reminiscência | viseul Suivre l’histoire

tem um porta-retrato seu na parede em frente à cama. fiz com que ele ficasse na altura dos meus olhos para que seu rosto fosse a primeira coisa que eu visse quando acordo. não é para eu não me esquecer de você. eu lembro muito bem de todos os seus traços, das células dos seus tecidos e de todas as suas versões esboçadas.

eu só não lembro o que foi que você me disse naquele dia em que tudo era branco, naquele último dia que eu deixei passar em branco.

sua voz não ecoa, não importa quantas vezes eu troque a moldura, e eu me pergunto, te pergunto e jogo as perguntas ao vento para quem estiver passando na calçada agarrar firme como um fio de balão a gás e vir bater na minha porta para devolver, assim como eu fazia quando as chaves do vizinho caíam no meu quintal.

tenho certeza que você riria se vasculhasse minha cabeça e encontrasse essas lembranças pérfidas que eu criei na tentativa de me convencer que o seu branco e o meu vermelho nem sequer existiram, ou nada tiveram a ver com o que você disse.

mas talvez ficasse decepcionada de ver todo o resto. porque haseul, existem mil e uma coisas das quais ainda me lembro.

lembro da sua coleção de bonecas russas que me dava arrepios da cabeça aos pés, e você guardava todas quando eu dormia na sua cama, me abraçava forte e espantava os pesadelos.

lembro dos aeroportos de madrugada, como as luzes me faziam vibrar, e lembro dos fogos de artifício na virada do ano novo lunar, das lanternas vermelhas e das frutas cristalizadas depois do jantar.

lembro de cristais suspensos, esculturas em rocha e lodo, licor caro e chá verde, e flores flutuando em rios.

eu lembro do corrimão da escada na minha primeira casa e dos bloquinhos de madeira no chão. eu corria com pés descalços com medo de que algum deles desmoronasse, e todos seriam engolidos pelas ruínas.

lembro da textura dos lençóis - ah, e isso eu nunca poderia esquecer - porque foram eles que selaram as promessas que fizemos na nossa noite mais amorosa, e não cumprimos ao menos uma. mas eu não ligo, eu sei que nossas intenções foram gravadas na égide de nossa própria sorte.

também me lembro de todas as esquinas, e posso dizer que decorei a distância entre as janelas das casas.

de tudo que deixei cair - meus enredos utópicos, sua voz cortando meus ouvidos, meu coração palpitante, cinzas ao mar, deja vus indesejáveis - eu me lembro.

lembro da cor do mel que você misturava no seu chá, e como eu fazia careta toda vez que me oferecia. lembro até mesmo da poeira da sua estante (você não me deixava espanar).

haseul, eu lembro do meu vestido furta-cor e como ele combinava com o pingente que você me deu. lembro muito bem de como ele desbotou a cor depois de tudo.

lembro dos dois mil axiomas que eu vi diante dos meus olhos e da sensação de cada um deles nas minhas digitais.

eu lembro de mil e uma coisas, lembro de ficções abstratas, lembro da mais inútil lembrança, mas não lembro o que você me disse dois segundos antes de cair nos meus braços, empalidecer, esvaziar-se do seu último suspiro e congelar para sempre.

eu queria não lembrar do olhar vazio que você me deu, do seu peso sobre mim, dos seus lábios gelados nem um pouco convidativos, dos gritos, dos passos, da pressa, do tumulto, das luzes e sibilos. mas eu me lembro.

tem um porta-retrato seu na parede em frente à cama. fiz com uma das suas versões mais sorridentes, olhar caloroso chamando meu nome. se eu não lembrar do branco tíbio nos seus olhos na última vez que olhou para mim, talvez eu não precise lembrar o que você me disse naquele dia em que tudo era branco, naquele último dia feito para ser nosso, meu e seu.

...

essa foi a primeira double drabble que eu fiz (e por enquanto a única) e eu me orgulho muito do resultado, espero que gostem também.

como eu deixei claro no wattpad, saibam que eu estou aqui pra qualquer coisa, qualquer conversa que precisarem <3