneticamente na miserável tentativa de espantar o frio.

O som de motores ecoou pelas ruas e instantaneamente o garoto estremeceu, sentiu seu corpo todo arrepiar-se e tremer descontroladamente, sabia que não haveria outra escolha senão correr e tentar a sorte. Disparou pelo beco mesmo tendo consciência de que suas pegadas eram como uma trilha de pão que seria seguida por corvos famintos. Seus braços e pernas agitavam-se para frente e para trás enquanto impulsionavam o corpo para um avanço contínuo, a respiração pesada emitia um som mecânico e abafado e ele cerrava os dentes toda vez que os pés se chocavam contra o chão de concreto gelado.

Ele ouviu o som de pneus arrastando-se no asfalto e em seguida o som da estridente sirene policial. A entrada do esconderijo estava a pouco mais de trezentos metros, disfarçada com um grafite feito sobre a parede, os policiais estavam atrás dele, a pouco menos de cem metros; o fim era certo, era uma conclusão matemática.

O estampido ecoou pelo beco deixando um zumbido estrepitoso e persistente nos ouvidos do garoto, o impacto em suas costas o lançou para frente como se mergulhasse na fuligem sobre o chão. Ele caiu de peito sobre a rígida superfície, sua cabeça chocou-se contra o chão e quicou mais duas vezes antes que ele entendesse o que havia acontecido. A dor originou-se nas costas e percorreu seu corpo tão rápido quanto um choque elétrico, ao mesmo tempo, ele sentiu o líquido quente vazar de seu corpo, empapar as roupas e rumar para o cimento coberto de pó preto.

As motos pararam paralelamente ao seu corpo, uma de cada lado. Ele girou devagar e abriu os braços imitando uma cruz. Um dos policiais desceu do veículo e sacudiu suas roupas com rigorosidade habitual. Enfiou as mãos em todos os bolsos que encontrou até achar o que procurava. Puxou a mão de volta com um pequeno saco de couro sintético amarrado com um fio escuro.

O policial desamarrou o saquinho e despejou o conteúdo sobre uma das mãos em forma de concha; sementes.

— Desgraçado! — O policial chutou as costelas do garoto, que urrou, arqueou o corpo e tossiu como se sua garganta fosse explodir. — Onde conseguiu isso?

O garoto respirou fundo e manteve-se imóvel e em silêncio, apenas fitando a máscara negra, lisa e espelhada dos policiais. O que ainda estava sobre sua moto sacou a arma e apontou para ele num ato claro de ameaça, mas o garoto não cedeu, tinha um propósito, tinha honra e o mundo dependia dele; pensou nos tantos irmãos escondidos, vivendo no mais pútrido local da Terra como se fossem seres abjetos pertencentes a uma raça animal indesejada, ele queria que aquilo fosse uma realidade temporária, o que não seria se ele dissesse o que eles queriam saber.

— Você vai morrer por causa de uma rebelião falida garoto — disse o policial mais próximo dele como se aquele fosse o melhor conselho do mundo. — Vocês nunca vão conseguir levar isso adiante.

Um som estranho e abafado ecoou de dentro da máscara, logo foi tomando ritmo e o que era uma tímida risada, tornou-se uma estrondosa gargalhada. O policial que estava ao seu lado abaixou-se e agarrou a máscara do garoto, apertou o máximo que pôde e a puxou com toda a força que possuía. A cabeça do garoto subiu alguns centímetros antes das amarras se arrebentarem, depois chocou-se contra o chão novamente. O policial encarou o garoto que gargalhava incontrolavelmente e estapeava o chão.

— Vocês são muito otários mesmo... — Um chute nas costelas o calou por alguns segundos, mas após cuspir uma bolota de sangue, ele sorriu e com um tom suave, disse: — Nós já estamos adiante, é só olhar para trás que vocês vão ver.

O policial da moto disparou instantaneamente e no lugar onde havia um rosto juvenil, surgiu uma poça de sangue e restos de carne, cérebro e ossos.

— Por que fez isso?

— Achei que você ia olhar para trás e ele ia sacar uma arma, só me antecipei.

— Caralho, viu!? Você e sua ânsia de morte. — O policial colocou as sementes sobre o corpo do garoto, sacou um maçarico do bolso da jaqueta, pegou um pequeno frasco com líquido avermelhado que estava num compartimento na lateral da moto e ateou fogo em tudo. Cruzou os braços e ficou observando as chamas mudarem de cor e intensidade à medida que consumiam diferentes tipos de matéria. — É a quarta vez esse mês que interceptamos a entrega de sementes. O que me leva a duas importantes questões: onde estão conseguindo, e para onde estão levando?

O policial que estava sobre o veículo olhou ao redor mirando o topo dos prédios, desceu da moto e cutucou o parceiro apontando para o alto. Ambos fixaram a visão na parte mais alta da estrutura à frente, uma ínfima construção industrial se comparada às demais ao seu redor, e depararam-se com algo inimaginável. Uma parte da parede havia sido limpa e sobre a superfície crua de cimento havia a pintura de uma flor branca.

— Que porra é essa? — questionou aquele que incinerou o menino.

Ambos olharam para trás e encararam o corpo quase completamente consumido pelas chamas, engoliram em seco e se entreolharam na esperança de que um deles tivesse uma resposta ou ao menos uma hipótese. O silêncio perdurou por um tempo até que um osso estalou devido à ação do fogo.

— O que você acha que é? — perguntou o policial que primeiro viu a pintura.

— Encrenca... Das grandes.

— Você sabe o que aquela flor representa?

— Não.

— É uma flor que cresce na podridão, mas não se mistura a ela.

O líder da operação encarou o outro através do visor escuro e espelhado e raciocinou por alguns segundos, apontou o dedo para o parceiro e questionou:

— Tá dizendo o que eu acho que quer dizer?

— Tô dizendo que é uma possibilidade — redarguiu o outro.

— Não consigo imaginar nenhum homem que possa querer enfrentar o sistema.

O líder de operações cruzou os braços e respirou pesadamente. Inquieto, tamborilou os dedos sobre o tanque de combustível e encarou o painel da moto. Seus pensamentos voaram para longe enquanto sentia o aconchegante calor das chamas que espantava o intenso frio. Seus pensamentos voavam através dos arquivos policiais, pelas aulas de história na academia e por fim, às visitas ao museu militar e o museu da reorganização da produção mundial. Tudo era muito distante, difuso e desinteressante, arrependeu-se de não ter dado a devida atenção aos detalhes; afinal, o diabo mora neles.

— E se não for um homem? — questionou o subordinado.

— Mesmo assim, uma empresa estaria arriscando muito para colocar um plano desses em prática. Desde que foi proposta a colonização de Marte, muito dinheiro é movimentado entre os grandalhões... Difícil se opor a esse sistema de alta rentabilidade.

— Não, não. Não uma organização anônima, mas e se for uma mulher?

A última palavra saiu da boca do policial com credulidade, vibrou pelo ar com incerteza e chegou aos ouvidos do líder com indiferença. Não haveria no mundo uma mulher que quisesse enfrentar uma organização ultra capitalista, sendo que todas as mulheres eram parte do sistema; ao menos as que interessavam. O crepitar do fogo se tornou um pouco mais constante e as chamas estavam maiores naquele momento.

— Tá de sacanagem, né?

— Você se lembra da Aspirante Earhart e a Major Dumont, pilotas de caça de pulverização?

— Sim. Mas o que tem a ver?

— Elas usavam codinomes de flores e elas meio que se rebelaram.

— Tá, mas elas morreram na guerra.

— Certo... Mas nunca acharam os corpos.

— Puta que o pariu! — O líder encarou o painel da moto e precisou de alguns segundos para se recompor de tamanha surpresa. Embora não acreditasse que duas mulheres com poucas armas pudessem causar todo aquele estrago, a excelência dos serviços prestados e as incontáveis congratulações faziam-no repensar sua audácia em ignorá-las.

O fogo crescente emitia um som ululante típico de plasma consumindo oxigênio e isso trazia aos policiais uma sensação de solitude e de invulgaridade profissional, não se achava calor bom como aquele em todo lugar e nem todo dia.

O subordinado cruzou os braços sobre o peitoral largo ainda mais valorizado por conta da armadura de fibra de carbono e ponderou sobre seus questionamentos. O líder estava calado e apreensivo.

— Isso é terrível — afirmou o líder. — Se forem elas, tudo o que foi construído até agora pode ruir.

— Sim... Elas possuem treinamento, contatos, acessos e divergem do sistema.

— Contatos... Isso lança uma luz sobre uma questão. Alguém do setor de fertilização, ou da clonagem de sementes, está contrabandeando as bolotas.

— Mas ainda deixa obscura a pergunta de para onde estão levando. Sabe, a julgar pela quantidade de transgressores que pegamos nos últimos meses, arrisco dizer que esse movimento está crescendo.

O líder afastou-se da moto e a circulou a passos lentos. Parou diante do amigo e o encarou pelo visor refletor por um longo tempo, depois caminhou para o canto do beco, encostou-se a parede e observou o horizonte cinzento com nuances negras se formando sobre os prédios, apontou com o indicador mirando o prédio mais alto, a sede da corporação Asfaltobom, e questionou:

— Será mesmo que alguém seria tolo o bastante para segui-las? Pense... Quem é que enfrentaria o governo e aquela corporação se arriscando desse jeito?

— Talvez alguém que não tenha dinheiro para viajar até a selva — comentou o subordinado. O líder inclinou a cabeça, mas suas expressões eram ocultadas pelo espelho no capacete, o rapaz respirou e concordou. — É... Você tem razão.

O líder da missão voltou ao seu veículo e acelerou sem sair do lugar, olhou para o céu escuro e vendo cair a neve negra sentiu um arrepio percorrer sua coluna.

— Espero que sim... Mas, em todo caso, melhor investigar o pessoal de ciências.

— Certo — concordou o outro enquanto olhava os ossos carbonizados com pequenos pontos fumegantes, balançou a cabeça em negação e sussurrou: — Tão jovem!

As motos saíram do beco em alta velocidade deixando para trás somente os rastros de pneus e os restos mortais de um moleque azarado, que logo seriam cobertos pela fuligem.

Após o silêncio se acomodar no beco, das sombras emergiram seres abjetos, renegados e enjeitados pela burguesia que dominava a humanidade, que controla os bens materiais e naturais de toda a população. Os seres esquálidos com olhos fundos e lábios comprimidos, expressavam a dor que sentiam através da compressão de seus lábios. As mãos nodosas e feridas avançaram lentamente em direção aos restos carbonizados, sentiram ainda um pouco de calor exalando daquela massa deformada e uniram-se ao redor dela.

Do outro lado da rua, dentro de um carro de luxo, uma moça loura e curiosa observava aquela aglomeração enquanto agradava seu abastado pai terminar sua conversa com seus parceiros comerciais. Do ponto de vista daquela jovem, aquelas pessoas pareciam animais selvagens velando um membro da manada, sentiu-se incomodada e estranhamente solidária, como se aquelas pessoas fossem próximas dela.

Assim que a porta do carro deslizou para o lado, seu pai entrou com o rosto vermelho e nitidamente irritado. Estalou os dedos e suspirou prolongadamente, digitou alguns códigos em seu computador de pulso e instantaneamente o carro começou a se mover. A jovem desviou o olhar do grupo de pessoas, que erguiam o corpo queimado do chão, e mirou o topo do prédio, viu a imagem com contornos fortes, ângulos agudos e cores vivas e então perguntou ao homem:

— Pai, o que é aquilo?

O homem olhou curioso e muxoxou ao ver a flor que vandalizava a parede do prédio.

— Aquilo é vandalismo. É uma utopia esdruxula… — respondeu fitando a filha que o encarava com ar sereno e curioso. – É só a porra de uma flor de lótus. Agora chega de perguntas e tome uma cerveja comigo.

— Posso escolher?

— Entre as pretas, pode.

— Então pode ser qualquer uma — respondeu ela encostando a testa no vidro.

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