marcelofarnesi Marcelo Farnési

A fome corrói entranhas. A demência adoece a realidade. A boca escancarada da noite abre sua goela e sorve mais do que trevas. Corra, porquinho. Corra!


Paranormal Lucid Déconseillé aux moins de 13 ans.

#dark #terror #medo #noite #fabula #pavor #mata # #saci
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Trilhas de centeio

Corra porquinho, corra!

As vozes gritam. Alucinadas. Em pânico. Vociferam. Desnorteiam. Difícil raciocinar. Preenchem cada sentido alarmado e já exausto de seu corpo. Ossos que forçam músculos exauridos sob camadas e camadas de gordura flácida. Feito uma enorme máquina chiadeira e em mal funcionamento. Semelhante àquela que vira na tv que exibia um filme sem cores no centro da sala da Casa Grande. Tudo embrulhado pela surrada epiderme que cobre um corpanzil desastrosamente desengonçado. Quase inútil para uma fuga. Ele corre mesmo assim. Procura se salvar. Seus cascos o impelem para frente. Deveria poder correr ereto. Ser mais leve.

Merda! Deveria não ter feito o que fez.

As imagens geradas ao seu redor também perderam o tom. Medo. Geradas desesperadamente enquanto corre. Ou, tenta!

Em meio à paranóia. Atropelam-se. Impensavelmente rápidas para alguém pesado e lento como ele. Distorcidas. Repetidas. Distorcidas. Repetidas. Enfeitiçadas, talvez. Ou, quem sabe, já esteja alucinando. Aleijam-se e misturam-se com aquilo que buscam, em vão, seus olhos estatelados. Vermelhos. Chorosos. Quase cegos pela ânsia de achar a trilha que o levaria para longe dali. Longe daquele inferno. Longe de si mesmo. A mata tornara-se um lugar ruim, muito ruim. As vozes gritam aflitas:

Corra, porquinho. Corra!

Zombam. Cuspidas feito conjurações. Só que diferentes. Ele se lembra das conjurações que alardeavam os ventos antigos. Encurralavam os últimos raios de sol alaranjados na beira do penhasco de um azul desbotado no céu. Até que dele se despencassem e o breu pudesse, enfim, tomar para si tudo que habitasse o solo. Quando as entidades saíam de seus buracos nos barrancos mais profundos da mata. Reuniam-se sob o manto escuro do silêncio. Em noites que apenas pertenciam aos demônios mais esquecidos. Violavam o silêncio natural da mata. Sem vínculos com nada que pertencesse ao correto. Deformadas. Obscenas. Livres!

Ele vira tudo isso muitas e muitas vezes. Atraído pelo aroma surreal das oferendas que enchiam os cestos de couro e palha. Entocado sob as ramas de folhas largas. Cobriam os arredores da margem do riacho. O mesmo riacho que borbulhava sua superfície turva. Fazia dançar as imensas Vitórias-régias quando a Senhora das Águas emergia e deitava-se sobre o musgo das pedras. Para enfeitiçar, curar ou devorar caçadores.

Não! Estas não eram as mesmas vozes. Não vinham da garganta profunda da floresta tristonha. Nem do descampado desprovido de vida no verão. Vinham do maldito bambuzal. Entocado como uma ferida aberta na mata Feito um corte depravado no ventre que expeliu a cria antes do momento correto: O Fungador!

Corra, porquinho. Corra!

As vozes violam seus ouvidos compridos. Doem. Mais que o açoite do mato alto e espesso por onde abria caminho a esmo. As lâminas que cresciam fora da época cortam sua pele rançosa feito centenas de suicidas no quarto úmido de seus tormentos. Lambem suas coxas roliças. Abrem sulcos que se alargam rapidamente. Esbranquiçados. Depois amarelados. Por fim, escarlates. Sangram e escorrem. Deveriam estar ardendo. O suor frio, no entanto, salga as feridas que se multiplicam pelo dorso gelatinoso de dobras sobre dobras. Seus joelhos estalam a cada passada apressada. Mas, ele não sente nada disso. Pavor!

O pavor é um deus. Medo, o credo. Abandono, o mantra. Repetido. Repetido. Repetido pelas contas trêmulas do pesado terço do remorso. Ele ora agora por qualquer divindade da mata. Qualquer um que possa entendê-lo. Deus, demônio ou entidade que já se retorcera na ânsia de devorar a própria carne. Mesmo que estivesse empanturrado de comida. Qualquer um que se sinta sempre vazio. Que o compreenda e conceda a misericórdia de perdoá-lo.

Não foi sua culpa. Foi a fome!

A danação da fome que nunca passa. Nunca o abandona. Queria estar livre dela apenas uma vez. Mas não está! Mesmo agora. Mesmo com tanto medo. Com tantas vozes. Ainda assim, fere seu estômago enquanto corre.

Morto! Você está morto, repetem as árvores. Acusam, chorosas. Elas testemunharam o que aconteceu. No entanto, acusam-no. Expelem rancor e deixam o ar tão sufocante quanto o choro que teima em rasgar sua garganta e roubar grande parte de seu fôlego já quase no fim.

A mata. A escuridão. A boca da noite arreganhada depois que engolira a lua. As lâminas do capim quase tão alto quanto o milharal que se ergue no outono e que pariu o Homem-sabugo sem a permissão da natureza.

Mas o milharal nunca fora tão obsceno. Nunca gerou espíritos tão deformados quanto os que corriam ao seu lado agora. Famintos. À sua frente, atrás de si. Talvez as vozes viessem de seu remorso.

Remorsos são migalhas de centeio e culpa deixadas para trás. Para que demônios julgadores possam nos achar. Leve o tempo que levar...

Ele podia sentir o hálito do seu sentenciador à centímetros de sua pele gordurosa e suada. O odor de cova e podridão.

Corra porquinho, corra!

É o que faz. Não olha para trás. Sabe que o Fungador o alcançará. Quando bem entender. Quando se fartar do odor de medo que expele. A criatura de uma perna só regozija-se com o pavor que incute nos caçadores em noites de lua vermelha. Antes de alimentar-se de suas vísceras e voltar para o lado mais escuro do bambuzal. E está por perto! Em qualquer lugar. Pode sentir o fedor de muco queimado que emana do seu nariz em forma de cachimbo. Seus pulmões o sopram feito foles por todos os lados. O odor agridoce de cascas, raízes e maldade toma conta de toda a mata. Toma posse de seu extinto de sobrevivência. Sentiu o tremor do chão e quando o demônio de olhos e gorro cor de brasa sovou a sola de seu único pé sobre a relva e pô-se em seu encalço. O protesto das raízes das velhas árvores assim que o bambuzal gemeu e se retorceu socando seus caules ocos uns nos outros. Feito tambores do Candomblé onde a cozinheira rodopiava e orava aos seus deuses rancorosos em noites de lua cheia. Longe dos olhos descrentes das pessoas do sítio. Sabia da merda sem volta que a fome, a maldita fome, o condenara. A boneca de trapos o traíra! Prometeu-lhe que nunca mais se torturaria pelo ardume vazio de seu estômago. Prometeu que ninguém no sítio se machucaria. Que ele se ergueria sobre duas patas, leve e ereto. Que nunca mais comeria atolando seu focinho numa tigela. Que saberia o que é dançar de sapatos brilhntes de cadarços azuis todas as belas músicas que ouvia vindo do casarão. Que poderia declarar seu amor à linda menina de nariz afilado como uma princesa dos contos de fada que ouvia deitado do lado de fora da janela, escondido. Sozinho. Faminto. Sempre faminto.

Corra, porquinho!

Você traiu a todos. Traiu seu únco protetor. O corredor de pés virados não poderá lhe acudir, gritam zombeteiras as vozes. Ele está morto. Você também o matou! Todos estão! Gargalham, histéricas, as vozes.

Não há volta para o que se faz. Não há perdão para o que se evita fazer.

A boneca está louca. Ela se deita com demônios em meio aos carretéis e trapos de seu próprio corpo. Arranca com suas próprias unhas de porcelana seus olhos de botões. Reprega-os cantarolando as mesmas orações sussurradas pela mata da noite em que despertou. Mas ela não veio só. Algo ruim também despertou com ela. Algo ruim habita seu corpo de pano. Sussurra em seus ouvidos de dedal. Até que faça o que querem. Até que se satisfaçam. Trazê-la de volta foi um sacrilégio à vida. Dar-lhe a vida já havia sido. Dar vida a tudo que não poderia caminhar, com duas ou mais patas, naquele maldito sítio havia sido profanação. Mas, todos estavam tão vazios que não se importaram. O Homem-Sabugo pagou por isso. A contadora de estórias. A menina... Nunca dançaria com ela com sapatos de cadarços azuis. Até mesmo aquela que rodopiava para outros deuses. Todos pagaram.

O casarão está às escuras.

Trilhas de centeio por toda parte...

Corra!





2 Novembre 2022 18:18 6 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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La fin

A propos de l’auteur

Marcelo Farnési Não sei bem o que flores, cangurus de pelúcia pervertidos e chuvas de guarda-chuvas têm em comum. Talvez, poesia e alucinações. O fato, é que há um jardim debaixo de minha cama. Nele, árvores de gravatas e um Simca Chambor rumo à um precipício. Ou é isso, ou bem pior do que meu psiquiatra concluiu!

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E. M. Vicente E. M. Vicente
Adorei a escrita. Excelente escolha de palavras. Soa poético. Meus olhos apenas deslizaram do início ao fim do conto. Interessante como você repensou os personagens do Sítio, dando um tom soturno, completamente oposto ao que se é nas estórias que conhecemos. Gostei.
January 15, 2023, 13:19

  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    Vicente, fico muito lisonjeado por seu comentário! Nos aventurarmos por mundo tão consolidados como o de Lobato, confesso que é experimentar de um certo receio ao mesmo tempo em que os desafios nos impulsionam. Muito grato por sua atenção sobre minha narrativa. E muito grato também por sua generosidade em compartilhá-la aqui. Abraços! January 15, 2023, 13:40
Wesley Deniel Wesley Deniel
Caramba ! Fazia uns dias que esperava ter um tempinho para ler esse seu conto. A capa me chamou a atenção. Então comecei e vi que era exatamente minha praia. 😄 Vi um pouco de King, um pouco de Neil Gaiman e, conforme fui percebendo se tratar do Sítio do Pica-pau Amarelo (nefastamente assustador !), aí que peguei embalo mesmo ! Muito bom, amigo, muito bom mesmo ! Você está muito bem encaminhado. Gostei muito do estilo, da angústia e do terror. Já estou te seguindo ! 😊
November 21, 2022, 08:49

  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    Gratidão, Wesley! Muito feliz por minha narrativa ter encontrado os recônditos de sua afinidade. Nossos fantasmas têm a mesma frequência. Obrigado pela atenção e incentivo! Estarei te seguindo também! November 21, 2022, 09:45
Caio Vinícius Caio Vinícius
Uau, na primeira vez que comecei a ler não estava preparado, tenho aflição com histórias de animais sofrendo. Daí percebi pela sua narrativa uma pegada intensa para o suspense. Adorei! Nunca tinha pensado no sítio como um lugar sombrio, pela sua escrita foi super convincente. ❤️✍️
November 10, 2022, 08:50

  • Marcelo Farnési Marcelo Farnési
    Bom dia, Caio! Uma honra ter sua atenção e seu comentário. A obra de Lobato é mesmo um campo fértil para quaisquer tipos de narrativa fantástica. Muito obrigado por seu fedback. Curioso para conhecer suas estórias também! November 10, 2022, 10:49
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