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- O que vocês fizeram para deter a criatura?

- Fiquei as últimas noites da lua cheia acordado quando ele passava ao largo da casa ou pela propriedade era possível ouvir os cães chorando, vacas mugindo de medo, os cavalos nervosos nas baias, era uma agonia terrível seu moço mas a gente não podia viver daquele jeito só esperando pra morrer, eu não concordava com o pensar do meu irmão e levei um tempo pra achar uma solução satisfatória e tentamos sim resolver o problema.

Quando deu a quarta feira seguinte eu fui na cidade, comprei madeira e barras de ferro, fechaduras, treliças e cordas, muita corda, muita madeira e ferro dentro dos paióis começamos a construir 2 jaulas de ferro e madeira e um alçapão com porta larga, enterrado no chão pra quando ele passar correndo a porta se fechar com o peso e só abrir pela parte de fora, essa armadilha ficou num trecho da plantação, era menor e mais incomoda que as outras, meu irmão calculava que o bicho tivesse uns 3 metros e meio de altura fizemos a caixa larga e comprida o suficiente pra ele se mover mas não conseguiria ficar em pé nela, uma vez que ele caísse nessa não iríamos desenterrar até passar a lua cheia, uma vez que ele voltasse a forma humana seria mais fácil conduzir a um lugar apropriado para lidar com sua bestialidade. Reforçamos e bloqueamos portas e janelas da casa principal e do povo próximo que trabalhava no sítio. As outras gaiolas ficaram penduradas uma no pé de castanhola e outra em um pé de tambor, ele passava por elas sempre era só acionar uma corda escondida que a jaula caia por cima, nós 5 armados ficaríamos esperando em casa o amanhecer para daí tomar a providência certa.


- Os planos eram bons, mas espere, o senhor disse 5 pessoas armadas mas naturalmente só o senhor, seu pai, irmão e padrinho sabiam manejar armas, mais alguém teve coragem de se juntar a vocês?

- Mainha, sim, essa sua cara de bobo é que me espanta senhor jornalista, nunca viu uma mulher manejando armas?

- Para ser sincero com o senhor, não, nunca, até ouvi falar de uma ou outra dama da noite manejando facas, navalhas, mas armas de fogo, nunca.

- Pois saiba, no meu interior isso é comum, o homem é uma raça triste e de um coração por muitas vezes ímpio é uma maneira de se defender, ao menos quem tem condições ou equilíbrio mental para ter uma arma, porque se não se tem um ou outro é apenas um objeto que causa tragédias, menores, maiores, mas ainda assim tragédias. Mainha foi ensinada desde cedo, em períodos de muita seca ela saia com meu pai ou os irmãos dela pra caçar no mato, sempre pegava as maiores presas sem causar tanto estrago, cuidadosa com suas coisas não deixava nada a mostra ou fácil pra qualquer um chegar nelas, viviam em baús trancadas, ou na parte alta dos armários.

- Isso é fascinante.

- Mamãe era uma mulher de muita fibra.

Passados os dias e terminadas as jaulas a lua cheia ia se aproximando novamente, e nós com ajuda do pessoal que também vivia no sítio colocamos o alçapão num buraco lá na plantação, as outras gaiolas ficaram penduradas, durante o dia dava pra ver elas de uma certa distância e todos tomavam cuidado pra não acionar por engano, a noite, as cordas ficavam bem escondidas, testamos elas é verdade, tinhamos fé de funcionar. O novo padre chegou na cidade, mamãe e madrinha foram conversar com ele para deixá-lo ciente do que estava acontecendo, ao que se sabe ele notificou a Santa Sé, não se imaginava que algo assim pudesse de fato existir. O padre veio a minha casa, realizou um ofício benzeu todo mundo, deixou umas garrafas de água benta, medalhas e relíquias e nos exaltou contra o mal mas antes do fim da tarde retornou a cidade, reuniu os fiéis da igreja e começaram uma novena, cedo da noite, querendo ou não as pessoas ainda tinham medo. Quando a lua cheia chegou nenhum de nós estava em paz, o passar das horas foi a base de café e muita oração minha madrinha coitada, não largava o terço, não saia do pé da Santa, minha mãe levava água, um alfinim, um pedaço de bolo a pobre nem olhava direito, a agonia se lia no rosto e traduzida nos pai nossos e salve rainhas duraram horas e horas até que deu um pé de vento perto da meia noite que nos deixou a todos ainda mais alertas. Quando o vento passou ouvimos ao longe um uivo, tão alto e aterrador que nós ficamos em silêncio, tudo parecia ter parado e ficado em suspense. Poucos instantes que pareciam durar uma eternidade e quando estávamos quase recuperando a calma outro uivo dessa vez bem perto da casa, ouvimos atentos as pesadas passadas de uma criatura, o medo se lia em nossas faces, respiravamos por costume sem nos dar conta quando começaram as pancadas na porta da frente, o arranhado incessante, os grunhidos de ódio e insatisfação, não sabíamos por quanto tempo a porta ia aguentar mas estavamos todos ali, prontos, armas em punho, concentrados e ouvimos novamente um uivo ao longe, agora sim era certo havia mais que uma besta a nossa espreita seja como for aquilo parou, se afastou da porta e saiu desembestado na carreira, minha madrinha chorava silenciosa mas não deixava de rezar, mainha mais contida, mais fria que todos nós subiu as escadas e foi a janela mais alta ver se avistava alguma coisa, nada, mas outro uivo ainda mais alto e estranho chegou a nossos ouvidos, pela distância um dos dois poderia ter caído no alçapão, era uma esperança pequena ainda mas muito palpável, mainha desceu as escadas, colocou a bandoleira pegou água pra nós e levou a madrinha pro quarto, ela mesma estava agoniada com as rezas e lágrimas, depois conferiu as armas novamente e se plantou ao nosso lado, ouvimos a tropelada se aproximando da casa outra vez, aquilo investiu novamente na porta e ela rangiu nas dobradiças e se abriu de banda, as trancas se romperam e finalmente ficamos de frente com a besta, quando nos viu tomou o impulso e saltou no primeiro que viu, era minha mãe, ela disparou o rifle e acertou ali a divisão entre o ombro e pescoço o sangue que escorreu era escuro e fedia muito a ferro, o bicho fedia demais como se tivesse mesmo se espojado em tudo que é nojeira no caminho, meu irmão também atirou mas não manteve a calma se jogou em cima do bicho com um facão em punho e fez um rasgo no tórax dele mas no movimento o bicho atacou com os dentes e mordeu meu irmão, a baba nojenta que escorria de sua boca lavou a camisa dele, ele o sacudiu igual a um boneco de pano e o jogou do outro lado da sala, papai e padrinho atiraram novamente a proximidade com o maligno garantia o acerto, eu estava mais pra trás e grande como era com 3 passadas ele me alcançaria, levantei meu rifle e mirei em sua cabeça, passou raspando no olho esquerdo mas fez estrago também, mainha tinha se arrastando pra tentar socorrer meu irmão mas ainda mirou e atirou no bicho umas 2 vezes, o barulho fedor e agonia daquela coisa em nossa presença fez sua primeira vítima, meu padrinho gritou segurando o braço e caiu pra trás, eu pulei o sofá como que ensadecido e mirei novamente, outro tiro no tórax dessa vez ai sim ouvimos um guincho que pareceu um lamento, a coisa se pôs de 4 pés e deu as costas pra nós indo pra porta, um rastro de sangue o acompanhava, meu pai olhou pra mim pedindo pelo amor de deus pra não ir mas desobedeci, cumprimentei ele e meu padrinho peguei outro rifle e sai no encalço da peste esperei ele se afastar um pouco pra ver se conseguia empurrar ele pra alguma das armadilhas fui no seu encalço e atirei algumas vezes, enquanto isso a outra besta uivava como louca, esturrando, por certo chamando esse que estava perto de mim ele se encaminhava pra lá quando passou pelo pé de tambor acionando uma das cordas a jaula desceu com toda força mas não conseguiu prende -lo o impacto foi todo no pescoço do bicho e ele morreu ali decapitado pela jaula que destinava a outra coisa, a imensa cabeça tinha rolado pra dentro enquanto seu corpo se sacudia ainda em espasmos, eu vomitei demais vendo aquilo, meus joelhos afrouxaram e cai na Terra chorando, tinha perdido meu padrinho que me era tão caro quanto meu pai, meu irmão não sei se tinha sobrevivido quando olhei pra trás vi minha mãe correndo em minha direção, rifle apontado mas branca, pálida como se tivesse visto um fantasma, quando chegou a mim me segurou como se eu fosse um bebê ainda e contou que meu irmão estava vivo e já tinha acordado do desmaio, quando viu o corpo do desdito ali ainda longe deu um ou outro tiro, mainha estava desfigurada de ódio, meu irmão tinha sido mordido por aquilo.


- Gilson, seu irmão precisa beber sangue da criatura ou comer seu coração para desfazer a maldição, rápido antes que o corpo esfrie.

E me entregou um facão, um dos que meu irmão tinha consigo. Em seguida chegou meu pai e mainha nem precisou falar nada nós 3 com muita dificuldade viramos o corpo decapitado, era uma obscenidade da natureza aquilo existir, eu estava enojado e zonzo com o fedor, tirei a camisa e amarrei na boca e nariz e dei o primeiro golpe, meu pai ajudou e era como se estivessimos cortando pedra, o couro e músculos eram incrivelmente fortes, então lembrei do meu punhal de prata e corri para buscar, conforme cortava a carne do condenado subia um cheiro de fogo e pêlo queimando mesmo morto sabe deus como a carne reagia a prata e dado nosso frenesi de ódio e raiva em algum tempo conseguimos abri o bicho, extrair o coração foi terrívelmente difícil, saímos imundos mas conseguimos arrancar ele da cavidade, uma cena que eu jamais vou esquecer, o coração era enorme quase do tamanho do coração de um boi, levamos para casa e explicamos para meu irmão o que ele precisava fazer, ele se contorceu de nojo mas aceitou, ainda havia algum sangue dentro das cavidades, primeiro ele bebeu e depois cortou alguns pedaços e mastigou por longos minutos, engoliu aquilo com uma dificuldade absurda mas assim o fez. Olhei para o canto e meu padrinho já estava coberto com um lençol branco e uma vela na mão, olhei em volta mainha tinha sumido, o dia estava quase amanhecendo já, aquelas horas de agonia e medo que passamos nunca mais saiu de nossas memórias. Primeiro ela foi chamar o povo que trabalhava com eles no sitio para ajudar a preparar o corpo do amaldiçoado para queimar, tirar a cabeça de dentro da jaula e colocar junto no fogo, depois disso ela se dirigiu a plantação e esperou amanhecer, ela testemunhou a transformação da outra criatura em humana novamente, era uma mulher, e antes que ela abrisse a boca para qualquer súplica mainha encheu ela de balas, chamou a gente pra ver e mandou queimar o corpo lá dentro mesmo e cobrir com a terra que ainda estava ali perto. Eu não sei como ela passou por aquilo tudo sem se desesperar, chorar, mas depois vieram os pesadelos, o medo constante de ficar só, conosco ela nunca falou sobre mas foi definhando de tristeza e culpa pela morte da mulher lobo.

Queimamos os corpos e enterramos juntos os dois.

Minha madrinha coitada jamais se recuperou da perda e morreu cerca de um ano depois, descansou pra bem da verdade, vivia uma tristeza sem fim desde que ele tinha ido, morreu dormindo em casa quando voltamos a capital, os dois também dividiram o túmulo ainda que em tempos diferentes. Meus pais deixaram o sítio aos cuidados dos trabalhadores e ainda iam lá de vez em quando passar alguma festa ou dias santos, mas não gostavam mais da terra que sempre foi nossa.

Meu irmão não, passamos muito medo da maldição não ter sido quebrada naqueles dias mas o chegar da próxima lua cheia sossegou nosso coração, hoje moramos os 3 aqui na cidade mesmo, ele ainda é carrancudo e tímido mas permaneceu humano, sem mudança, sem aquele traço estranho que vi em seus olhos quando cheguei no sítio. Estudou medicina e atende no Hospital da Restauração que foi recentemente inalgurado.


- Tudo isso que você me contou é de uma fantasia tão imensa que eu jamais duvidaria ser real.

- Fantasia hahhahahhahaha eis aqui o punhal com que ajudei a abrir o tronco do bicho.

Dizendo isso o homem tirou de dentro do colete uma arma magnífica seu cabo enfeitado de pedras reluzia a minha frente, a lâmina protegida por couro, pedi permissão para desenbainhar e vi sua forma ondulada além do gume afiadissímo. Ele ainda abriu um botão da camisa e tinha uma enorme garra negra em um pendente de prata na grossa corrente que ia em seu pescoço.

- Meu irmão tem um igual.

- E sua mãe quando poderei conhecer essa mulher tão extraordinária?

- Não pode mais moço mainha morreu no começo desse ano, do mesmo jeito da minha madrinha consumida por uma tristeza que ninguém conseguia arrancar dela nem seus netos gêmeos apesar dela os amar imensamente.

- Netos? Sim, eu sou um homem casado agora, e se me permite a minha esposa me espera, ela não gosta que eu chegue tão tarde em casa.

- Não me diga que...

- Sim, hoje ela atende por Kassandra Gonçalves de Almeida. Dona Kassandra como gosta que eu chame.

- Mas como vocês se reencontraram, foi aqui na capital?

- Isso ai rapaz já é outra história, hora de ir pra casa, e o senhor vá também, dizem por aí que tem um tal de boca de ouro aparecendo aqui, acolá nas esquinas, deve ser um sujeito meio desagradável de se ver.

- Eu ouvi sobre uma perna que anda por ai sozinha?

- Perna, sim e cabeluda ainda por cima.

- Mas que loucura então.

- O senhor já foi a rua da Aurora?

- Conheço.

- Pois no número 72 é a minha casa, meus padrinhos deixaram pra mim, apareça um dia pra um café com bolo Dona Kassandra vai gostar de saber que o meu colega repórter não usa saia e cabelo solto, aquela mulher me tem um ciúme as vezes.

- Pois eu vou, num fim de tarde apareço por lá.

- Quem sabe o senhor não descubra novas histórias pra contar.


Naquela noite Gilson voltou pra casa um tanto esbaforido, cansado quase na esquina viu que vinha do lado de lá um homem todo de branco com um andar malandro, sorrateiro quando chegou perto dele sorriu, um sorriso dourado que parecia ter dentes demais.

Levantou a mão para se por em posição de luta quando o homem sorridente viu os símbolos na pulseira se dispersou no ar como se ali jamais tivesse estado, agoniado ele correu e encontrou Kassandra sentada numa poltrona cochilando com um livro no colo e ao ter aquela visão sentiu novamente um pouco de paz.

Foi assim que me disse ontem quando nos encontramos para o café combinado semanas atrás.


Recife, Jornal do Comércio do dia 26 de Fevereiro de 1935.

4 Novembre 2022 22:43 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Siph Ferreira Nerd de maquiagem, amante de música, livros e quadrinhos, amiga de Meia Noite e Qliph, viciada em podcast e buscando seu rumo nesse mundo.

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