Maria de Lourdes, uma carola de rosto de fuinha, olhinhos escuros, muito juntos e pequenos para aquela cabeça rechonchuda, olhava com reprovação para o padre Gael de Valença. Passava de uma e meia da tarde e, na maioria dos dias, a cozinha já deveria estar arrumada. Mas não hoje. Naquela sexta-feira ela teria de esperar mais um pouco até seu sacerdote terminar de comer... e beber, naturalmente.
Como um bom padre, além de gerir sua paróquia com dedicação admirável (e pequenos milagres que o ajudavam a manter as contas sempre um centímetro acima do vermelho), era também, um bon vivant. O que significava usar de sua pequena influência na comunidade para fartar-se de todo tipo de comidas, de convites para restaurantes, festas e – o principal – ter todo o vinho (e o que mais viesse) que pudesse ingerir à sua disposição.
Nossa Dona Lourdes mesmo, além de se voluntariar para cuidar de parte das necessidades da igreja do Sagrado Coração de Jesus da Boa Vista, junto de duas solteironas, Isoldina de Melo (aquela magricela arrogante) e a puxa-sacos clericais, Filomena Duarte, sempre o chamava à sua casa para os almoços de domingo.
Aliás, as três o disputavam nos finais de semana, uma querendo agradar mais que outra, doidas por garantir seu pedacinho no Céu, nem que fosse uma nuvenzinha do tamanho de um sofá. O restante da semana, se revezavam nos afazeres da igreja e da reitoria.
Não era lá uma Catedral da Sé, como na certa as velhas fanáticas ansiavam, contudo serviria na expiação de seus pecados. Ficava ali, próximo à Curva da Galinha, não muito pequena ou longe da Basílica para ser tida como uma humilde capelinha de bairro, mas tampouco grande demais para chegar a fazer sombra à de Nossa Senhora da Conceição de Aparecida, no centro da cidade.
Gael de Valença, a bem da verdade, se dispunha a dar o melhor de si com as benesses que lhe foram dada para, um dia, quem sabe, ser notado pelos que vivia chamando de "Peixes-Grandes de Batina". Para isso, precisava tolerar as gralhas enxeridas.
— Vai ficar me olhando almoçar, Dona Lourdes? — O sol do começo da tarde entrava pelas janelas da sala de jantar e caíam sobre o pároco, tornando-o tão brilhante quanto um santo esculpido em alabastro.
Se os santos fossem retratados com rostos macilentos e mal-humorados, é claro.
Maria de Lourdes era a mais idosa das três e a que melhor se dava com padre Gael; muito provavelmente se devia ao fato de ser a mais sincera delas. E não seria agora que ela guardaria para si o que pensava.
— O senhor já terminou de comer tem meia hora — disse-lhe mirando a taça e as duas garrafas, uma vazia e a outra pela metade, sobre a mesa. — Estou aqui me perguntando se vai conseguir realizar a missa das sete se continuar nesse pique.
— Lourdes, meus pais se foram há uns dez anos, e eu já era emancipado mesmo antes disso.
— Acho que está perdendo o controle, Padre.
Gael, a alva ainda envergada da missa das onze horas, a estola verde dobrada e pendurada no espaldar de uma das cadeiras, fitou a taça, pensou em falar qualquer coisa, mas só a encheu de novo de vinho e o sorveu.
— Devo trazer uma terceira garrafa?
— Acho que poderia ir para casa, que tal? — disse Gael e enxugou a boca na manga da alva adornada com três cruzes amarelas, sem se atentar ao risco de manchá-la. — Eu comi bem. E o seu esposo?
— Ah, aquele rabugento sabe se virar. No mínimo almoçou no boteco do Seu Francisco. Ou já encheu a pança com torresmo e cerveja no empório do Bastião.
E Solano é que é o rabugento, pensou o padre, observando com atenção extra como o coque de sua fiel esticava-lhe a pele manchada do rosto como uma cirurgia barata feita com prendedores de roupa para puxar as pelancas. Ela só pode estar brincando.
— Vem cá, Lourdes... Você esteve por toda a vida a serviço de Deus, mais até do que eu, pois quando assumi esta paróquia, já servia ao padre Rômulo. — Ele fez um gesto para que a mulher se sentasse com ele. — Vamos, não sou Jesus, pode conversar comigo.
Dona Lourdes puxou uma cadeira e, com um bico emburrado, sentou-se.
— Não sou o primeiro que vê bebendo. Tenho certeza que já viu coisas bem piores. Rio Preto é grande, mas bocas ávidas por fofocas fazem as notícias correrem mais que a internet.
— Não uso aquele instrumento feito pelo diabo — retrucou a velha com um desprezo categórico, persignando-se.
— Oh, claro que usa! Talvez não como todo mundo, mas tem o seu "Zap" e eu sei. A senhora faz parte do grupo aqui da igreja e também do das Irmãs em Cristo, com Isoldina e Filomena. Pode não ficar navegando por aí atrás de coisas erradas, mas usa, sim.
— Só pra isso. É para organizarmos as tarefas e...
— Eu sei. Eu sei, Lourdes. — Se ele não a atalhasse, ficariam naquilo por muito tempo e tudo o que o padre queria era um pouquinho de sossego. — Não é o mesmo que urinar no altar, então se fica ou não no Whatsapp, não é da minha conta.
Ele percebeu como a mulher ficou na mesma hora da cor de uma cereja. Ver aquele rostinho esquisito e repuxado, os olhinhos de contas se desviando para o chão, o fez repensar o que falou.
— Isso foi rude.
— Foi, sim, senhor.
— Peço desculpas. Pode ter certeza de que é o vinho falando por mim.
Maria de Lourdes gesticulou um "deixa pra lá" com uma mão que começava a perder a luta contra a artrite.
— Estou acostumada com o senhor. E com Solano também. Aquele italiano velho tem a boca suja como a sua.
— Então a senhora sabe algo básico sobre nós, Lourdes: vestimos hábitos, celebramos a Deus, mas, ora, estamos longe de sermos perfeitos! Eu sou tão humano quanto você.
Para Dona Lourdes, aquilo devia ser pura conversa de esquerdista. Um padre que leva à risca o santo caminho da fé não se entrega a vícios ou se diz "igual a todo mundo", não senhor!
Parecendo ler os pensamentos dela em sua cara amarrada, Gael disse:
— Somos alguns dos mais falhos, se quer saber. A senhora teve sorte, não serviu a nenhum problemático antes de mim; padre Rômulo foi um homem sério, e seu antecessor...
— Padre Antônio de Andrade — disse Maria, adiantando-se. — Que Deus o tenha.
— Isso. Então, eles podem não ter tido de enfrentar certas coisas. Porque, se tivessem, acredito que beberiam – ou fariam até pior, como sei de alguns que já tivemos aqui em nossa cidade.
Um rubor tomou novamente as faces de Dona Maria. São José do Rio Preto já tivera todo tipo de figuras na igreja. Alcoólatras, festeiros, padres de não sair de casas noturnas e muitos com casos com mulheres – casadas ou não. Outros com rapazes (para que a tradição não se perca). Então, talvez, perto disso tudo, Gael de Valença era até bastante comedido.
Ou era o que ele queria que achassem. Gael tinha um passado (Não, aquilo não estava certo. A festa nunca acabara.) que não seria muito bem visto, caso decidisse sair por aí contando. Pensando nisso, ele continuou:
— Se eles soubessem de coisas que eu sei – e não adianta me olhar com essa cara porque não posso contar – creio que alguns teriam... — Padre Gael se calou; a constatação de que podia estar falando demais o atingiu, com ou sem vinho.
— O quê? Não vai me contar, Padre?
— Sabe que não posso. — Disse isso e se levantou. — O que ouço durante as confissões, fica entre mim, o penitente e Deus.
— Alguma coisa está mexendo com o senhor.
— Já pode tirar a mesa, Lourdes, e me desculpe por tomar seu tempo. São quase duas horas. Tenho confissões a ouvir. Deve ter gente me esperando... Eu não posso me distrair assim.
Maria de Lourdes passou a tirar todos os pratos e talheres, mas sua carranca era mais pétrea que nunca. Seu padre enfrentava alguma coisa que o estava transtornando, e não podia falar com ninguém a respeito.
Ao sair, ele cambaleou por um ou dois passos, depois firmou as pernas e lhe deu um sorriso meio apagado.
— Deus te recompense, minha filha — disse, ainda que ela tivesse idade para ser avó dele. E então se virou, antes que a velha carola pudesse ver que ele chorava.
Merci pour la lecture!
Ótimo primeiro capitulo! Não sabe como estava ansiosa pra saber quando nos traria algo novo!!! Já estou lendo e adorando!!!
Uma história pertubadora. Te joga um monte de verdades na cara e te faz repensar sobre como a religião só te mostra o que quer que veja. É sobre como somos falhos e seríamos mais ainda se tivessemos poder. Como de costume, muito bem escrita, narrada e com o estilo gostoso que já me acostumei, de nem ver o tempo passar enquanto estou lendo o autor. Para quem gosta de horror, acidez, humor e sobrenatural, é um prato cheio. Recomendo demais!!!
Valeu a pena esperar uma nova história tua. Valeu muito!!! Como sempre, uma escrita fantástica, bem estruturada, dialogos de rachar de rir mesmo em meio ao terrorzão e ima trama que prende e diverte do começo ao fim. Já estou te recomendando.
Esta trama é muito bem escrita e apresenta uma premissa instigante e sombria. O Wesley utiliza uma linguagem envolvente e intensa para descrever o personagem principal e sua vida comum como padre, mas com tons de cinismo e desinteresse pelo que se espera de um religioso. A entrada do homem misterioso com seus penitentes terríveis traz um elemento de suspense e fantasia que invade a história, promovendo uma mudança radical na trama e no próprio Gael. Estou amando acompanhar ❤
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