“FmC@v3!2021”
Marina digitou a senha para acessar os arquivos que
alimentavam a CAVE, o ambiente de realidade virtual do Dr. Felipe Manchão, excelente
e inovador profissional da área da saúde mental, de quem era secretária. O programa
servia de suporte à terapia que o doutor desenvolvia para lidar com pacientes que
enfrentavam bloqueio criativo.
Desde que o escritor Henrique Freire começara a tratar-se
com o doutor, a curiosidade de experimentar a imersão em um de seus livros
favoritos não a deixava. Então, secretamente, ela criou um programa de
simulação para si mesma, com o enredo do livro. E, agora, ela ainda poderia
usar o padrão racional e comportamental do próprio autor, que estava gravado no
banco de dados da clínica, para enxergar tudo como ele mesmo enxergava — ou
seja, da forma original, sem que nada fosse perdido no processo de interpretação
do leitor. Ou quase nada, porque sempre havia algo que se perdia.
E então, num sábado, lá foi ela, arriscando ser demitida do trabalho,
para experimentar algo que não tinha nenhuma autorização para fazer. Arrepios
de excitação correram por seu corpo quando encaixou a coroa de realidade
virtual e ativou os micropatches magnéticos. Na tela do computador, seu
mapa cerebral foi sobreposto pelo dele e o ícone que mostrava o status
da sincronização apareceu no canto inferior direito.
Ela já havia vestido toda a pesada roupa tátil para entrar
na CAVE, e, quando os dizeres “sincronização concluída” apareceram, programou o
início automático, levantou-se e abriu a porta para a câmara. Adentrou a
escuridão silenciosa, que sempre lhe dava medo, e fechou a porta atrás de si.
Contou até dez e esperou que as imagens se projetassem, do fundo até a frente, formando
o cenário ao redor.
Estava num belo parque metropolitano, numa tarde ensolarada.
Ouviu o canto dos pássaros e sentiu o sol aquecer sua pele. Fechou os olhos. O
programa do doutor era incrível. Mais real que a própria realidade. Pensou em
como a tecnologia era interessante. Imagens de alta resolução tinham tanta definição,
que mostravam até mais do que os olhos conseguiriam captar naturalmente. As
sensações que a CAVE proporcionava eram plenas, muito mais do que as que
experimentava em sua vida real. Gostaria de viver lá dentro, mas sabia que não
era possível.
— Ei, Cíntia!
Um rapaz a chamava. Abriu os olhos e o viu acenando,
convidando-a para se sentar ao lado dele, à sombra de um fícus. Pela aparência
e expressão, devia ser o jovem Melvin, o seu futuro marido. Mas, naquele ponto
escolhido da história, ainda estavam na universidade e não haviam se casado. Meu
Deus, não haviam nem se beijado! Era o beijo, o que tanto queria
experimentar. A descrição mais linda de um beijo que ela já havia lido.
Examinou cuidadosamente os traços do rosto, à distância. Não
era bem como havia imaginado quando lera o livro, “Azul Estígio”. Na época, era
apaixonada por um colega de trabalho e imprimira muita coisa dele na
imaginação. Aquele Melvin, ali, era o original? Parecia-se com Henrique, o
autor, se fosse mais jovem. E comprovava a tese de que os ficcionistas sempre
escreviam sobre si mesmos. Mas também tinha algo que lembrava o doutor. O
padrão de interpretação dela ainda estava bem ativo, afinal. Aquela era uma
impressão totalmente sua, vinda da paixão platônica que nutria pelo patrão.
Aproximou-se do rapaz e se sentou, colocando no chão a cesta
que trazia no braço, e não percebera.
— O sol está forte. Você demorou. — Melvin colocou a mão na
testa para bloquear a luz e conseguir olhar para ela. — Estava aqui brincando
de criar cores imaginárias. Você está roxa.
— Ainda vai ficar cego assim — disse ela. De fato. Seus
experimentos ópticos envolvendo a luz branca na formação de cores inexistentes
acabariam por cegá-lo, pouco antes do final do livro. Mas, naquele momento, ele
só brincava, intuitivamente, com a luz solar.
Marina, enquanto Cíntia, abriu a cesta e retirou a toalha
xadrez que cobria os potes. Melvin ajudou-a, estendendo o tecido sobre a grama.
— Fiz sua torta favorita — disse ela. — E trouxe chá de
hortelã na garrafa térmica, porque sei que gosta dele quente.
— Você é tão prestativa. Às vezes não sei como você ainda me
dá corda. Inclusive, queria me desculpar pelo outro dia.
Ela balançou a cabeça.
— Não tem problema. Você estava pressionado, eu entendo.
— O professor Isaque é um verme. Ele me tira do sério. Mas
eu não tinha direito de descontar meus problemas em você. — Melvin abriu a
garrafa e serviu o chá para ambos, enquanto Cíntia abria os potes com os
lanches. — Eu devia virar um eremita. Sempre acabo descontando o mau-humor nas
pessoas que mais gosto.
— Se isolar do mundo não é a resposta. Vamos, coma. Tenho
certeza de que não comeu nada hoje.
Ele riu.
— Não mesmo, “mamãe”.
A piada a fez sentir algo estranho. Além da admiração que
tinha pelo personagem que estava à sua frente, e das projeções românticas que fantasiava
com Felipe, o padrão comportamental do autor estava ativado. Então, uma mistura
de amor platônico com amor de mãe realmente apareceu para ela. Afinal, Henrique
Freire havia criado o personagem, e, como haviam conversado algumas vezes, tinha-os
quase como filhos.
Não havia sido uma boa ideia, entrar na CAVE com o padrão de
Henrique impresso no seu cérebro, enfim. Ela não conseguiria beijar Melvin, pensando
que aquilo era uma espécie de incesto.
— Você está estranha. Foi algo que eu disse no meio daquele
monte de besteira, na semana passada? Eu te magoei mesmo, não foi?
O rapaz tomou a mão dela com uma delicadeza incerta. Ela
sabia o que ele estava sentindo. Havia lido aquela passagem dezenas de vezes. E
o padrão de memória de Henrique também havia relido o trecho de forma obsessiva,
como o autor perfeccionista que era. Sentiu-se zonza com as palavras se
sobrepondo umas às outras, no seu pensamento. Fechou os olhos e não conseguiu
mais abrir. Tudo estava escuro como breu.
Dois braços a sustentaram por trás, antes de dar-se conta de
que estava caindo. Mas não eram os braços de Melvin, pois ainda sentia que ele
segurava sua mão. Havia outra pessoa.
— Marina, o que está fazendo aqui? — A voz do Dr. Felipe
Manchão soou na câmara escura.
A secretária retirou a coroa de realidade virtual e
levantou-se, tateando os arredores.
— Luz.
Ante à ordem dada pelo padrão de voz que a CAVE reconhecia,
as luzes se acenderam e os dois encontraram a saída.
— Me desculpe — Marina não tinha coragem de encarar o doutor
e olhava para o chão. — Eu queria ter a experiência de entrar no livro de
Henrique Freire. Sei que não tenho autorização para usar os arquivos do
paciente, mas...
— Marina, você tem noção do risco que correu, entrando
sozinha na CAVE? Se eu não estivesse próximo daqui quando recebi o sinal de
alerta de uso da câmara, não teria conseguido chegar a tempo e você poderia ter
tido um derrame lá dentro! Não estou preocupado com autorizações. Me preocupo
com você! — O doutor segurou-lhe as mãos. — Nem pense em se arriscar dessa forma
outra vez. Preciso de você. O que seria de mim sem sua ajuda?
— Ora, doutor, minha ajuda é irrelevante. Eu que não sei
qual sentido teria a minha vida se eu não fosse sua assistente. — Ela ainda não
tinha coragem para encará-lo. Ao invés disso, olhava para aqueles dedos, longos
e finos, que tocavam os seus. — Me desculpe, fui estúpida. Isso não vai se repetir.
— Era a cena do beijo, não era? — Felipe perguntou,
aumentando levemente a pressão nos dedos que segurava — Uma cena tocante, de
fato.
Marina ergueu os olhos e encontrou os dele. O coração
saltava no peito e fazia o resto de seu corpo tremer. O doutor perceberia seu
nervosismo. Soltou as mãos, sentindo um misto de insegurança e vergonha. Gostava
tanto dos livros porque não sabia reagir à realidade. Preferia manter o amor
platônico, a ser rejeitada. A rejeição não tinha volta. Nunca mais poderia
olhá-lo.
Mas ele insistiu em recuperar o toque interrompido. E foi
além, segurando-lhe o rosto.
— Marina, olhe pra
mim. — Ainda receosa, a secretária obedeceu e ele continuou: — Me preocupo com
você e não quero que se machuque. Era só me pedir e eu te supervisionaria, para
que fizesse isso em segurança. Sei o quanto gosta daquele livro e o trabalho
que deve ter tido para subir o enredo no programa. Não vou me opor. Embora isso
não seja uma autorização, podemos usufruir de algum benefício, permitido pela
nossa posição, não podemos? Vá e eu controlo a experiência para você.
— Mesmo, doutor? Faria isso?
— Claro. Se vai te faz feliz e mantê-la em segurança... Eu
não tenho família, Marina, você sabe. A pessoa mais importante para mim é você.
Disse a sério, que não saberia o que fazer sem você. — Sem deixar as emoções
transparecerem mais que essas palavras, Felipe dirigiu-se para a mesa do
computador e sentou-se. — Mas vá sem sobrepor o padrão de Henrique, será mais seguro
e você poderá usufruir melhor a experiência.
Marina sorriu e encaixou novamente a coroa de realidade
virtual sobre a cabeça. Quando abriu novamente a porta da CAVE, estava feliz. O
doutor não a rejeitava. Era uma paixão platônica de mão dupla. Podia lidar com
isso. Aproximou-se novamente de Melvin e sentou-se ao seu lado, retomando a
cena de onde tinham parado. Mas, agora, ele não tinha nenhum traço de Henrique
Freire, ou do personagem original. Ali, na sua frente, estava o rosto do Dr.
Felipe Manchão. E ela sabia o que ele estava sentindo. Já havia lido aquela
passagem dezenas de vezes.
Merci pour la lecture!
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