Histoire courte
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Bruxas

— Uma... bruxa?

A segunda palavra soou hesitante. Sussurrada. Choramingada. Doeu-lhe o pequeno maxilar. Tenso. Quase não se flexinando.

Mas, alguns dos poucos dentes já doeram muito mais, muitas noites atrás. Arrancados bem antes do tempo. Tinha certeza de que fora por isso que a Fada dos Dentes se aborrecera e nunca mais viera. Nada de moedinhas embaixo do travesseiro de farrapos embrulhados em raízes secas. Fadas dos Dentes são rancorosas, lamentou-se em silêncio. Silêncios são reconfortos empáticos e inúteis.

O miúdo e esquelético peito arfava. Não soubera dar outra resposta. Deveria ter sido menos covarde. Menos sincero. Arrependimento! Arrependimentos são mar para quem não sabe nadar. E suas marés não nos afastam para terra firme. Nunca!

— Claro que não, pequenino, respondeu-lhe carinhosamente, a mulher.

De modo mais maternal que de costume.

— Bruxas não existem, não é mesmo? Testou-lhe mais uma vez.

— Você tem medo de mim?

Ele baixou os olhos chorosos. Dúvidas! Dúvidas davam-lhe dores de barriga. E dores de barriga como aquela, provocavam uma vontade idiota de ser sincero. Ou, de apenas adormecer antes de qualquer outra coisa. Acordar o mais longe dali.

Nenhuma das duas aflições nunca resultava em nada de bom. Noites, assim como dores, nunca eram piedosas. Porém, não havia mais volta.

O vento gelado lá fora entoava a canção da danação. As sombras dos lampiões agitaram-se pelos cantos e frestas envelhecidas da choupana.

A criança as temia. Elas sempre gargalhavam quando ele acordava e dava-se pela falta de seu boneco. Eram as sombras que o levavam para longe e o devolviam cada vez mais mutilado. Embora, nunca visse! Mas, o judiado brinquedo lhe sussurrava, assim que conseguia. Logo depois de remendado. Com fios de sipó verde, o que sobrava de seu corpinho. De sua sanidade.

Na hora mais febril da noite era quando as brumas malignas agiam. Arrastavam-se lascivas e silenciosas, teto abaixo. Escorriam em longos sulcos pelas paredes de tijolos de barro e bambus secos e amarelos. Pariam suas crias da cor de noite sem luar. Deformados diabretes. Olhos tão vermelhos quanto as esfomeadas ratazanas que roíam os pés de seu catre no verão. As mesmas que devoravam os filhotes das aves nos galhos das árvores que adoeciam ao redor. Antes de não haver mais nem isso na floresta moribundo. Uma fome anormal. Que nunca cessava.

Então, agarrava-se ao pequeno companheiro e vigiava. Até que o sol acordasse.

— Sim ou não? Insistiu a mulher.

Um tom rouco. A criança, pálida feito cerâmica de candeeiro. Semicerrou os olhos. Apertou o desgastado boneco de palha por entre os dedinhos trêmulos. Resmungou num fio de voz:

— Às vezes!

— "Às vezes"... Como agora?

— Hum-rum...

— Ah, "hum-rum"..

A mulher largou a colher na imensa caldeira que fumegava um quase nada para sorver. Exalava desespero em forma de pequenas almas aspirais que logo desapareciam. Livres da fome.

O inverno daquele ano acometera-lhes de forma impiedosa. Transformara tudo numa gelada cova. Aberta. A boca arreganhada de fome. Sempre escuro lá fora. Sempre gelado e fúnebre.

O vazio e a neve. Cortejo e agouro. Uma floresta esbranquiçada que agonizava sem o as orações do luar por noites sem fim. Nem sequer espíritos condenados a vagar ou coiotes. Todos eles entocaram-se. Abrigaram-se nas tocas e jazigos mais profundos. Devoravam-se. Lamentavam e praguejavam contra o frio ceifador que sugava a gordura e a carne dos ossos. Dilacerava a sanidade de homens, animais e demônios.

Não havia mais o que cozinhar. Nem raízes amargas. Nem ervas daninhas. Nem esperança. Ou delírios.

Sob seu pesado e esfarrapado manto o estômago rugiu. Dilatou as pupilas. Aguçou o olfato.

A criança cheirava tão deliciosamente terna...

Então, inclinou-se e a apanhou carinhosamente no colo. Afagou seus cabelos sujos. Beijou sua face desnutrida e a ninou.

Os olhinhos escondiam-se nas covas do receio que desnutria. Na penumbra da pertubação e do desnorteio. Teimavam em fitá-la! Vigiavam-na. Agradecidos.

O pequenino teimou-se mais forte que a noite. Mais forte que a fome. Até que tivesse certeza de que seu boneco pudesse dormir em paz. Então, depois e só depois de certificar-se de que as sombras não abririam sorrateiramente suas mãos, imitou-o. Confiou.

Faminto. Seguro.

Sob uma suave perjura de bons sonhos. E uma salivante e sussurrante canção.

Sobre casinhas de palhas.

Noites sem fome.

E lobos que não precisavam entrar.





20 Novembre 2022 22:58 9 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Marcelo Farnési Não sei bem o que flores, cangurus de pelúcia pervertidos e chuvas de guarda-chuvas têm em comum. Talvez, poesia e alucinações. O fato, é que meu psicanalista é bem estranho.

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Daniel Trindade Daniel Trindade
Saudações! Sou membro da Embaixada Brasileira do Inkspired. Parabéns, sua história foi examinada recentemente e está sendo verificada. Desejo que ela seja apreciada por diversos leitores de nossa comunidade. Sucesso e felicidade em sua arte! ♡
October 08, 2023, 23:04
Le Loustic Hop Le Loustic Hop
Que história sensacional, Marcelo! Você pegou o básico e fez algo incrível e novo. Parabéns, excelente!
June 27, 2023, 01:34

  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    Gratidão, Le! Bom demais saber que tive sua atenção e seu feedback . June 27, 2023, 10:16
Katia Oliveira Dos Santos Andrade Katia Oliveira Dos Santos Andrade
Lembrar de confiar na percepção sempre! As vezes, encontramos com a velha bruxa no caminho, sentimos receio de sua aparência, de sua aproximação, mas logo que ouvimos nosso eu seguimos seguros e mais sábios. Ou não! Maravilhoso texto!
November 21, 2022, 01:51

  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    Obrigado, escritora! Uma honra ter você aqui. December 06, 2022, 15:18
~