3rica Érica Moura

Depois de muito lamentar, desapontada com os seus amigos da onça, Paula pensou que o seu grande dia não poderia ficar pior. Na tentativa de animá-la, o pai a surpreendeu com que algo que mudaria sua vida: um gato dócil e carinhoso. A alegria de ganhar um novo companheiro em uma tarde cinzenta a consolou. Existiriam "males que vêm para o bem" de verdade? Conto de terror dividido em 4 partes.


Horreur histoires de fantômes Tout public. © Todos os direitos reservados à autora

#terror #fantasmas #monstros #terror-psicológico #conto
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A Mãe

Praguejava em voz alta. Permitiu-se a deselegância de dizer palavras de baixo calão aos quatro ventos. Que mal faria? Não havia uma única pessoa para repreendê-la ou olhar de esguelha.

— Grande festa! — gritou, aborrecida.

A manhã de domingo, até então, rendeu-lhe apenas estresse. Era seu dia. Chegara aos vinte e cinco com uma estabilidade invejável. Tinha um emprego, casa própria e uma moto (que carinhosamente apelidara de Amy, pela potência do motor igualar-se à voz da cantora de mesmo nome). Infelizmente, não tinha amigos decentes. A comemoração de seu aniversário fora um completo fracasso. Nem uma das quarenta pessoas convidadas apareceu.

Havia alugado um belo espaço de festas à céu aberto e justamente no grande dia uma chuva torrencial de verão atingiu sua cidade. Quando o aguaceiro se findou e o céu se abriu, Paula ainda estava à espera. O tempo passou e nada mudou, ela irritou-se. Cogitou ligar para as pessoas e exigir satisfações, mas logo desistiu da ideia. Muita humilhação, pensou. Disse a si mesma que tinham se passado apenas quinze minutos do fim do temporal e as ruas ainda estavam alagadas. Isso mesmo, era essa a justificativa para a ausência. No momento em que a água escoasse, eles viriam.

O chão estava seco. Paula continuava sozinha, caminhando desorientada por entre as cadeiras derrubadas. Lamentando pela decoração destroçada pelo vento, sentou-se ao lado da mesa do bolo. Estava chorando ruidosamente quando seu pai chegou.

— Paulinha, meu anjo! Desculpe o atraso — disse, com ternura. — O que houve? A chuva espantou os convidados? — ela assentiu.

— Ninguém apareceu, pai. Estou esperando há mais de trinta minutos e nada! — entristeceu-se ainda mais depois de verbalizar o acontecido.

— Sinto muito, querida — ele sentia, de fato. Uma ideia surgiu na mente dele, em um estalo. — Sei de uma coisa que te animará.

O pai era um homem bondoso e equilibrado. Somente alguém igual a ele lidaria tão bem com uma filha em pranto. Saíra correndo, em direção ao carro. Tirara algo do banco de trás e, agora, caminhava com cautela, segurando uma enorme caixa de presente com furos.

— Pai! — enxugou as lágrimas, envergonhada e grata pelo gesto dele. — Não precisava! O senhor me ajudou tanto com as despesas...

— Claro que precisava, meu amor. Além disso, tenho certeza de que irá gostar do presente — entregou-lhe a caixa. Algo se mexia dentro dela. Algo vivo.

— Não acredito! — disse, abrindo a tampa e tomando nas mãos um pequenino gato acinzentado, de listras pretas e curiosos olhos verdes. — Ele é a cara do Tom! — gratidão e pesar mesclaram-se com a afirmação.

— Foi exatamente o que pensei. Passei por uma feira de adoção um pouco mais cedo e não pude deixar de reparar nesse camarada. Uma semelhança absurda! Achei que iria lhe alegrar se trouxesse seu fiel escudeiro de volta. Eu... — a fala foi interrompida por um soluço.

— Eu sei, paizinho. Eu sei. Muito obrigada! Não só pelo presente — suspendeu o gato, estendendo aquela coisa minúscula em direção ao pai. — Tom também o agradece. Ele está feliz por ter retornado ao lar — o homem engoliu o choro e sorriu.

Paula acomodou o filhote sobre uma cadeira. Pôs-se a arrumar a bagunça, com a ajuda do pai, recolhendo toalhas molhadas e arranjos de flores espatifados. O vai e vem dos seus passos, o pai arrastando as mesas e o miado baixo do novo Tom eram barulhos agradáveis aos seus ouvidos. Estava bem acompanhada, consolava-se com a ideia de ao menos ter a quem recorrer naquele momento constrangedor.

Contudo, o momento poderia ser melhor se outro alguém estivesse ali. Se sua mãe estivesse ali, Paula não estaria se sentindo tão desgastada. Mas ela não estava. Nunca mais teria a presença da mãe em qualquer aniversário. A mulher havia morrido há treze anos. Desde então, o único familiar próximo era o pai. O pai fizera seu melhor, ela bem sabia disso. Mas não era o mesmo. Pensar no assunto sempre lhe trazia um gosto amargo à boca.

Procurou resignar-se. No fim das contas, o fato de sua mãe não estar ali era reconfortante. Ela não presenciaria tamanho vexame, não teria de ver a própria filha derrotada por conta de uma chuva idiota.

Passados alguns minutos, conseguiram organizar tudo, deixando o ambiente limpo. Como se nada houvesse acontecido naquele domingo. O pai levaria o bolo para uma creche no bairro em que morava. Enfim, tudo estava resolvido. O homem teve outro de seus acessos súbitos de pensamento e lembrou-se de dizer:

— A moça da ONG disse que ele não arranha, mas é melhor tomar cuidado. Não tenho certeza de que foi vacinado. Não esqueça de o levar a um veterinário amanhã.

— Tudo bem, pai. Se cuide e ande devagar. Bem sei como o senhor é desastrado. Se bobear esse bolo desmorona todo antes de chegar no portão.

— Mais respeito e confiança, por favor! — o homem desapareceu, rindo da desconfiança da filha e deixando-a sozinha naquele lugar. Não. Sozinha não. Tom estava ao seu lado.

Lembrando-se do gato, procurou o pobre bichano. Encontrou-o encolhido, tremendo, como se estivesse com frio.

— Venha, Tom! Vamos sair daqui! Já deu, por hoje — o bicho, compreendendo a fala dela de modo surpreendente, levantou-se e pulou sobre as mãos estendidas da nova dona.

Chegando em casa, Paula tratou de improvisar um cantinho para o Tom. O filhote fora paciente, ficara parado, encarando-a, esperando a mulher terminar de arrumar o “aposento”.

— Você é tão bonzinho! Vamos nos dar bem — constatou. O gato miou em resposta. — Esperto e educado também — sorriu.

As horas passaram depressa, por algum milagre. Devia ser a misericórdia divina fazendo com que o dia seguinte (e uma perda de memória extremamente conveniente) chegasse sem delongas.

Decidiu tomar um banho quente. Com sorte, relaxaria um pouco, assistiria um desenho animado (para lembrar-se dos bons tempos), abriria uma lata de atum para o gato e tomaria um bom vinho, ao som de Miles Davis.

Ao abrir a porta do banheiro, o vapor quente inundou o ar e tomou uma densidade absurda, quase a mesma de um nevoeiro. A temperatura despencara. Os pelos do braço eriçaram-se. Através da janela, observou o sol se pondo em uma velocidade atípica. Supôs que o dia andava ruim até para os astros e estes haviam combinado de adiantar a passagem do tempo na tentativa de deixar os problemas no passado. Distraiu-se com a ideia inocente.

Sobressaltou-se ao ouvir uma melodia conhecida, da composição de Villa-Lobos. “Melodia Sentimental”, lembrava-se bem. A mãe costumava niná-la ao som da música. O assobio era agudo, mais parecia o canto de um passarinho de tão afinado. Uma voz feminina cantava:

“(...) As asas, da noite que surge
Que correm no espaço profundo
Ó, doce, amada desperta
Vem dar seu calor ao luar(...)”

Os arrepios do braço estenderam-se pelo corpo inteiro. Os vapores intensificaram-se, semelhantes ao de uma máquina típica de discotecas. A voz era familiar.

— Não pode ser. Você está abalada, Paula! Olha só o que você fez! Inventou de pensar nela e agora está alucinando! — argumentou consigo mesma.

A inquietude, entretanto, dominou-a. Não conseguira se convencer com a justificativa da alucinação, então buscou uma alternativa. Devia ter esquecido a caixa de som ligada, a música teria sido reproduzida automaticamente. Ela consertaria isso nas configurações do aplicativo e tudo voltaria ao normal.

Não conseguia enxergar um palmo à sua frente, então tateou paredes e objetos até chegar ao aparelho de som, sobre a mesa central da sala. Deu-se conta de que não precisaria desliga-lo ou alterar qualquer configuração do aplicativo de música. O som não vinha dos alto-falantes.

O assobio tornou a ecoar pela casa. Vinha de uma quina intocada pela névoa, um espaço morto entre a sala e a cozinha. Caminhava em direção ao vão da porta, tremendo tal qual um galho verde contra a ventania.

Ouviu o barulho de passos atrás de si. A escuridão havia sumido dali, sendo substituída pelo vapor e o pungente odor de mofo que o acompanhava. O arrepio tornou-se um tremor intenso, convulsivo, aberrante. Curiosidade e medo digladiavam-se, quem venceria? Talvez os dois, pois mesmo amedrontada ela virou-se para ver de onde vinham todos aqueles sons.

Gritou ao avistar a dona daqueles passos. Queria falar, espantar aquela coisa. Invasão de propriedade é crime! Mas não conseguiu. A visão era demasiado horripilante. Incapacitada de emitir qualquer palavra, gania como um cachorro acuado.

O rosto esverdeado, as carnes podres e cheias de vermes assustaram-na menos do que a ausência dos olhos. O fedor de decomposição era nauseante. O cadáver, que algum dia havia sido sua mãe, era algo hediondo. A boca murcha, em ruínas, com alguns dentes faltando, movia-se de um jeito robótico. Cantava.

— Vem dar seu calor ao luar. Vem dar seu calor... Seu calor — a voz adquiriu uma rouquidão imensurável, como se as cordas vocais tivessem ficado paradas por muito tempo e enferrujado. Era uma máquina velha, com as engrenagens decadentes movimentando-se após o longo desuso.

A mãe, ou o que sobrara dela, aproximava-se a passos lentos. Estranhamente silenciosos. Não eram os mesmos passos que ouvira segundos atrás. A morta-viva abria os braços. Por um instante, poderia jurar, por tudo o que há de mais sagrado, que viu a imagem da mãe esperando-a de braços abertos. A mãe sempre ficava plantada à porta de casa, com um sorriso no rosto e pronta para abraçá-la. A volta da escola era seu momento favorito justamente por causa disso. O abraço dela carregava conforto, carinho, amor. Jamais seria o aperto severo daquela carcaça ambulante.

Foi envolvida pelos membros decrépitos da mulher morta. Unhas, ou melhor dizendo, garras cravaram-se nela. O arranhão estendeu-se pelas costas, da altura do ombro até o cóccix. Paula urrou, as feridas sangravam. Depois disso, o silêncio. Tentou gritar, mas faltou-lhe voz. A névoa desapareceu tão subitamente quanto havia aparecido. A escuridão reinava.

6 Janvier 2022 15:23 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
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