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Tinha um cheiro azedo, mas era difícil compreender o porquê. O caldo em si não era azedo, era? Nem a farinha. Mas ainda assim, o cheiro estava azedo.
Nem tudo fazia sentido naquela noite.
Largou tudo, inclusive a louça, pegou as chaves e apenas isso e saiu de casa. A rua estava fria, mas como estava de calças e uma camiseta pesada não fazia muita diferença. Quer dizer, tudo parecia pesado agora.
Seus passos pareciam pesados, seus ombros pareciam carregar alguém e a garganta estava seca por mais que carregasse a long neck como quem segura a mão de uma criança. O cheiro de ondas chegou ao seu nariz e sugou bastante, quase tossiu, e se curvou na amurada de metal da orla. A caminhada foi longa, mas chegou. Não ajudou, só acalmou. Mas o objetivo que procurava não ia adiantar. De verdade, não ia. Fugir das ligações, mensagens e demais notificações no telefone que deixou em casa ao sair, infelizmente, não resolveria. Atirou com maestria a garrafa na lixeira com formato de coco verde e seguiu até o carrinho mais próximo, onde um senhor com um radinho estava quieto e de olhos fechados.
— Me dá uma litrinho, por favor.
— 12, menina. Você não é muito nova pra beber?
— Aceita pix?
— Hmm. — Apontou o papel plastificado com o bico.
— Aqui o comprovante, ó.
— Toma aí.
— Valeu.
Arrancou a tampa com os dentes e tomou vários goles enquanto andava pela orla, viu vários telões, aquilo era jogo de quem? A bem da verdade, só assistia jogo quando era do Brasil e olhe lá. Não tinha uma conexão com o esporte e nem a beleza de alguns jogadores ou mesmo de outros homens por quem se relacionou na vida lhe fizeram adquirir gosto. Assistiu o jogo sem perceber, com preguiça demais de levantar da cadeira de plástico amarela e caminhar até em casa. Porém, a tardia da noite lhe acendeu o alerta, e então foi, com outra litrinho na mão e as mariposas na sua cabeça mais quietas, porém não dormindo.
Quando abriu a porta de casa outra vez, o cheiro de apartamento recém limpo e madeira entrou totalmente em si, era agradável mas ainda assim, era cheiro de apartamento. Ela odiava cheiro de apartamento.
26 ligações perdidas, mensagens de 2 conversas e 3 grupos.
Abriu o grupo primeiro.
— ainda mais q a gente leu e conseguimos definir bem 19:30
— Verdade talu não mostraram porque pra eles não é relevante pra história 19:32
— Aí, Bando de Desgraçados Cadê os games de hoje 19:45
— Quem n leu fica por fora dos cortes. Só se procurar 19:59
Nada de importante.
Abriu a segunda conversa.
— Ei, indivídua. Hoje tem debate. Bora ver e fazer meme.
22:30
— Ei, isso não é hora de dormir, não.
22:32
— Porra cara sério que você dormiu durante? Ia ser mó divertido.
23:02
— Manokkkkkkj esse padre é doido. Cê vai rir quando acordar.
23:45
— CARA O MANO NÃO É PADREKKKKKKKK COMO ASSIM?! O CARA É COSPLAYKKKKK 00:36
— Queria que você tivesse visto, ia ser legal comentar em tempo real. Dorme bem, tá?
1:23
Naruto era legal, porém naquela hora ela não estava dormindo e por mais que o carinho dele fosse acolhedor, ela não conseguia falar com ninguém. Agarrou na porcelana da pia depois de deixar o celular na mesinha de cabeceira de qualquer jeito e começou a vomitar ruidosamente, a cerveja que antes era gostosinha saiu azeda e ruim, junto com o caldo que tinha tomado mais cedo. Abandonou a outra conversa, que tinha umas 10 mensagens. Não estava pronto para aquelas dez mensagens, pois sabia de quem eram. Sabia também que não tinha nada de concreta, nada que precisasse, nada que queria. Limpou a boca e procurou a pasta e a escova de dente imediatamente, colocando na boca e tirando a roupa suja, entrou no box e começou a escovar o dente enquanto a água gelada descia pelos cabelos rosas que pediam um retoque e paciência que ela não tinha. Cuspiu a pasta e colocou mais um pouco na escova e continuou a escovar. As mariposas estavam irrequietas na sua cabeça, umas queriam seguir um caminho, outras outro e outras mais outros.
O problema é que haviam muitas mariposas e muitos caminhos.
Saiu do banho de toalha e ligou o ventilador, se jogando na cama e deixando a toalha umedecer o travesseiro, mesmo que odiasse a sensação. O que podia dizer? Não ia voltar atrás. Não porque não gostava dele, gostava muito. Mas o problema é que eram incompatíveis, desconexos.
"Ele tem os problemas dele"
Desde que Itachi falou isso pra si, ficava se questionando que problemas eram esses. Desvendá-los seria algo que queria fazer, então se envolveu e se envolveu e se envolveu. Não teve forças pra sair um tempo porque o amava. Muito. Mas amor não é suficiente, nem um pouco. Logo começaram as desconexões. Era algo que fazia mariposas se chocarem na cerca elétrica da sua cabeça. E a cada vez que isso acontecia, uma delas morria.
Um toque em sua campainha fez o mesmo choque estremecer sua pele. Olhou pelo olho mágico e era ele, com os cabelos úmidos e o rosto afogueado mas era ele. As roupas em tons sóbrios fazia ele se fundir com os outros tons do corredor, nem um amarelo, um verde ou vermelho. Só cinza, preto, azul escuro. Ele tocou a campainha nervosamente três vezes mais e mesmo assim continuou muda. Não queria abrir. Ignorou as mensagens dele porque não queria conversar. Era difícil?
— Eu sei que está aí, abre, vai. Eu tô vendo os seus dedos pela abertura debaixo da porta.
— Eu tô de toalha, não vou aparecer de toalha no corredor. Peraí.
Abriu o guarda roupa com rudeza e pegou o primeiro vestido que encontrou. Tirou a toalha dos cabelos, pendurou na cadeira e calçou os chinelos e abriu a maldita porta.
Ele estava lá, olhando pra ela com os olhos ônix apagados e a postura encurvada.
— Posso entrar?
— Não. Se pudesse, eu teria te respondido. Mas já que tá aqui, entra.
Ele entrou e sentou na mesinha da cozinha e esfregou as mãos na calça, sacudiu os cabelos que respingaram no tampo e olhou pra ela pela primeira vez.
— Oi.
— Oi.
— Oi.
Essa sequência de três ois sempre acontecia, mas era uma particularidade dos dois. E eles dois já não existiam mais. Não mais.
— Você viu minhas mensagens?
— Não, nenhuma, não queria.
— Senta aqui. Eu não mordo, sabe? Só quero conversar.
— Acontece que eu não tenho nada pra conversar com você. Eu disse o que queria quando você voltou da festa. Acabou, não tem mais volta, não tem porquê ter. — sua voz embargou no momento que disse, mas se manteve firme, já tinha a noite inteira, se abstinha de chorar na frente dele.
— Mas você não me diz o que eu fiz, esse é o problema. Eu só queria sair, espairecer um pouco, poxa. Eu ando trabalhando que nem um condenado…
— Não tem a ver com isso. Não somos mais compatíveis, Sasuke. — disse, assumindo a cadeira na sua frente a contragosto. — Você se diverte assim. Saindo, bebendo e se metendo em festas que não consigo ir. Eu não consigo, não consigo, e você sabe o motivo. Não é o fato de você ir, é o fato de você se divertir num lugar o qual… Ai, eu não quero repetir. Você sabe.
Ele ficou calado a minha frente, não me disse nada por longos minutos. O celular em sua mão era apertado e ele não me olhava nos olhos. Nem agora, quando nossas conexões foram desfeitas, ele me olhava nos olhos. Eu me sentia ingrata. Ingrata porque ele era um namorado bom pra mim. Era gentil, meigo e a seu jeito, demonstrava o amor que tinha por mim. Mas como continuar sendo que os defeitos de convivência se sobressaiam? Ele não falava comigo sobre nada que não fosse cotidiano, era introspectivo quanto aos problemas que passava, não me levava nos eventos de família. Os pais dele não gostavam de mim e o problema em me relacionar com pessoas apareciam mais ainda. Em anos de relacionamento ele não tinha uma foto comigo. E mesmo que me atestasse que não era nada do que minhas inseguranças falavam, eu não conseguia acreditar. Nunca resolviamos nossos problemas, as brigas sempre eram "vou pensar quanto a isso" e "eu compreendo" mas nunca havia mudança de fato. Enfim. Eu era problemática, mas ele era de uma maneira que me doía. Como amar sendo que não conseguia passar uma manhã em sua casa sem querer ir embora?
— É que não entendo porque está terminando comigo por causa de uma festa.
— Você sabe que não foi apenas isso. Eu queria que fosse diferente, mas não é. Você não vai mudar e eu não quero que mude, não é justo que mude. Só siga em frente. Eu vou tentar também.
Começou a chover no tampo da mesa, gotículas pequenas bem perto uma das outras. Sua franja cobria o rosto e sua respiração ruidosa invadiu o ambiente como uma lata caindo no chão.
Ele se levantou de supetão e tirou a jaqueta de moletom, deixando na cadeira a qual eu havia colocado a toalha, depois tirou os sapatos e a calça, revelando uma bermuda. Subiu na minha cama e deitou, logo depois me falando baixo.
— Deita aqui comigo, por favor?
Eu hesitei um instante. Bem forte. Ele não parecia querer tentar algo, parecia ferido, como uma criança assustada. Então fui até lá e deitei de frente pra ele. Ficamos em silêncio por um tempo e aquela música começou a tocar na minha cabeça. Agora não era só as lágrimas dele que desciam pelo rosto.
— Eu não sei o que quer com isso.
— Nem eu. Eu só queria olhar pra você uma última vez, guardar na cabeça… — disse sussurrando sem precisão nenhuma.
Eu fiquei muda. As mariposas morriam na minha cabeça em fila indiana, indo cada uma de encontro a cerca elétrica.
—... Lembra daquela vez que ficamos calados durante um tempão? Era algum teste da internet. Eu disse a você que palavras podem mentir mas o corpo não.
— Até hoje eu rio disso. Não sei de onde você tirou. — minha voz falhou mais. Doeu mais.
Ele fungou rapidamente, rindo do que eu disse, e limpou o rosto. Mas não adiantava, a chuva não parava de cair.
— A bem da verdade eu também não. Eu só queria saber se você gostava de mim, aquilo de certa forma deu certo. Dava pra ver no seu jeito de mexer as mãos e na maneira como seu rosto tava vermelho… Eu tenho medo de fazer de novo…
Aquilo me fez desviar os olhos. O que eu podia dizer? Não tinha nada. Nada mesmo.
—... Eu te amo. Mas não sei fazer isso. Machuquei você por causa de uma coisa tão pequena. Me desculpe por ser obtuso e totalmente esquecido dessas cortesias sociais, de chamar pras coisas. Quando eu estou lá, só depois lembro de chamar você, quando me avisam, perguntam. Eu sou desligado e apático. Não vou pedir pra voltar porque mesmo sem o jogo do silêncio dá pra ver o quanto você tá magoada e eu sou egoísta, mas não a esse ponto. Minha vida é vazia e corrida ao mesmo tempo, e mesmo que eu tenha avisado quando começamos a nos relacionar, é injusto. Me parece injusto. Quero que você saiba que desejo você em minha vida mais que tudo, mas isso também seria egoísta. Então eu entendo caso você não queira mais contato comigo. Mas se eu tiver como escolher, não quero que saia da minha vida.
Eu nunca havia ouvido tanto de Sasuke num período de 5 anos que estávamos juntos. Ele pegou na minha mão e o travesseiro molhado me lembrou a textura das mãos dele. Parecia que eu tinha esponja na boca, mas ainda assim consegui produzir um pálido okay, mas não consegui me conter só nele.
— Você bebeu, por isso tá falando tanto.
— Você também, e por isso não está.
Eu sempre fui uma pessoa muito comunicativa de um jeito estranho, com um acervo de curiosidades e conhecimentos inúteis, eu me sentia um pouco inútil. É muito estranho pensar naquele que estava na minha frente e pensar que há algumas horas atrás ele estava conversando comigo sobre minhas aulas de biomedicina que iam começar na segunda, sobre como assistimos coisas juntos, nas séries que havíamos começado, as que prometemos assistir juntos. Isso não ia acontecer mais. O mar quente continuava a descer no meu rosto. Meu peito estava menor do que já era, parecia que ia explodir.
— Eu não vou sumir, não. Mas não vou dizer que vou na sua casa, ou mandar mensagem ou falar com você. Eu vou estar aqui, na minha casa, no meu quarto, fazendo minhas coisas e vivendo sozinha. Eu sempre estive assim, vou continuar assim. Se vermos bem, não é tão diferente de agora. — ri sem vontade, com dor no peito. — Se olharmos, a culpa é minha também. Dói dizer isso, mas eu de certa forma sabia. Acho que a gente sempre sabe. Eu insisti mesmo assim, superei os obstáculos, praticamente obriguei você a ter um relacionamento comigo quando você não queria.
— Isso não…
— Não me interrompa. Nem me defende. Eu sei que é verdade. — me virei pra olhar o forro branco encardido, não queria que ele me visse enquanto eu falava. — Olha pelo lado bom. Agora acabou. Você não tem mais que me ver, não tem mais que apressar as coisas pra ficar comigo, não tem mais compromisso, pode sair, fazer o que quiser, não precisa mais se preocupar com as mensagens se acumulando no seu telefone. Isso não vai mais existir. Você não tem mais obrigação nenhuma comigo. Não precisa mais usar aliança… Ela deixou de ser obrigação também.
Ficamos calados. Ele sabia que era verdade. Eu também sabia. O silêncio era palpável e dolorido. Queria uma piscina naquela hora, uma piscina sem fundo, uma pedra e uma corrente.
Eu levantei, lavei meu rosto, desliguei as luzes e ele perguntou o que eu estava fazendo.
— Dorme aí. A cama é grande o suficiente pra nós dois.
— Mas…
— Só dorme.
Me virei pro outro lado e senti a movimentação dele mas não estava olhando, nem queria olhar. Ele não disse mais nada. Em pouco tempo eu adormeci.
°°°
O quarto quente junto a movimentação dele me fez acordar, mas eu não queria que ele soubesse que isso tinha acontecido. Ouvi barulhos de chave na mesa de centro e logo depois um baque da porta. Só consegui me levantar depois do que podemos chamar de eternidade. Fui até o banheiro, fiz o que tinha que fazer e de lá fui até a mesa. Tinha um pequeno bilhete, uma aliança e uma chave dupla da minha porta.
Eu espero que seja feliz. Eu não queria dar tchau. Dar tchau parece definitivo, e eu não quero que seja mas é. Só me desculpe, me desculpe mesmo.
Eu te amo e não é justo que você espere eu aprender a fazer isso. Até.
Aquilo doeu mais do que as palavras do que ele havia me dito na noite anterior. Eu não sabia como eu ia processar tudo isso, mas eu ia tentar. Eu ia sobreviver. As mariposas estavam em coma, mas não estavam mortas.
Voltei pra cama e esperava não acordar. E que quando eu acordasse, eu acordasse tão cansada que doesse de tanto dormir.
Merci pour la lecture!
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