Miguel era um jovem de 25 anos. Assim como todos os seus amigos, ele só ia para as baladas sertanejas para pegar mulher. Jamais por causa da música. Assim como a maioria dos seus amigos, ele brincava de malabarismo com o tempo. Enquanto fazia o que podia com a faculdade, tentava ganhar um dinheirinho. Assim como nenhum de seus amigos, Miguel tinha dois empregos. Durante 364 dias do ano, contando muitos feriados e fins de semana, era motorista de Uber. No dia 25 de Dezembro, era Papai Noel.
Cada vez menos chegavam cartas nos correios, pois as crianças estavam cada vez mais informatizadas. Elas queriam presentes, claro, mas eram poucas as que se davam o trabalho de escrever para o Papai Noel. A maioria das cartas vinha de orfanatos e instituições de caridade. Algumas delas faziam o jovem Miguel chorar quando as lia, mas era sempre incrível quando ia pessoalmente entregar os presentes para as crianças que mais precisavam.
Não havia nada de mais terno, de mais puro, do que o abraço daquelas crianças. Nada poderia alegrar mais o coração de Miguel, o bom-velhinho.
No Natal de 2021, entretanto, um fenômeno foi notado.
_ “Desejo o fim dos Bitcoins porque meu pai nunca para de falar sobre ‘novas oportunidades de investimento’...”
As palavras rolaram como pedregulhos pela boca de Miguel, ao que lia a cartinha da vez.
“Estupefato” era uma palavra leve demais para o que sentia. O outro Papai Noel, mais conhecido como Dudu, era um senhor de 64 anos, que tinha a voz desgastada típica dos fumantes, e que nem precisava de barba falsa para se passar pelo bom-velhinho.
_ Isso não é nada. Ouve só essa: “Querido Papai Noel, não deixe que Lula ganhe nas próximas eleições. Eu nem sei direito quem ele é, mas toda vez que ele aparece na TV, minha mãe ameaça sair do país.”
Dudu pegou outra carta, que poderia ter sido escrita pela mesma criança com medo das eleições, e continuou a leitura em voz alta.
_ “A gente nem tem dinheiro para sair do país…”
Apesar de muitas cartinhas conterem opiniões políticas em demasia, ainda havia aquelas que refletiam o puro espírito natalino das crianças.
_ “Querido Papai-Noel, tem como você tomar providências para que no próximo filme do Homem-Aranha tenha três Peter Parker diferentes? Se eu chegar no cinema e ver três Tom Holland eu acho que vou cometer um crime… Com carinho, Lucas”
_ Parece que essas crianças estão usando as cartas de Natal para fazer terapia! E esse Lucas é um garotinho muito estranho. _ Declarou o Papai-Noel mais velho da dupla.
Miguel deu de ombros. Ele meio que entendia o argumento de Lucas. Se pagasse o ingresso e não tivesse três Peter Parker diferentes…. Ele também cometeria um crime.
Às vezes, chegava uma carta de alguma criança normal pedindo uma bola de futebol. Mas, por algum motivo, a pilha de cartas cheias de assuntos espinhosos e políticos não parava de crescer.
_ “Querido Papai Noel, tem como você obrigar as pessoas a pararem de jogar plástico no mar? Amor, Hanna.”
_ Vai ver, ela ama tartarugas. Temos tartarugas para dar esse ano?
_ Receio que não, Dudu.
As cartas das crianças pareciam ter sido escritas pelas mesmas pessoas que ficam arrumando briga no Facebook por causa de política. Metade da pilha continha clamores sobre as próximas eleições. Outras cartinhas pediam comida aos pobres, especialmente aos da África.
Tinha pedidos pelas crianças de Angola até o Zimbábue. Miguel e Dudu ficaram impressionados com tamanho conhecimento geográfico. Outras cartas mostravam preocupação com o derretimento das calotas polares. Algumas pediam por mais inclusão étnica acerca dos Papais-Noéis. Queriam Papais-Noéis negros, latinos e asiáticos.
_ Mas, eu já sou preto, caramba! _ Ralhou Dudu, exasperado com aquelas crianças.
Miguel declarou “dor de cabeça” após ler uma carta que mais parecia um extenso relatório de alguma entidade ambientalista informando sobre o perigo do Mc Donald’s.
_ Isso está errado, não está? _ Continuou reclamando o velho. _ As crianças deviam pedir por mais Mc Lanche Feliz, não por uma lei que acabe com o direito das empresas de fazerem hambúrguer.
Miguel elucidou a questão, empunhando os cinco papéis grampeados.
_ Parece que tem tanto boi no mundo, que os peidos deles estão acabando com a atmosfera ou qualquer coisa assim...
_ Óh, Deus...
Em todos os seus cinco anos de “profissão Papai-Noel”, Miguel nunca pensou em desistir, pois amava demais o que fazia. Infelizmente, o ano de 2021 estava aí para provar o contrário. Sem ânimo nos braços, agarrou mais uma cartinha. Ainda alimentava a esperança de que poderia vir de uma criança normal.
_ “Querido Papai-Noel” _ Começou, com voz seca _ “Gostaria de ganhar um Play Station 5...”
_ Ahá!!! _ Exclamou Dudu _ Há normalidade no mundo!
Miguel ainda não estava no fim, mas seu rosto se contorceu de frustração.
_ “... Meu pai disse que se o Bolsonaro perdesse, ele me daria um Play Station 5...”
No dia seguinte, Miguel e Dudu redigiram suas próprias cartinhas. Coisa simples, sincera e pura.
“Querido Papai-Noel,
queremos cachaça”
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Feliz Natal!!!
Um singelo conto de Natal, inspirado no politicamente (in)correto de todos os dias.
Espero que gostem!
Boas festas!!!
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Merci pour la lecture!
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