A garota tossia alto e com força, estava doente e para completar lhe faltava ar nos pulmões, mas não podia parar de correr. Maldita hora em que levou para casa aquele corvo idiota. Havia encontrado a ave caída com uma asa machucada por um acaso enquanto andava próximo aos arredores da floresta que circundava a casa de campo dos seus avós, onde estava passando as férias.
Sempre foi encantada por corvos, ainda que, quando criança, um deles a atacou e deixou uma cicatriz comprida de três garras em seu ombro esquerdo. No entanto, continuou gostando muito das aves e até mesmo tinha feito um incrível trabalho de pesquisa sobre os corvos e sua incomparável inteligência. Para ela os corvos eram as aves mais incríveis e inteligentes, sempre achando uma grande bobagem relacioná-los às coisas ruins, pensava que não poderia haver ave mais brilhante e majestosa.
Agora, estava quase certa de que nunca mais iria querer ver um deles na vida. Tudo isso porque o corvo a quem ajudara, roubou seu colar e fugira justamente no dia em que ela teve uma forte febre, e seus pais tiveram que sair para comprar medicamentos na cidade mais próxima. Recebeu o colar como uma herança de família; o pingente se tratava de uma chave no formato de coração, e quando perguntou o que possuía uma fechadura tão peculiar, sua família lhe entregou uma pequena caixa de estilo vitoriano. De acordo com sua avó, a belíssima porta-joias possuía um poder especial: concederia um único desejo ao ser aberta a cada 50 anos, contudo era efetivo apenas para mulheres primogênitas e uma vez feito, jamais desfeito.
Mais tarde naquele dia e com a sorte ao seu lado, a garota ponderou qual desejo realizar enquanto girava a chave lentamente, numa expectativa quase palpável, deu a última volta, foi quando ouviu o corvo na gaiola imitando sua voz. Sua atenção desviou da caixa já aberta em suas mãos e voltou-se diretamente para o corvo. Andando em sua direção, tentou fazê-lo repetir algumas palavras, sem sucesso, como uma máquina quebrada repetia a mesma palavra "DESEJO, DESEJO, DESEJO". Desolada pela incapacidade de entender, voltou-se para a caixa, lembrando que ainda não tinha feito um desejo, e olhando para o corvo que a imitava pensou quase inconscientemente ''Eu gostaria de ser um corvo'' mas a garota não percebeu o que havia feito e talvez quando notasse, já seria tarde demais e nada seria como antes.
Agora ela rastejava pela casa antiga tentando não fazer barulho ao sair de fininho, um ato tanto quanto trabalhoso levando em consideração que as madeiras velhas do piso rangiam a cada passada. No fundo a culpa a corroía, claro que poderia ter chamado os avós, mas com a idade avançada receou de que eles não pudessem ir tão longe e de modo algum a deixariam sair em seu estado. Por isso, fez o mínimo de movimentos ao descer da cama e calçar as botinas, já que estava devidamente agasalhada com calça e casaco. Ao chegar na porta dos fundos que a levaria diretamente à floresta, agarrou um pequeno gorro que pendia no gancho da parede e enfim saiu em disparada correndo atrás da ave, floresta adentro.
Não achava, porém, que o corvo iria tão longe. Quando percebeu já estava perdida na floresta e o céu dava sinais de que o fim da tarde era iminente. Ela parou para tomar fôlego, se sentindo fraca quase a ponto de desmaiar e então viu o corvo parado em uma grande árvore, ou pelo menos o que havia sobrado dela. Os galhos e tronco da árvore caíam para lados opostos como se tivesse sido atingida por raio bem forte que a partiu ao meio e, com o tempo, pendido para os lados enfim. No entanto, não achou explicação para a grande abertura no meio do tronco, que mais parecia ter sido aberta de propósito. Ela podia ver claramente a separação entre a parte atingida pelo possível raio até parar e chegar aquele círculo aberto atravessando-a. Do jeito que a árvore se encontrava já deveria ter caído, mas ao perceber as raízes grossas imaginou que elas aguentavam o tranco.
O corvo voou para a grande abertura no tronco e parou como se esperasse que a garota fosse ao seu encontro, e ela foi. De uma forma sorrateira e lenta, ela caminhou o mais calmo que conseguia até a ave para não a assustar. Mas com sua garganta coçando e o olhar fixado no corvo, não percebeu uma raiz alta no chão que a fez tropeçar e soltar um grito rouco, tossindo ainda mais que o esperado. Quando olhou para cima, assustada com o pensamento da ave ter ido embora, se surpreendeu ao vê-lo ainda parado. Ele a olhava como quem tem algo importante a dizer, mas por causa da febre e da corrida, ainda mostrada recente em sua respiração, achou que estava delirando.
Pôs-se de pé devagar, ainda meio tonta e dolorida pela forma como tinha caído. Ela nem mesmo ousou se limpar, apenas apoiou as mãos no joelho, mesclando seu olhar entre o corvo traidor e seu colar de chave. Pensou em surpreender a ave num movimento surpresa, para que se assustasse e soltasse o colar, e foi o que fez. Concertou sua postura, fingindo olhar para os lados, e num único movimento pulou na direção do corvo que voou assustado, deixando cair o colar no meio do buraco da árvore. Foi só o tempo da garota agarrar o pingente de chave para seus joelhos cederem de vez. Podia sentir que sua febre estava muito alta, seus pulmões se forçavam a trabalhar, uma forte tontura atingiu sua cabeça e de repente uma vertigem tomou conta de seu corpo, era como se o chão estivesse afundando e ela estivesse no alto, a febre enfim lhe causando alucinações.
O corvo agora gritava ao seu redor, um som gutural alto que ecoava em seus ouvidos tornando a tontura pior, fazendo-a perder o equilíbrio e cair jogada no chão. O grito do corvo parecia cada vez mais alto e ao focar a visão embaçada percebeu que ele estava ao seu lado se contorcendo no chão, seu choro agora não mais parecia um agouro, mas um grito de dor, como um pedido de ajuda e a garota se compadeceu dele. Na verdade, talvez fosse empatia, agora ao que provavelmente seria seu leito de morte, estava sofrendo tanto quanto ele, e um pensamento louco atravessou-lhe a mente de que talvez ele estivesse sentindo toda a dor que ela sentia como um karma pelo que fez, ou ainda talvez pela estranha conexão que sentiu com a ave desde o primeiro momento que o viu.
Seja qual fosse o motivo, o cérebro da garota não estava em condições de desvendar e enquanto olhava o corvo em sua agonia, invejou-o pela capacidade de expressar sua dor. A garota sentia suas entranhas queimarem, e sua voz era apenas uma lembrança, as roupas já ensopadas de suor e lama incomodavam, e um súbito enjoo forte a fez vomitar em si mesma. Malmente teve forças para mover o rosto para longe daquele conteúdo repulsivo, a cabeça nunca pareceu pesar tanto, assim como todo o corpo. Era como se uma pressão invisível a puxasse para baixo, mas não pode acreditar em seus olhos quando notou o que realmente acontecia.
As raízes da grande árvore se moviam ao seu redor, embalando seu corpo e trazendo-o para debaixo delas, pânico tomou conta de si e num pico de adrenalina tentou se debater e gritar, mas as raízes eram fortes e sua garganta estava ruim demais para a voz sair. Todo o esforço gerou uma série de tosses roucas que ardiam e coçavam, fazendo os olhos encherem de lágrimas. Pensou estar alucinando; uma visão ilusória criada graças a alta temperatura de seu corpo somada ao medo. Porém ao seu lado notou que o corvo também era lentamente embalado enquanto tentava se debater, ele a lançou um olhar de súplica, como se fosse culpada de seu sofrimento e que tivesse piedade. Movida pela compaixão inexplicável que a apossou, a garota esticou o braço ainda solto para alcançá-lo, mas o tempo não foi o suficiente e quando as pontas de seus dedos encontraram as penas da asa do corvo mais raízes cresceram, prendendo seu braço e deixando-a completamente imóvel. Era seu fim e o olhar que encontrou nos olhos do corvo a disseram que ele também percebeu isso, por fim parando de lutar.
A garota não sabe quanto tempo se passou, mas o breu que se levantava no céu era um lembrete claro que a noite estava começando e que suas chances de sair viva dali eram menores que zero. Na realidade, não sabia como ainda estava viva, sua febre já deveria a ter levado embora, ainda assim não é como se fosse durar muito, podia sentir cada parte do seu corpo desligando aos poucos e nem sabia se ainda respirava, pensou que existiam formas menos trágicas para morrer e desejou ter seus pais com ela ali.
No entanto, nada podia tê-la preparado para a dor excruciante que se seguiu; sentia cada musculo arder, cada osso se retorcer, era como se um por um eles se quebrassem até virarem como a terra que a prendia. Quis gritar, berrar e clamar, mas até mesmo seu cérebro parou de responder, sentiu lágrimas rolarem, porém não eram lagrimas, agora seu próprio sangue escorria de seus olhos, boca e talvez até mesmo por entre seus poros. Quis morrer! A angústia perante tal sofrimento a incapacitava de raciocinar um livramento mais benéfico que a morte. O corvo não mais gritava, nem se debatia, nem choramingava, devia estar morto. Pobre coitado, sortudo e pobre coitado. Foi arrastado para tal infortúnio junto a ela, e quão injusto era para tão pequena criatura sofrer o que ela sofria agora.
Estava frio, sua pele parecia ser a única coisa restante em seu corpo. Chorava lágrimas vermelhas, quentes, assim como uma sopa quentinha, uma coberta felpuda e o abraço de uma mãe. Oh! sua mãe, seu país, os avós! Oh! sua família! O que seria deles, o que tinha feito? Que terrível ideia, que estupida ideia! Oh Senhor! O que eles pensariam e pior, o que sentiriam? Oh Senhor! Como eles à encontrariam? Que grande tragédia traria sobre eles, sim, que grande desastre será. Oh! coitados deles. Oh! coitada dela. E oh! coitado do corvo. Eram todos pobres e desafortunados coitados!
Sua vez chegou, a garota podia sentir, foi então que ouviu o último grito do corvo, ainda não estava morto afinal. Ele repetiu imitando sua voz ''DESEJO, DESEJO, DESEJO'', a garota então se lembrou da caixinha, da chave, do motivo de estar ali e finalmente do seu desejo, sim, percebeu que tinha feito um desejo e desejou se tornar um corvo. ''Uma pena'' pensou enquanto sentia toda dor indo embora, ''Não pude viver meu desejo'' e enfim padeceu. Seu corpo relaxou, ou o que sobrou dele; as raízes continuaram a puxar, e mesmo morta, seus ossos se quebravam. Dizem que somos feitos do pó, então para o pó a garota retornava.
Ela não pode ver quando seus pais a encontraram, mas no lugar de seu corpo, encontraram altas raízes de uma grande árvore retorcida com um estranho buraco no meio e suas roupas agora envolviam o corpo de um corvo que carregava o colar de chave no pescoço. Seus pais gritaram, choraram e se lamuriavam, confusos, perdidos, com medo, e seus corações doíam como se fossem dilacerados. Apesar de tudo, levaram a ave que malmente respirava para casa, como se ele fosse uma lembrança de sua garotinha que sempre amou corvos. O trataram, aqueceram, e até tentaram alimentá-lo, porém não importava o que fizessem, o corvo não acordava. Preocupados, resolveram levá-lo ao veterinário, pois tinham se apegado a ave, como se pudessem sentir a sua filha mais de perto a cada instante que passavam juntos ao corvo.
Eles levaram-no com todo cuidado, pois além de nunca acordar, o corvo era extremamente leve e mole, como se seus ossos não o sustentassem. O veterinário logo notou algo errado ao segurá-lo e no mesmo instante pediu que fizessem uma radiográfica completa do animal. Oh Senhor! Mas que péssima ideia. Tão tolos, todos eram tolos! Em um instante desejariam nunca terem tido tal ideia. Oh Senhor! Desejariam continuar na mais absoluta ignorância que ao menos era capaz de confortar seus corações de luto e mais do que tudo, desejariam jamais terem trazido o corvo consigo.
Quão assombrosa foi a revelação de que dentro do pequeno corpo do corvo jazia não o seu próprio esqueleto, mas o esqueleto de um ser humano, a filha deles. A mulher passou mal e desmaiou no mesmo instante, o pai confuso e com raiva gritava exigindo uma explicação para tal imagem perturbadora, o doutor estava paralisado e seus olhos dobravam de tamanho tentando absorver a situação. Os pais da garota nunca saberiam que sua garotinha que amava corvos, na verdade sempre desejou ser como um deles e a garota também nunca saberia que seu maior desejo se tornou real, mas a custa de sua vida e do coração daqueles que a amavam. Talvez se tivesse a chance a garota mudaria seu desejo, mas a verdade é que as vezes desejamos aquilo que não deveríamos, e de geração em geração a regra era clara: Uma vez feito, um desejo jamais será desfeito.
Merci pour la lecture!
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