Era a última semana das férias de dezembro e Tiago não fazia a menor ideia do que queria para a sua vida.
Afinal de contas, como poderia, Jesus Cristo? Tinha apenas 14 anos de idade! De algum modo, à sua volta, todos pareciam extremamente decididos e em chamas, afoitos com o que o futuro tinha as lhes reservar. Seus amigos mais próximos e colegas de classe pareciam ter planos bem definidos acerca de que faculdade gostariam de cursar dali a alguns anos, o que gostariam de fazer e blá, blá, blá. Em suma, todos à sua volta aparentavam estar de bem com aquele velho demônio de asas negras e mãos ossudas pesadas que se aproxima de você quando é criança – e, alguns dizem, nunca mais o deixa – e pergunta, com um sorriso sádico no rosto: “e aí, campeão, o que você quer ser quando crescer, hein?”.
— Aviador, jogador de futebol, advogado... — ele resmungou chateado, chutando uma pedrinha que rolou pela calçada coberta de folhas secas. — Que importa isso agora, droga?! O Ensino Médio só começa semana que vem...
Para Thiago, todos eles não passavam de babacas querendo se mostrar para os mais velhos; cachorrinhos orgulhosos gritando “Estão vendo? Estão vendo só?! Fiz xixi no lugar certo! Sou um bom garoto ou não sou?”. Que todos eles se danassem. Ele teria 3 anos para pensar nesse tipo de coisa e colocar as coisas em ordem. Por enquanto, havia tantas coisas que ele queria fazer: ler os livros de Isaac Asimov que ganhara dos pais no natal, brincar de polícia e ladrão, completar o álbum de figurinha da Copa do Mundo, sentar na frente da TV e acabar com um pacote de bolacha Passatempo enquanto assistia às reprises de Naruto. Tantas coisas! Mas eles tinham de vir com seus exércitos para botar fogo nas coisas e levar tudo abaixo, carregados suas munições pesadas de “responsabilidades”, “preocupações com o futuro”, apontando, como velhos generais da Gestapo, dedos e ordens de “decida seu destino agora ou morra!”.
Eles ao menos podiam ter esperado as férias acabarem para surgirem com esse monte de baboseira idiota. Agora, ele sentia como se sua última semana de férias tivesse sido arruinada. Não conseguia se concentrar nas coisas que queria; nos milhares de planos que havia imaginado para as férias. Havia um verme carnívoro em sua barriga e, toda vez que Thiago pensava em algo puramente porque queria se divertir ou aproveitar, esse verme se remexia, mordia e beliscava suas entranhas, puxando-o de volta para o mundo das preocupações de “ordem maior”, impedindo-o de se divertir. Ele simplesmente não conseguia aproveitar mais nada. Tudo estava contaminado pelas profecias daqueles mensageiros do apocalipse. Uma ansiedade incontrolável que o deixava nervoso e aflito. Muitas vezes, triste.
— Que eles se virem com seu...
Antes que ele pudesse terminar de falar, uma faca cega rasgou o véu da realidade e o acordou de seus devaneios.
Uma folha marrom espatifou-se sobre seus pés. Atrás dele, o som de pneus queimando e deslizando pelo asfalto ressoaram pela rua estreita. Os pneus guincharam, altos e agudos, como um animal em seu último suspiro. Houve um potente estrondo e os sons de metal retorcendo-se e vidro quebrando dançaram naquela tarde quente de dezembro, ecoando no crânio de Thiago como tambores nefastos.
Quando Thiago, de ombros encolhidos e com seus olhos azuis arregalados, virou-se para a rua, avistou de imediato a cena do acidente. O carro – um velho, sujo e caindo aos pedaços Gol cinza – havia ido de encontro a um poste na calçada. O poste, inabalável, manteve-se em seu lugar, enquanto a metade da frente do carro o abraçara e envolvera, o poste cortando o capô cinza ao meio como uma faca em um pão macio e amassado.
Com o acidente, veio o guinchar dos pneus e o estrondo do impacto. Depois, veio o silêncio eterno e sufocante que desceu sobre a rua naquela tarde de sábado.
Thiago olhou para os lados, desesperado e sem saber o que fazer; travado em seu próprio medo. Finalmente, ele se moveu, correndo em direção ao carro.
Cheiro de fumaça e gasolina pairavam no ar, tamborilando pungentes através do vento. Os odores invadiram as narinas do garoto como um soco e, rapidamente, Thiago sentiu-se tonto e enjoado. Filetes de suor escorriam quentes pelo seu rosto, encharcando seu cabelo e fazendo seus olhos arderem. Sua cabeça aprecia arder, fervendo em chamas devido ao calor e ao medo.
O vidro do motorista estava fechado e completamente trincado, fragmentado como um mosaico, fazendo com que a única coisa que ele conseguia enxergar no interior do carro fosse a silhueta borrada do infeliz motorista.
Obrigando-se a agir, a mão de Thiago voou na maçaneta e ele paralisou por um instante.
Sangue, ele pensou, sentindo as lágrimas começando a surgir nos olhos. Vou abrir e vai ter sangue pra todo lado. Machucados e rasgões na pele. Não sei... Ele quase vomitou, mas se segurou. Não sei se vou conseguir fazer alguma coisa... Jesus Cristo, eu não sei...
Ele queria sumir. Desaparecer dali como se não tivesse visto nada. Logo, alguém – um adulto que saberia o que fazer – apareceria pra lidar com a situação. Ele... ele não tinha ideia do faria quando visse a pessoa no banco! Foda-se seu bebezão, abre a droga do carro! Ele gritou em sua própria mente. Respirando fundo, puxou a maçaneta e a porta, apesar dos amassados e hastes contorcidas, abriu-se com extrema facilidade.
Ele olhou lá dentro.
Havia sangue. Havia o odor da morte. E havia muitas outras coisas terríveis para se ver ali. Coisas das quais ele se lembraria durante anos e anos de sua vida, até que se tornassem memórias desfocadas e frágeis. Que o fariam dar risada ao ver um braço decepado em um filme ou um machucado qualquer, pensando “Há! Vocês não viram nada, senhoras e senhores, pessoalmente a coisa é muito diferente! Pessoalmente, a coisa é terrível!”. Contudo, não foi esse festim carmesim e rosado que fez um grito de horror subir através de sua garganta seca e projetar-se em seus lábios, impedido de soar não pela coragem e força de vontade, mas pela falta de força que ele sentia em seu corpo. Toda a energia parecia ter se esvaído de uma só vez de seu corpo, feito um balão furado vazando ar, deixando suas pernas bambas e os braços como dois inúteis sacos cheios de água.
Nada disso. Isso tudo era ruim. Muito ruim. Mas havia algo que o assombraria até seu leito de morte. Algo que estaria lá, estampado em seu rosto e em sua mente quando ele desse seu último suspiro:
Foram os olhos.
Foi a forma como os olhos daquele homem, confinados sobre as pálpebras ensanguentadas, abriram-se de repente e o olharam de volta, diretamente nos seus. Aqueles olhos azuis aquosos e leitosos.
Porque ele viu...
Viu com um pavor que o fez vomitar e sair correndo dali, afastando-se da cena como se se tratasse de uma doença altamente contagiosa e mortal da qual ele precisasse urgentemente se afastar.
Ele viu que aqueles olhos para os quais olhava eram familiares. Que – de alguma forma insana – aquele homem...
Aquele homem era seu próprio reflexo.
De alguma forma ele sabia que o homem ensanguentado, com a pele rasgada e um olho pendendo da órbita embotada de sangue, era ele, em um futuro distante. Eram seus olhos que ele via. Era para as próprias pupilas negras, dilatadas como dois abismos negros de puro e infindável horror, que ele encarava.
Deus do céu... sua mente gemeu enquanto seu coração galopava no peito, gritando e chutando, prestes a explodir.
Ganindo como um cão e segurando um berro que continha um amalgama espectral de emoções, Thiago correu para longe.
Para longe da pequena e sádica fotografia que recebera do futuro.
Merci pour la lecture!
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