1945
O céu escuro é um sinônimo de familiaridade na montanhas do norte, os dias são nublados, pareciam ser carregados pela boa vontade de alguma bruxa que odiava a luz do sol, pelo menos era isso que Maria sabia, e o que sua avó lhe dizia. Ela desceu as escadas, contando os degraus e pulando um por um, sabia bem que o barulho acordaria todos na casa, ela desejava que sua mãe acordasse e lhe fizesse ovos mexidos, sentia o gosto na boca e fechava os olhos lambendo os lábios.
Do outro lado da rua, alguns ratos entravam no bueiro em frente à casa do sr. Barrosso, o velho mais gente boa da cidade, era assim que sua mãe o tratava, mas Maria em questão não gostava muito dele, sabia que havia algo de sinistro em seus olhos e seu sorriso carregado de dentes, os velhinhos não deveriam ter dentes, e isso era evidência suficiente para que suas desconfianças crescessem a cada dia.
Maria levou as pequenas mãos até o corrimão, deslizou os dedos delicados por cada curva que ele fazia, sentia-se livre, como um pequeno pássaro que dança no céu, fazendo coreografias com as asas e desviando dos outros. Chegando finalmente no fim da escada, ela se joga no tapete felpudo e fecha os olhos ouvindo o som da chuva que caía preguiçosamente sobre o teto, entretanto, o som da chuva fez com que algumas lembranças reverberassem sua mente, ela não sabia se na verdade eram lembranças, ou se era um sonho, mas sabia perfeitamente que não gostava de pensar nisso. Maria se levanta e caminha até a janela, observando as ruas molhadas e sentindo o cheiro de mofo que provinha da janela, ela sabia que logo chegaria sua vez e estava triste por isso.
O som das patinhas e unhas raspando o piso foram os responsáveis por um sorriso que se abriu no rosto da pequena garota, ela se deitou novamente, seus cachos desgrenhados foram abocanhados por seu cachorro que passava a língua comprida em seu rosto e mãos. O sorriso doce ecoava pela casa, e uma brisa gélida entrou pela janela, o vento parecia tentar dizer algo com seu som tímido, Maria gostaria de saber o que era, mas não se atentou a isso, ela ouviu a porta do quarto dos seus pais se abrindo, abraçou o cachorrinho com força, e tentou parecer comportada no instante em que eles apareceriam no andar de cima.
Uma pequena borboleta se movia na cozinha, suas
cores eram de um azul marinho e pequenas listras brancas, seu voo estava desvairado, ela tentava planar mas não conseguia, na linguagem das borboletas quem sabe ela estivesse irritada, pois movia uma das anteninhas como um tique nervoso, além do seu olhar incisivo nos potes de chocolate, ninguém sabia disso, mas as borboletas adoravam comê-los quando nenhum humano estava olhando. Sem sucesso em conseguir atravessar a grande parede de vidro, ela voa para sala, mas aquela borboleta errante não sabia que ao colocar as asinhas na sala seu fim estaria próximo.
As asas caíram no chão se separando do corpo fino da pequena criatura, uma sombra escura rodeava o corpo de Maria, era uma sombra estranha com pequenos pontos de luz que faziam parecer um evento bonito, mas que na verdade significava a morte.
Lilás o cachorro, latia sem parar, ele não entendia o que era aquilo, aquela fumaça lhe trazia uma sensação de arrepiar os pelos, ele subiu as escadas batendo o focinho nos degraus, mas nada o impediria de chegar ao quarto dos donos, pois era assim que ele os chamava. As patas pequenas e felpudas do pequeno filhote rasparam a porta, que terminou de se abrir, no entanto, seus olhos escuros como petecas não refletiam brilho algum como o de costume, as janelas do quarto ainda estavam fechadas.
Lilás deu alguns passos para trás e saltou, sua aterrisagem foi perfeita em cima da cama, seus dentes finos puxaram os lençóis, e seu olfato preciso logo detectou o que era aquilo, carne apodrecida.
Se um cachorro pudesse expressar em palavras sua indignação, certamente lilás estaria o fazendo, além de quem sabe rezar alguma coisa se ele soubesse, apesar de sempre ter tido vontade de ir à missa, mas como era um cachorro não podia.
O cachorro escondeu o focinho gelado em baixo
dos lençóis, mas o cheiro não melhorava, os corpos de seus donos estavam retorcidos em cima da cama, como os pequenos galhos que ele encontrava no quintal.
Maria abaixo dos lances da escada não gritava, seus olhos estavam com um aspecto de brancura doentia, e suas mãos se retorciam, como se seus dedos mudassem de lugar.
Ela podia ouvir ao longe o eco de doces notas de piano, ela sabia que a morte não era bonita de se ver, mas ouvir a música que sua avó tocava era reconfortante, Maria sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, apesar de não ter se preparado, ela sabia o tempo todo que estava marcada, e tudo isso porque ela não resistiu a sua própria
curiosidade.
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