A chuva torrencial se lançava com fúria contra o vidro da janela. As poucas gotículas que conseguiam fixar-se logo eram levadas por outras, mais fortes, num ciclo cruel e sem fim. Lá fora, a hostilidade da natureza ganhava forma, som e cheiro. Ela ditava o ritmo da humanidade, estagnando as carroças, o comércio, e ainda mais a vida do pacato burgo de Kimsbury.
— Por que sempre que há tumulto tu estás por perto? — Deixou sua voz se sobrepor ao barulho da água desabando sobre o teto rústico da estalagem.
— Me faço a mesma questão… — Sentada sobre a única escrivaninha do quarto, a figura cruzou as pernas e, revelando-as sob o manto, sorriu. — E então?
O homem se aproximou um passo. Depois, mais outro. Tirou debaixo do sobretudo a pequena estaca de madeira em formato de cruz, toda entalhada com palavras antigas, mas o ser à sua frente não se mexeu. Nem quando descansou o objeto bem ao lado dele, nem quando apoiou as mãos no tampo de madeira e inclinou o tronco, de forma a diminuir ainda mais o espaço entre seus rostos.
— Kallistos — chamou, apesar de os orbes alheios nunca terem abandonado os seus —, há nove luas, perto de Cindarra, houve dois assassinatos. Também houve relatos de um belo viajante, de cabelos brancos como a neve e olhos claros como prata.
— Belo? Quanta gentileza da tua parte… — Ele abriu mais o sorriso, deixando à mostra as presas afiadas.
— Dê-me um motivo para eu não fazer o que há muito já devia ter sido feito. — Cercados pela barba bem rala, os lábios do homem permaneceram em linha reta, impassíveis como uma muralha que se erguia entre eles.
Kallistos suspirou. Agitou a taça cristalina que trazia em mãos e tomou seu tempo para bebericar o vinho.
— Se conseguiste fazê-lo, teria o feito desde aquela vez que me encontraste. Não vais querer discutir isto agora, vais?
As sobrancelhas grossas e bem delineadas se estreitaram. O humano nada disse, apenas se afastou.
Mas, assim que cruzou o pequeno cômodo até a porta, tornou a ouvir Kallistos:
— Tu não és o único que deseja esclarecer tais acontecimentos. A propósito, me admira que este caso em particular tenha despertado o interesse da Ordem. Decidiram por fim expandir os negócios? — O vampiro demorou-se, como se esperasse por uma explicação.
Quando ela não veio, acabou por finalizar, desta vez com o tom mais firme:
— De qualquer forma, farei minha proposta pela segunda e última vez.
Ao ouvir aquilo, o homem interrompeu sua busca pela maçaneta. Fechou a mão, contraindo-a sob a forma de um punho. Seus ombros se moveram numa respirada mais funda e ele cerrou as pálpebras num silêncio momentâneo.
O qual só fora quebrado por uma voz que não era sua:
— Sem mais mentiras, Dio.
Só então Diomedes se virou. Por debaixo do capuz, procurou pelas irises que, embora imitassem o tom do céu num dia de inverno, se encontravam tão límpidas quanto num dia de verão. Ele sustentou aquele olhar por mais tempo do que o necessário, e por fim, deu às costas novamente.
— … Apenas mantenhas discrição. — Foram suas últimas palavras antes de se retirar.
Mal ouviu a porta sendo fechada, o vampiro soltou todo o ar que estivera prendendo até então. Um sorriso semelhante ao anterior, não fosse pela simplicidade e pureza contidas no ato, voltou a ornar os lábios de Kallistos; e ele terminou a taça sem pressa, saboreando cada gota como se fosse o mais delicioso dos elixires.
Assim que seguiu para o andar de baixo da taberna, percebeu que o salão comum, diferente de quando chegara, tinha quase todas as mesas ocupadas. Uma música animada tocava ao fundo, copos brindavam, pessoas conversavam. Com a tempestade repentina, andarilhos, comerciantes e até mesmo oficiais que estavam de passagem buscaram se aquecer com o fogo e o álcool providenciados pela única estalagem da região.
Frente ao balcão, uma figura alta e totalmente encoberta por uma veste escura parecia conversar com o dono do estabelecimento. Ao se aproximar, adentrando a multidão, as palavras “caçador” e “ordenado” insistiam em saltar aos seus ouvidos em meio ao murmurinho quase ininteligível que preenchia o salão. Nada que um olhar de relance não fosse suficiente para que os hóspedes mais sóbrios entendessem o recado, e ao passo que alcançou seu destino, outro tópico já dominava as mesas ao redor.
— P-perdão, meu nobre senhor, mas não há nada que possa ser feito. Todos os quartos já foram ocupados… — O estalajadeiro, de estatura baixa e formas arredondadas, gesticulava apressadamente a cada palavra dita.
Dio poderia tentar se alojar no povoado de Vyrmur, mas a viagem lhe custaria três horas a cavalo se forçasse seu animal já cansado através do tempo hostil — o que estava fora de questão. Ainda assim, duvidava que iria conseguir algum abrigo num lugarejo tão menor que o próprio burgo.
— Ora, ora… — O vampiro achegou-se junto ao humano. Algumas mechas longas que compunham o penteado preso se esparramaram sobre o balcão ao apoiar as costas ali. — Mas que pena…
O reflexo tremulante das chamas espalhava-se sobre os cabelos de Kallistos, transformando-os em fios de ouro; assim como projetava sombras no rosto de traços angulares, mas delicados, com bochechas fundas e nariz reto; e traziam vida aqueles lábios pálidos, que assumiam seu típico sorriso fechado. Sorriso este que cresceu quando ele se voltou ao taberneiro, revelando uma pequena bolsa de algodão cru e jogando-a sem muito cuidado sobre o tampo de carvalho.
— Creio que isto será suficiente para arcar com os custos adicionais. O que achas, Marcel?
O homem, que por vezes secava a testa calva com um pano de prato, parou o que fazia ao fitar uma das moedas derramadas com o baque. Ela rolou e rodopiou, acabando por tamborilar bem na altura de seus olhos, que brilharam tão logo se voltaram a Kallistos.
— Mais do que o suficiente, mestre Calligaris! — ele riu com a voz rouca.
Aquelas palavras fizeram com que a atenção de Dio alternasse momentaneamente entre homem e vampiro.
— Sabes que minha disposição estará sempre aos serviços da tua alma generosa! — Marcel juntou as mãos. — Por que os senhores não aproveitam de nossa hospitalidade enquanto os criados preparam vosso banho e vossa cama?
— Perfeito. — Kallistos deu um tapinha no tampo e se retirou logo em seguida.
Ao caçador, só restou seguir a bela criatura até uma das únicas mesas disponíveis.
— Não me olhes assim, Dio… somente estou a usufruir de um direito meu — adiantou enquanto se sentava, respondendo à pergunta que não fora elaborada com palavras. — Sem queixas desta vez? — ele se manifestou novamente quando não houve protesto, arqueando uma sobrancelha logo que o outro, ainda calado, se apossou da cadeira vazia.
Afinal, Dio estava muito ocupado analisando o ambiente ao redor para dar atenção à uma conversa que sabia de antemão ser infrutífera. Apesar dos quartos pequenos, a taberna de Kimsbury contava com duas lareiras de lados opostos do salão, músicos, serviçais e várias opções de comidas e bebidas. Um achado raro, ainda mais tão distante dos grandes centros comerciais. Certamente o dono — Marcel, pelo que recordava — fizera sua vida em torno dos estrangeiros que se sentiram seduzidos pelo clima acolhedor. Nada suspeito chamou sua atenção, o que o deixou ainda mais apreensivo dado o fato de que já havia sido reconhecido.
— Foi esse teu amuleto que te delataste, se queres saber — Kallistos começou, como se lesse seus pensamentos. — E tuas espadas, também. Elas não colaboram muito para… como disseste? Ah! “Discrição”.
Dio prontamente escondeu o objeto em forma de cajado atrás da camisa e ajeitou o sobretudo de modo a ocultar o cinturão de ombro, no qual ficava acoplado o talim com as bainhas. Não que seu esforço adiantasse muito a essa altura.
— Não te preocupes, todos aqui estão bêbados demais para lembrar de algum detalhe amanhã — recostado na cadeira, Kallistos riu e esticou o pescoço para espiar as mesas ao lado. — Talvez devêssemos seguir o exemplo…
O humano tão somente o encarou e se apoiou nos antebraços.
— O que sabes sobre as mortes?
— Oh! Quão fortuito da tua parte! Eles têm caldo de abóbora com amêndoas aqui… — o vampiro comentou sem nem se virar.
— Kallistos… — Dio estava pronto para questioná-lo novamente, mas teve que esperar até que o outro terminasse de fazer o pedido a um dos criados.
— Deves estar com fome depois dessa viagem. — Ele, então, dirigiu-se ao caçador: — Por falar nisso, como vieste? Trouxeste Potya contigo?
— Kallistos.
A criatura respondeu com um leve franzir de cenho. Por que Diomedes tinha que ser tão direto? Suspirou e, com os braços cruzados sobre a mesa, inclinou o tronco na direção dele.
— Tanto quanto tu. Se bem que para o enviarem… a situação deve estar pior do que eu havia suposto inicialmente. É alguém de dentro, não? Ou melhor… — Fez uma pausa, abaixando o tom de voz ao passo que seus olhares se encontraram. — Era.
Dio assentiu com um único e sutil menear de cabeça, finalmente esclarecendo as suspeitas que Kallistos havia levantado desde que o encontrara neste final de tarde — acentuadas ainda mais pelo fato dele não querer ser reconhecido.
— E quanto a este caso em particular? — o cavaleiro insistiu.
Kallistos pareceu pensar bem antes de responder:
— O outro corpo não me era nada familiar, mas Gerard… ele vivia pacatamente. — Deu de ombros. — Uma vida tediosa, eu diria. Mas justa. Pelo que é de meu entendimento, nunca havia descumprido o tratado com a Ordem ou infringido quaisquer leis humanas. Da última vez que o vi, tinha até conseguido uma pequena porção de terras próximas daqui…
— Diferente do que alegaste, me parece que tens mais informações do que eu ou a Ordem. Qual era a tua relação com ele?
— Ciúmes? — Kallistos riu e apoiou o queixo na mão.
— Responda — ele o cortou.
O vampiro torceu os lábios.
— Desde quando ficaste tão sério? — Tornou a suspirar e se espreguiçou, deitando sobre o encosto e colocando os braços atrás da cabeça. — Gerard me devia… favores.
— Favores?
— Sim. Favores.
O olhar de Kallistos dizia mais do que qualquer palavra.
— Uma dívida não recolhida — Dio comentou com ares de questão. — Então ele havia sido transformado recentemente…
— Correto. Há uns dois anos, se me recordo bem.
A conversa só foi interrompida pela chegada do pedido. Além de bebidas, pãezinhos recheados com frutas secas e torta de legumes, havia um prato generoso de sopa, deixado bem em frente ao cavaleiro. Ele olhou para a comida e depois para o vampiro, que só dispunha de mais uma taça de vinho em mãos. Frente à pergunta muda, Kallistos respondeu do mesmo modo, erguendo o objeto em saudação num movimento curto antes de levá-lo aos lábios.
— Entendo — retomou a conversa anterior após se servir do caldo quente que exalava um aroma tão agradável ao ponto de fazer seu estômago protestar. — Nunca imaginei que fosse do teu feitio querer vingar tua linhagem…
O vampiro não conseguiu conter uma gargalhada breve, que se mesclou com os risos dos demais hóspedes.
— … Minha linhagem? Estás a ouvir tuas próprias palavras? — E quando Dio nada disse, insistiu: — Tu não chegaste a ver nenhum dos corpos, chegaste?
O caçador meneou em negativo enquanto o observava pegar um dos pães e molhá-lo no seu prato.
— Como imaginei… — comentou Kallistos causalmente —, não é tão boa quanto a minha. — Após engolir, continuou: — Sem sangue.
— O quê?! — Dio tossiu, por pouco não se engasgando.
— Os corpos, Diomedes. Os corpos estavam sem sangue. Nenhuma. Gota. Sequer. — Ele experimentou mais uma vez do vinho de romã. — Oh, sim! Minha reação também não foi das melhores ao descobrir… — emendou ao ver que o outro havia se calado.
— E desde quando sabes sobre os ocorridos?
— O primeiro que tive a infelicidade de encontrar foi há dois meses, enquanto passava a negócios por Durfort. Desde então, venho tentando acompanhar os casos. Agora… — Kallistos voltou a se debruçar e deixou os orbes vaguearem de lado a lado do salão antes de fixá-los nos de Dio. — Tua vez. Conte-me mais sobre esse tal desertor.
— Tu o conheces — falou simplesmente.
— O único humano que conheci com poder suficiente para quebrar o pacto está morto — respondeu do mesmo modo, mas ao perceber que o cavaleiro apenas o encarava, abandonou a taça antes mesmo dela tocar-lhe os lábios e devolveu o olhar. — Lysandra está morta — sussurrou aquele nome guardado há tempos, como se sua simples menção fosse capaz de trazer-lhe dor. — Lysandra está morta e tu sabes disso tanto quanto eu. — Ele tornou a rir, mas pela primeira vez, não tinha graça.
Pois o silêncio de Diomedes o incomodava.
— Tu estavas lá. — A voz do vampiro, embora certeira, por pouco não falhou.
— Assim como tu. — Apesar da mudança drástica na feição de Kallistos, Dio manteve o mesmo tom calmo de anteriormente. — Mas nenhum de nós terminou o que foi começado — comentou antes de voltar sua atenção ao prato.
Um silêncio pesado recaiu sobre a mesa. A música animada pareceu distante e, durante três batidas de seu coração inquieto, Kallistos cerrou as pálpebras. Cenas do ocorrido que perturbavam seus períodos de descanso vieram à tona, todas de uma só vez. O corpo caído, solitário e ensanguentado em meio aos rochedos. Com uma mão, tentava estancar o ferimento na garganta; com a outra, tentava se levantar. Tudo em vão. E ele se lembrava de cada detalhe — cada mísero detalhe cravado em sua mente em traição, sofrimento e sacrifício. Nunca se esqueceria, afinal, em apenas outro momento durante sua longa existência uma partida havia lhe custado tanto.
Ou melhor, tudo.
Após uma respiração mais pesada, fitou o homem à sua frente.
— Ninguém poderia resistir aqueles ferimentos — tornou a insistir, talvez numa tentativa de se convencer das próprias palavras. — Nem mesmo um caçador treinado pela Ordem. Nem mesmo Lysandra.
— É realmente nisso que queres acreditar? — Dio, muito ocupado em saciar sua fome, mal dirigiu um olhar ao vampiro.
Kallistos permaneceu quieto. E, em sua quietude, esperou. Vez ou outra lançava olhares para a taça esquecida sobre a mesa, mas o doce do vinho deixara um gosto amargo em sua boca.
Somente quando Dio terminou, voltou-se ao outro:
— Até quando vais mentir para ti mesmo, Kallistos? — Apesar das palavras cruas, a pergunta não detinha traços de julgamento. — Tu não o fizeste naquele momento, por que agora há de ser diferente?
Kallistos abriu a boca uma, duas vezes, mas se calou antes mesmo que a primeira sílaba se formasse. Afinal, sabia melhor do que ninguém que, por mais que quisesse, nenhuma palavra teria o poder de mudar o passado.
— Escutai-me. — Dio olhou fundo nas irises prateadas. — Acredita em mim quando eu digo que Lysandra voltou.
— Como podes saber? Como podes ter tanta certeza, Dio? Estás ignorando o fato de que não há humano que sobreviveria por tanto tempo sem o pacto.
— Correto. Nenhum humano. Ou, ao menos, ninguém cuja humanidade permanecera intacta.
Quando as palavras fizeram sentido na mente do vampiro, ele arregalou os olhos por um insignificante instante, tão breve que tal reação poderia passar despercebida a qualquer um.
— Diga-me. — O cavaleiro se inclinou ainda mais sobre o tampo.
Com as pálpebras cerradas, Kallistos meneou a cabeça em negativo.
— É impossível.
— O quê?! — Sua voz saiu como um sussurro alto, mas a criatura simplesmente afastou o tronco e cruzou os braços. Quando viu que ele estava hesitando em lhe responder, insistiu: — Kallistos!
Durante alguns instantes que pareceram eternos, o outro encarou-o em silêncio.
— Sabes…, no começo, imaginei se tratar de um primordial… — Ele forçou uma risada curta. — Agora que penso sobre, tal possibilidade seria melhor do que ter de enfrentar Lysandra novamente, não?
— Kallistos. — O tom de Dio era sério.
O vampiro respirou fundo antes de continuar:
— Mas agora que sei se tratar de um humano, bem… há uma magia. Magia antiga. Se eu estiver correto, nosso caso se baseia na má sorte daqueles infelizes de terem cruzado o caminho dela. — Balançou a cabeça num lamento: — Pobre Gerard…
— E? — o caçador inquiriu.
— E se eu estiver correto… — Mirou diretamente nos orbes à sua frente. — Temo que Lysandra não irá parar até que alguém a faça.
— Quão esclarecedor, Kallistos. Preciso de detalhes.
Nesse momento, uma das criadas da casa veio informar-lhes de que o banho estava pronto.
— Trouxe alguns dos meus livros comigo, talvez possam ajudar — continuou o vampiro após ela se retirar. — Estão lá em cima.
Dio anuiu em silêncio, levantando-se.
— Subirei assim que pegar meus pertences na estrebaria
— Claro. Apenas não demores, o banho vai esfriar. Ah! E, Dio… — chamou às costas dele. Quando o humano se virou, Kallistos sorriu: — Dê um beijo em Potya por mim.
Seu sorriso desvaneceu da mesma forma que a presença do cavaleiro quando este saiu pela porta. Mesmo depois dos criados recolherem as sobras da mesa, o vampiro continuou lá, sentado na companhia de música e risos que outrora seriam muito bem-vindos. Todavia, sua angústia insistia em importuná-lo. Quando se dava por si, tinha o olhar atraído pelas chamas da lareira, o pensamento vagando por memórias distantes que ele queria esquecer. Precisava esquecer. Mas como fazê-lo agora que Lysandra voltara?
Kallistos se forçou a subir o lance de escadas e, enquanto fazia seu trajeto em direção ao quarto, permitiu-se imaginar apenas por um momento se, talvez, haveria um caminho de redenção. Talvez eles pensariam em uma alternativa. Talvez o passado não precisasse se repetir.
Tolice.
Não havia redenção, tampouco uma alternativa. Tudo o que lhes restou foram somente os erros do passado, perseguindo-os como uma sombra a cada passo dado em direção ao futuro.
⚔
Logo após adentrar o cômodo e retirar o manto pesado, feito de lã e peles, Kallistos rumou até a câmara anexa. Num canto, bem abaixo da janela fechada, a tina ovalada exalava uma bruma quentinha e acolhedora que preenchia todo o ambiente. Ao lado dela, um pequeno banco apoiava um recipiente de madeira contendo sabão, toalhas e alguns frascos de sais de banho. Só após conferir a temperatura da água, ele retornou para o quarto. Sentado na cama e sob a luz da lareira, se pôs na missão de folhear seus livros em busca do feitiço mencionado anteriormente — ou de algo para distrair sua mente agitada.
A porta rangeu depois de alguns momentos de completo silêncio, anunciando a presença do humano. Kallistos, tirado de suas divagações devido ao barulho, notou que Dio estava ainda mais molhado do que quando o havia visto entrando na estalagem em busca de abrigo. O capuz caído revelava seus cabelos enrolados e curtos como sempre, outrora dois tons mais claros que os olhos castanhos, não fosse pela chuva.
— Aqui — prontamente se ofereceu para ajudá-lo com o sobretudo ensopado.
Estendeu-o sobre uma das cadeiras realocada para perto do fogo enquanto o caçador se livrava de algumas bagagens e do alforje de couro preto que trazia consigo.
— Esses são os documentos sobre o caso? — Kallistos esticou a mão para pegá-lo.
Dio murmurou em afirmativo:
— Todas as informações que a Ordem possui até o momento.
— Posso dar uma olhada? — O vampiro mal esperou pela resposta, já colocando a bolsa em cima da escrivaninha e vasculhando por entre os manuscritos e pergaminhos.
— Tu o farias mesmo se eu dissesse que não. — Dio o observou de relance.
— Verdade. — Seus lábios abriram um sorriso de satisfação ao ocupar a outra cadeira com um documento em mãos.
Sem perder tempo, Kallistos começou a examinar o primeiro dos vários arquivos ali dispostos. Ou, ao menos, se esforçou para fazê-lo.
Afinal, como poderia focar sua atenção em palavras quando Dio, atrás de si, havia decidido que aquela seria uma boa hora para se despir? Os olhos automaticamente se desviaram das páginas e, com cuidado para não mover nenhum músculo, procurou pela figura do cavaleiro no seu campo de visão, mas tudo o que conseguiu foi captar o barulho de tecido roçando contra pele.
Até que este mesmo barulho parou.
— Não vais te banhar? — A voz dele o pegou de surpresa, levando-o a enrijecer sua postura no mesmo instante.
— Depois de ti. — Kallistos fez o possível para manter sua voz estável, de repente parecendo muito focado na leitura. — Sabes bem que não ligo para água fria.
Ele não pôde ver quando Dio arqueou as sobrancelhas, ou mesmo, deixou que os lábios tomassem a rara forma de um meio sorriso fechado.
— Oculta tuas intenções tão mal quanto oculta tuas mentiras… — o caçador respondeu após um momento de silêncio.
Bastaram duas batidas de seu coração para Kallistos, por fim, se virar na cadeira. Os olhos claros rejeitaram a oportunidade de contemplar aquela bela visão formada por músculos definidos e recaíram diretamente sobre uma cicatriz em especial que maculava o ombro alheio, bem na junção com o pescoço. Ignorou o embrulho em seu estômago perante a possibilidade de que alguém pudesse tê-lo ferido num local tão próximo de um ponto vital; assim como engoliu a urgência de perguntar sobre o ocorrido. Ele somente fitou os orbes do humano, que ganhavam uma coloração quente graças ao reflexo das chamas da lareira.
— Eu vejo… — retomou a conversa anterior de modo casual, numa tentativa de afastar o incômodo que a simples presença daquele ferimento lhe trazia. — Isso foi um convite? — Kallistos mostrou seu melhor sorriso.
— Não do jeito que estás imaginando. — Dio, então, se retirou para o banheiro antes mesmo que o vampiro pudesse questioná-lo novamente.
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