No dia em que Luana completava doze anos, seu pai foi seu Caronte. No breve tempo de um zíper de calça se abrindo, a menina foi tragada pelas águas gélidas de um novo mundo. Era frio e escuro dentro do homem.
O amargor do fim precoce consumia até mesmo a própria Morte; colocou a foice de lado e chorou, como chorava toda vez que tinha que levar um bebê ou uma criança. Luana seguiu o manto preto esvoaçante. O ofício daquela velha Senhora era, por tantas vezes que suportasse, injusto e melancólico, embora, ainda assim, necessário, indispensável.
Carlos, pai de Luana, sabia que conseguia enganar facilmente as pessoas. Explorando e abusando de suas habilidades sociais tortas, conseguira o cargo de evangelista. Ser membro da igreja serviria como um ótimo “esconderijo”. Como era viúvo, a única pessoa que pôde comemorar consigo seu ingresso na igreja era Luana. Com o tempo que passava sem a esposa, Carlos ia tornando-se cada vez mais autoritário com a filha, até a noite em que tinha bebido muito do “sangue de Cristo” e acabou perdendo o controle de si. O demônio tinha dominado seu corpo e teria lhe tirado sua filha. Era disso que acabou se convencendo e era nisso que fez com que os irmãos e irmãs na igreja acreditassem.
Carlos foi preso, escrachado e agredido de várias formas físicas e verbais pelos outros detentos. Deu sorte de sair vivo da cadeia. Prometeu se transformar numa pessoa melhor, entregar-se totalmente para a igreja onde foi aceito de volta. Na tarde em que virara pastor, foi visitar o túmulo da filha. Levou uma bíblia. Aproveitando o silêncio que estava, levantou a bíblia para o céu e orou. O perdão não viria pela filha morta, que olhava odiosa para aquele embuste de homem. Infiel, descrente, pecador. Aquela alma deveria arder.
Mãos invisíveis seguravam firmes e apertadas nas mãos de Carlos. A bíblia que segurava explodiu em chamas, mas não se desfez como papel comum. A bíblia começou a derreter como cera. E toda aquela cera e fogo, iam lambendo os braços do pastor, alcançando seus ombros, seu peito, pingando em seus pés. Os gritos dolorosos ecoavam pelo cemitério como se a alma daquele homem já ardesse em danação. Logo a bíblia só existia grudada ao longo do corpo de Carlos. Quando os gritos pararam, Luana perseguiu o pai até o inferno. O acerto de contas estava apenas começando.
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