Algumas notas:
1. Essa é a primeira fanfiction que eu escrevo em minha vida. Então eu já agradeço aos fanfiqueiros de plantão que aparecerem por aqui com comentários, sugestões e críticas :) vocês fazem um trabalho bem interessante aqui na plataforma;
2. Clow é um personagem que aparece em pelo menos 3 quadrinhos (mangás) diferentes: xxxHolic, Tsubasa Reservoir Chronicle e Sakura Card Captors. Dessa forma, existem referências a alguns personagens dessas obras ao longo do conto. Existem várias teorias acerca de Clow por aí, eu apenas me mantive naquela mais lógica e simples de entender e que não deixasse os leitores muito confusos.
No mais, boa leitura!
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Danilo Tavares da Silva era um adulto sem muitas perspectivas na vida. Escola, ensino médio, depois técnico para se findar numa loja de produtos de limpeza como telefonista, balconista, estoquista e, vez ou outra, consertando o pc do Seu Zeca com um bom e velho chute.
Sua rotina era mesma já há muito tempo e os dias lhe pareciam mais que estavam passando por ele como quem olha pela janela de um trem em alta velocidade. Tudo um borrão.
Com um suspiro entorpecido, ele se apoiou no balcão da loja vazia, as pessoas passando pela calçada, nenhuma entrando. “Até quando eu vou conseguir me manter nesse lugar? Ou melhor, até quando o Seu Zeca vai conseguir pagar meu salário? Se eu perder isso aqui, o que meus pais vão pensar? Bom, se bem que eles não pegam no meu pé mais...já entenderam que certas coisas não dependem nem do meu esforço.”
Danilo sentiu o coração bater mais rápido e ele tentou se controlar para não ter mais uma crise de ansiedade. Afinal, o remédio seria caro demais, literalmente. Percebeu que seus olhos começaram a ficar nebulosos. “Merda de choro.”
Depois do trabalho, já de banho tomado e sem nenhum apetite para comer o pão com queijo que sua mãe tinha deixado pronto na mesa da cozinha, Danilo sentou-se na cadeira velha do seu quarto, olhando pela janela sem ver. Certos pensamentos estranhos tinham lhe passado durante aquele dia. Por que diabos aquilo estava acontecendo? Ele odiava quando seus pensamentos o pegavam de surpresa! Eram questionamentos que o faziam perceber o quanto estava refém de uma rotina monótona, sem graça, cinzenta... “Quando tudo isso tinha começado. Fui eu mesmo que tracei esse futuro ridículo pra acabar assim?!”
Danilo não se lembrava de ter tido uma infância ou adolescência tristes, muito pelo contrário! Ele lembrava de que ir para a escola a pé era uma aventura todos os dias, e os períodos na lá...vish! nem se fale...
Ele soltou uma risadinha boba no escuro do quarto. Caramba, as coisas bestas que ele pensava quando ia pra escola...imaginava-se caminhando, conversando bobagens e planejando o dia com os personagens de desenho que via na tv aberta e lia nos quadrinhos, como se estivessem ali ao lado dele, criando estratégias de como Danilo poderia se desviar das caçoadas dos garotos de classe. Afinal, ele era o único otaku de lá.
Com uma nova risada e um “meu deus, como era mesmo o nome daquele personagem...?” ele pegou o celular de tela trincada e começou a pesquisar sobre imagens dos desenhos antigos e páginas dos quadrinhos. Não é necessário realmente falar em quantos “Meus deus! Nem lembrava disso!”, “Velho, que vergonha alheia...”, “Nossa, aquele foi o melhor episódio de todos os tempos!” ou “Espero que ninguém tenha nenhuma foto minha daquela convenção de animes...” foram ditos naquela madrugada; nem que apenas uma madrugada teria sido o suficiente para cobrir todos os quadrinhos, personagens, aberturas e encerramentos que marcaram a infância de Danilo com cores vivas e alegres.
As lembranças cheias brilho infantil aqueceram o coração de Danilo de uma maneira que há muito ele não sentia. E seus olhos se fecharam com imagens dos seus personagens favoritos, seus ouvidos tocando a melodia de Densa Floresta e seus lábios num sorriso sonhador. “Seria bom poder viajar sem direção...”
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Antes de abrir os olhos, Danilo e seus pensamentos eram uma coisa só, tipo uma meio que maçaroca adormecida, e a cabeça dele estavam um tanto...desconfortável. Com mãos pesadas que tentavam seguir um rumo conforme a desorientação do sono, elas foram para perto da sua cabeça, a procura do travesseiro, mas em vez de encontrarem algo macio, tropeçaram em vários objetos pequenos que caíram no chão, fazendo um barulho enorme aos ouvidos sensíveis da manhã.
Com um pulo, Danilo levantou a cabeça, fazendo tudo girar. “Cadê o celular?! Merda, se ele quebrar mais a tela, aí me ferrei bonito!” Ele logo mirou o chão de madeira, coçando os olhos e tateando pelo celular, tropeçando sozinho. Demorou um pouco mais do que o normal para ele perceber que aquele não era o quarto dele.
Danilo se levantou e olhou para os lados, achando que ainda estava dormindo. “Éééé...tipo, tipo aqueles sonhos que a galera consegue controlar...” Apesar de que aquilo não parecesse um sonho. Na verdade, tudo parecia ser muito real e...palpável. Ele pegou os objetos do chão e voltou todos para a mesa onde ele provavelmente tinha acordado. Percebeu que eram objetos meio antigos, mas também modernos, vários papéis de pergaminho escritos e manchados, além de instrumentos que mais pareciam elementos da ciência antiga. E uma coisa apenas que por mais banal que fosse fez Danilo sentir um arrepio dos pés à cabeça: um prato florido de porcelana com um garfo de prata no canto da mesa. Aquilo não parecia estar no lugar certo.
Por um momento, ele pensou que talvez estivesse tendo uma crise de ansiedade bizarra ainda não documentada pela ciência médica. Mas seu coração não batia desenfreadamente, nem seus pulmões pareciam perder a capacidade de absorver oxigênio. Então, ei, talvez ele estivesse mesmo num sonho. Com os olhos brilhantes de excitação, Danilo ergueu as mãos, os braços afastados, e se concentrou num pequeno relógio de sol antigo. Se aquilo fosse um sonho, ele com certeza iria usar a Força para levitar algo.
Entretanto, quem se viu sendo lançado pelo ar de repente foi o próprio Danilo. Seu corpo foi arremessado com uma força desnecessária pela sala, batendo com estrondo numa parede onde um quadro enorme estava pendurado e fazendo o suporte de uma cortina espessa e vermelha cair por sobre ele. Desnecessário também dizer que todo esse percurso foi sonorizado por um horripilante grito.
Depois que Danilo conseguiu recuperar o ar e sair debaixo das cortinas engatinhando e tossindo, seus olhos miraram um par de sapatilhas azuis escuras com detalhes em dourado. Aos poucos, e ainda engasgado, ele foi subindo o olhar para se deparar com um jovem alto, de cabelos pretos e escorridos até os ombros, óculos de aro fino e redondos, olhos escuros e afilados, pele branca e lábios finos.
Foi aí que a mente de Danilo travou de vez. Ele sabia que já tinha visto aquele cara em algum lugar! Mas onde, onde?!
– Jesus amado! – ele botou as mãos na cabeça, os olhos arregalados.
– Jesus? – a voz tranquila do outro era alucinantemente conhecida, mas ainda assim a memória de Danilo parecia não querer cooperar. – Obviamente que você é estrangeiro, mas de qual país, eu me pergunto...Se bem que isso não importa agora.
Ele ergueu um braço e o manto preto e macio pendeu longamente do braço, roçando de leve o rosto embasbacado de Danilo. Aquele roçar o fez se lembrar de mais alguma coisa...escuro, mas brilhante e...a voz de uma garota!
Danilo fechou os olhos quando viu que seu corpo começou a ser levitado outra vez pelo jovem.
– Pera, pera, pera! Calma! – ele balançava os braços no ar, seu corpo girando pela falta de gravidade. – Eu tô lembrando de alguma coisa, é...ãh, alguma coisa, mas o quê! Merda... você, eu já vi você!
De ponta-cabeça, ele apontou acusadoramente para o jovem, que sorriu achando graça, mas seu olhar demonstrava uma certa preocupação.
– Fingir demência não é um golpe novo contra mim. E eu tenho certeza de que não o enfeiticei para que esquecesse quem sou eu. – cruzou os braços e desviou o olhar brevemente – Sou um mago, mas não lanço maldições em ninguém.
– Mago...MAGO! MAGO! É ISSO!! – Danilo bateu palmas para si mesmo e começou a gargalhar. Aquilo era impossível e hilário. Fazia anos, que não se lembrava daquele cara, aquele desenho com cartas e brilho... – MAGO CLOW! CLOW REED!
O outro jovem estreitou os olhos e estudou analiticamente Danilo antes de fazê-lo cair no chão sem cerimônia. A caída não o fez perder a animação, mas a nova dor o fez pensar rapidamente que aquilo talvez não fosse mesmo um sonho. A presença do mago era uma monstruosidade tamanha que o amplo cômodo separado em quatro ambientes por poltronas, mesas e objetos estranhamente grandes parecia minúsculo com ele dentro.
Danilo continuou a rir como criança, a memória trabalhando em flashes, lançando imagens do mangá, do desenho infantil, da música de abertura, do bicho amarelo com um cabeção. Clow Reed fez uma careta diante do homem aparentemente insano e optou por se voltar a sua mesa de trabalho depois que percebeu que Danilo era inofensivo.
Sem notar, o pés de Danilo começaram a perambular sem controle, indo de um canto a outro, tagarelando sem parar sobre a Sakura, a Tomoyo, o Shaoran, a Meiling, o Touya, o “Ai, ai, ai, Yukito!”, e claro: as Cartas!, enquanto Clow Reed tentava ignorar o falatório sem sentido.
– AS CARTAS! Cadê elas?! – Danilo gritou do outro lado da sala. – Eu sempre, SEMPRE quis ter aquelas cartas! Eu teria que vender meu rim pra ter elas. Por favor, me mostra só umazinha!
Clow Reed virou-se, de repente confuso, mas em silêncio. Danilo cruzou a sala correndo, coisa que o mago instintivamente entendeu como um ataque e ergueu os braços à frente do rosto.
O movimento e a força mental do seu instinto foram o suficiente para fazer várias coisas voarem pela sala, as janelas foram quebradas por inúmeros galhos grossos que vinha do jardim, infestando o aposento com plantas, uma chuva fina começou a cair do nada, molhando tudo e tornando o carpete de madeira escorregadio, bolinhas luminosas apareceram na atmosfera chuvosa disparando para tudo quanto era lado (acertando Danilo várias vezes e fazendo Clow Reed se desviar o melhor que podia enquanto tentava salvar o máximo de pergaminhos naquele temporal interno), uma névoa espessa tomou conta do lugar dificultando a visibilidade e, como cereja do bolo, Danilo foi preso por uma corrente de ferro incrivelmente dura, sem chance de escape caindo como uma tora num pequeno lago que já se formava na sala.
Clow Reed, os braços cheios de pergaminhos encharcados, os óculos pontilhados por gotículas de água, sentiu um bom peso nos ombros (e não era das vestes coladas ao corpo). Ele fechou os olhos com força, equilibrou o melhor possível a pilha de pergaminhos num braço só, correu até Danilo (que se debatia com a cara na água, tentando respirar), puxou-o com a mão livre, arrastando-o para fora da sala. Por uma das janelas altas e quebradas, Clow Reed jogou os pergaminhos no jardim e começou a puxar Danilo acorrentado para o lado de fora.
O jovem mago largou Danilo no meio da grama alta e também sentou-se pesadamente com um suspiro cansado. Ele olhou de soslaio para Danilo, o rosto branco de medo e os olhos arregalados, os lábios pálidos murmurando baixinho “Isso não é um sonho, é um pesadelo, eu quase morri, não conseguia respirar, é um pesadelo...”
Sorrindo em desculpas, Clow Reed comentou num tom falsamente alegre:
– Ainda bem que consegui tirá-lo de lá. Acho que seria um pouco constrangedor se você morresse afogado numa poça d’água. Bom também os gatos não estarem por ali hoje.
Danilo desviou o rosto perplexo para o mago, tentando se livrar do aperto das correntes.
– Quanto mais você se mexe, mais as correntes apertam – o tom leve e misturado à risada do mago, o sorriso bondoso em seu rosto e o encolher de ombros, fizeram Danilo retrucar com raiva.
– E isso aqui é um elevador pra conversa ter esse tom?! Que diabos aconteceu? Por que você fez isso? Eu não fiz NADA, só queria ver as cartas!
Clow Reed voltou a encolher os ombros e baixou o rosto num sorriso envergonhado. Ele não sabia o que fazer com seus dedos aparentemente.
– Pois é, eu...uh, lamento? O que você acabou de ver ali dentro foi o meu...poder.
– O seu poder?
Clow acenou silenciosamente, todavia o semblante sorridente não era o suficiente para esconder a tristeza e o abatimento dele.
O cérebro de Danilo trabalhou por vários minutos, voltando de Clow para a sala caótica algumas vezes, até que ele conseguiu juntar os pontos. Pigarreou:
– Não tem nenhuma carta lá, né?
– Eu realmente não tenho ideia de que cartas sejam essas que você fala. Se alguém te informou que tenho alguma carta mágica ou coisa do tipo em minha casa, já digo que o seu investimento foi muito mal gasto.
– Investimento?
– É. O dinheiro que você pagou para o seu informante que disse que eu tenho cartas mágicas aqui. Quer dizer, você é só mais um dos ladrões que volta e meia tentam me roubar segredos místicos, não?
Danilo contraiu as sobrancelhas, agora entendendo melhor a forma como o mago o recebeu anteriormente.
– Te dou minha palavra de que eu não sou um ladrão, nem invadiria a casa de um mago. Já li histórias o suficiente pra saber que isso é no mínimo arriscado... Na verdade, nem sei como vim parar aqui, honestamente. Eu fui dormir ontem à noite e quando acordei...bum! Eu tava na sua mesa.
– Uh. Simples assim?
– Simples assim.
Clow Reed caiu em novo silêncio, deixando Danilo um tanto constrangido. Por sua vez, Danilo voltou a mirar o aposento onde ainda chovia, o jardim onde as plantas não paravam de crescer (agora num ritmo menos acelerado), a névoa que começava a sair pelos vitrôs como se tivesse vida própria se dissipando com os raios de sol. Sua memória agora estava sendo uma boa amiga, pois passou a reconhecer cada um dos poderes que tinham sido evocados ali. Ficou paradinho para que as correntes não o apertassem ainda mais e o ar começasse a lhe faltar.
– Ah, então, me diz uma coisa. Quando é que você vai desfazer essa...magia ou poder?
O mago, que estivera submerso em pensamentos, voltou o olhar distante para Danilo e então, como se acabasse de lembrar da existência dele, soltou um “ah!” e respondeu sorridente:
– Eu ainda não sei como fazer isso direito para ser sincero. Eu apenas deixo a magia perder sua força enquanto acalmo meus pensamentos.
Danilo respirou fundo, sentindo sua paciência se perder com o toque daquelas correntes. Ele não queria ter nem o início de uma crise de ansiedade. Pelo visto, nessa situação, o Clow seria tão útil quanto uma mosca e ele acabaria sendo esmagado aos poucos pelo ferro. “Ok, Danilo, é só mudar o rumo dos pensamentos.”
– Tudo bem, então, o que você costuma fazer pra acalmar seus pensamentos?
Clow sorriu abertamente, agora de forma honesta.
– Eu como doces. Uma boa ideia essa. Vamos lá, eu o carrego nas costas enquanto vamos à cozinha. Sei que não parece, mas sou bem forte!
E Danilo deixou-se carregar timidamente até outra parte da residência do mago. Durante o trajeto, ele não conseguiu ver muitas coisas, a não ser várias partes do jardim (que, não fosse o poder evocado desenfreadamente, seria muito, mas muito bonito) e corredores, vários corredores.
Ao chegarem na cozinha, Clow depositou sua carga humana numa cadeira e abriu a geladeira, coisa que deixou Danilo ainda mais perplexo. Ele certamente não esperava ver uma geladeira num lugar como aquele, muito menos uma cozinha moderna como aquela...
– Tenho ainda um bolo de morango que fiz ontem de manhã, está divino. Ah! Você gosta de chá? – e antes que Danilo pudesse responder, ele continuou – Esse chá tem especialmente um aroma magnífico que faz qualquer um se apaixonar!
Aquilo fez Danilo ficar um pimentão, mas o mago nem percebeu, ocupado que estava com os utensílios para o que seria aparentemente uma cerimônia do chá moderna.
Mesmo que as maneiras de Clow Reed fossem um pouco excêntricas, ele não podia negar o sentimento bom que sentia dentro dele. Naquele lugar, estando dentro ou fora da residência do mago, tudo parecia luz, sol, estrelas... Não era à toa que o desenho da Sakura tenha sido considerado “feito para meninas”, embora Danilo não entendesse o motivo de brilho e alegria ser ligado estritamente a um gênero em específico. Quando ele era mais novo, costumava ver o desenho na televisão (apesar de fazer isso em completo segredo, claro). “Droga de machismo, ferrou a gente...”
Enquanto o mago servia os pedaços de bolo e o chá, Danilo começou a recordar a história de Clow. Os pais dele eram magos também: o pai, inglês; a mãe, chinesa. Sendo assim, nada mais do que natural para Clow Reed usufruir das magias do Ocidente e do Oriente. Talvez, o mago fosse algum tipo de manifestação do Yin e do Yang, as duas polaridades que regem o universo. Sua mente tentou buscar nos cantos mais profundos do seu cérebro mais alguma informação sobre o mago, mas tudo que voltavam eram algumas lutas que a Sakura tinha feito e o “ai, ai, ai, Yukito”.
Internamente ele se desprezou um pouco por isso e refreou a vontade de cantar a música de abertura do anime. Durante essa luta interna, vários gatos apareceram na cozinha, miando e roçando seus rabos longos na cadeira onde estava empoleirado. Danilo pensou divertidamente se era por isso que Kero e Spinel tinham forma de felinos.
Ele desviou sua atenção dos gatos para Clow que trabalhava pacientemente na mistura das ervas e vez por outra acariciava os gatos.
Notou que o mago aparentava ser alguns anos mais novo do que ele. “Se o mago Clow não sabe nada mesmo sobre as cartas, isso significa que elas ainda não foram criadas. Ele criou as cartas justamente para controlar seus poderes...então, provavelmente eu cheguei antes disso tudo acontecer.”
O jovem mago mexia novamente no bule de chá, adicionando um ramo de uma planta desconhecida e agitando a água outra vez, fechando os olhos ao inalar o aroma perfumado. Danilo tentava forçar a memória sobre a história que conhecia, mas não se recordava muito bem do passado de Clow. Pelo menos aquilo não era muito falado na história da Sakura
Assim que coou o chá e preencheu duas lindas xícaras de porcelana, Clow Reed se sentou ao lado do seu visitante acorrentado, pegou um pedaço razoável de bolo com um garfo de prata e disse:
– Abra a boca assim: aaaaahhhh.
Danilo arregalou os olhos e quase caiu da cadeira.
– Você só pode tá de brincadeira comigo!
Clow realmente não entendeu a atitude exagerada.
– Ao que me parece as correntes ainda estão bem presas em você. Duvido que vá conseguir comer sozinho.
– Vou arriscar algumas chances – obviamente o lado másculo de Danilo berrava por dentro e ele tentou mal e porcamente segurar o garfo ou pegar um pedaço do bolo com as mãos. Caiu várias vezes, e na última, ficou apenas deitado no chão, exausto e um pouco suado pelo esforço.
O mago, que estava no seu segundo pedaço, perguntou com a boca cheia de chantilly:
– Desiste ou seu orgulho ainda o fere?
Danilo bufou.
– Ah, dane-se. Só me ajude a levantar...
O que Clow fez rapidamente. Apesar do sorriso no rosto dele, Danilo não viu nenhuma malícia nem impressão daquele retrucar batido “Não avisei?”. Pelo contrário, a leveza do rosto dele, dos movimentos, dos olhares era tão demasiadamente diferente de tudo que ele conhecia em seu mundo. Sua mente se prendia com tanta facilidade naqueles detalhes, soltando pouco a poucos vários nós criados no interior dele, fazendo-o sentir-se como que carregado por uma correnteza suave. Até que...
– Yuuka! – Danilo de repente se lembrou do nome da personagem dos quadrinhos xxxHolic.
Clow contraiu as sobrancelhas um pouco intrigado, mas mais suspeito. Deu outro pedaço de bolo para Danilo.
– Você conhece a senhorita Hajiwara?
– Ãh bom, não exatamente. Eu lembro de uma guria na escola que gostava desse mang- – Clow apoiou os cotovelos na mesa, inclinando-se para mais perto de Danilo. Ele se perguntou se seria uma boa falar que o próprio mago fazia parte de um mundo imaginário. Perscrutando o brilho nos olhos dele, Danilo achou melhor não. – Uma amiga minha, uh, de muitos, muitos anos, comentou certa vez sobre essa mulher chamada Yuuka. Que ela era uma mulher poderosa.
Clow deu um meio sorriso e pegou um morango de cima do bolo.
– Chamá-la de poderosa é pouco.
– É, bom, enfim. Talvez ela possa te ajudar a sei lá, fazer alguma coisa com isso dos seus poderes. – Danilo tentou jogar uma cartada. A sugestão fez o mago pensar.
– Não tinha cogitado pedir ajuda para a senhorita Hajiwara ainda. Essa é uma ideia intrigante, mas não mais intrigante do que você saber da existência de Hajiwara.
Danilo sentiu um arrepio. Será que tinha cometido algum erro? Na verdade, ele nunca tinha nem chegado perto dos quadrinhos xxxHolic, só lembrava superficialmente de uns paraneuê bem bizarros que a guria da escola falava a respeito. Uns negócios estranhos sobre viagens no tempo e realidades paralelas; ela tinha dito que o mago Clow de Sakura Card Captors tinha conseguido ajuda dessa tal de Yuuka do xxxHolic para conter seus próprios poderes, criando as cartas Clow. Então, no fundo, Danilo não sabia nada dessa tal de Yuuka.
Ele abriu a boca para receber mais um pedaço de bolo e ganhar tempo.
– Não sei porque você diz que eu não deveria saber sobre ela.
– Digamos que seres humanos normais não conseguem ver Yuuka tão facilmente. – os olhos de Clow brilharam estranhamente ao dizer aquilo.
– Eu te garanto que sou bem, beeem normal. Tipo o mais normal dos normais. Se eu te contasse minha vida, você veria que ela é...bem normal.
– Prossiga pois.
– Ah, ok, certo. Tudo bem. Uh, eu moro com meus velhos e trabalho numa loja de produtos de limpeza todos os dias da semana, incluindo sábados. A loja não tem conseguido se manter muito bem, então talvez eu seja demitido em breve... Se eu não tô parado no balcão esperando alguém entrar na loja, eu fico em casa. Janto com o pai e a mãe e vejo o jornal. Se passa algum filme de noite eu vejo com eles... Não tenho contato com ninguém da escola, nem com ninguém que fez técnico comigo. Eu costumo jogar uns joguinhos no meu celular, mas depois que a tela trincou, perdeu um pouco a graça... Nunca saí com ninguém também, nem tenho gato ou cachorro. Nossa casa também não tem jardim pra cuidar, mas minha mãe tem um pé de boldo que é o xodó dela. Na real, acho que ela gosta mais daquela planta que de mim...
Clow Reed analisava e pesava cada uma das palavras pronunciadas com uma seriedade anormal. Se Danilo não conhecesse um pouco da vibe da história, acharia que o mago estava tirando sarro dele.
– Então? Bem normal minha vida, né. Bem legal.
– Uh, na verdade não. Sua vida segue rumo a uma depressão degradante se você não encontrar algo em que se segurar. Sua vida parece ser bem triste.
O tapa na cara foi bem dado e Danilo ficou em silêncio. Mesmo que ele já soubesse daquilo, ouvir as palavras de outra pessoa era como encarar sua vida cinza de frente. Às vezes é mais fácil fingir que essas coisas não estão na gente.
– Mas isso não é problema, meu amigo – o mago se levantou de um salto. – Ouvir sobre sua vida me fez refletir sobre certas coisas e acho que descobri algo.
Ele andou até uma porta do lado oposto da cozinha e abriu-a.
– Ó, veja! Suas correntes já desapareceram! Venha. – ele fazia sinal para que Danilo o seguisse porta afora. – Vamos aqui fora, a noite já está caindo e do campo podemos ver as estrelas com mais facilidade.
Danilo passava as mãos pelos braços, a fim de massagear as partes onde as correntes o apertaram com força, e seguiu para fora da residência. Na caminhada pela relva verde e baixa, ele olhou para trás. A arquitetura da residência do mago era linda, a mistura perfeita de equilíbrio entre as arquiteturas ocidental e oriental, o moderno com o antigo.
A brisa úmida e levemente gelada subiu pela ravina e bagunçou os cabelos dos dois.
– Eu acho que sei como você veio parar aqui, meu amigo. Ontem eu estava estudando e praticando diferentes técnicas a fim de controlar meus poderes. – Clow fechou e abriu as mãos, olhando com pesar as linhas das palmas – Pensei que se eu conseguisse dissipar meu poder em partes, distribuindo-o para outras realidades, eu poderia controlá-lo melhor.
– Isso até que tem sentido com a história – Danilo começou a falar, fazendo o mago dirigir aquele mesmo olhar estranho da cozinha. – Quer dizer, seu raciocínio até que tem lógica, mas honestamente como essa coisa que você fez ontem me trouxe pra cá?
Clow fechou os olhos e alargou o sorriso até transformá-lo numa gargalhada levada pela brisa até as estrelas que despontavam no céu. Parecia um suave sino de vento. Aquele som fez o coração de Danilo bater mais rápido e ele ficou sem jeito. O mago respondeu:
– Digamos que para criar uma ponte entre lugares nós precisemos demarcar pelo menos dois, uh, vamos chamá-los de pontos. Um de cada lado. Esses pontos são como pilares de sustentação para a ponte, para a conexão. Aparentemente eu devo ter localizado um desses pontos no lugar de onde você veio.
Danilo cruzou os braços e coçou o queixo, fingindo entender.
– U-hum, e que pontos são esses que você demarcou?
– Isso é simples. Ou pelo menos achei que fosse...não tenho tanta certeza agora já que pelo visto a magia não saiu como o planejado. Mas meu ponto inicial foi escolher um dentre alguns “pontos” que existem em qualquer parte do universo e que são como que “eternos”. No caso, eu escolhi aquele de que eu mais precisava e que mais me sustenta no momento.
Ele fez uma pausa e por fim disse:
– Esperança.
Danilo demorou algum tempo para compreender a profundidade daquilo, sem muitos resultados. Clow desviou o rosto segurando uma risada ao ver a confusão de Danilo.
– Não se preocupe tanto em entender sobre as mecânicas da magia. – ele deu um tapinha no ombro dele e se deitou esparramado na grama – enquanto isso vamos só ouvir as estrelas.
E esse hábito novo de se deitar e olhar o céu, as nuvens, as gotas de chuva nas plantas, os raios de sol entrando pelas janelas, de sentir o aroma dos chás, o vento nos cabelos tornou o vínculo de Danilo ainda mais profundo com aquele mago excêntrico que deveria existir apenas em suas memórias de criança.
Enquanto Clow passava seus dias normalmente, vez ou outra sumindo como fumaça para praticar alguma magia que Danilo não pudesse ver (e aparecendo do nada ao lado dele), Danilo ia observando à distância não só o mago, mas a si mesmo. As recordações dos momentos em que ele lia Sakura Card Captors voltavam paulatinamente, como pequenas ondas que, a cada uma, traziam uma memória nova-velha, roubando dele um sorriso (e às vezes algumas lágrimas).
Uma história que falava sobre sentimentos, desenvolvimento emocional, relações entre pessoas, sobre viver momentos. Uma “história de criança” que ensinava que o amor independia de gênero e que por si só era puro. Essa era a história de Sakura. A história que ele tinha escolhido esquecer na sua jornada de ser adulto...
E foi numa dessas reflexões de Danilo, sentado abaixo de uma cerejeira, que Clow Reed novamente o surpreendeu aparecendo flutuando ao lado dele rindo daquele jeito que só ele conseguia:
– Achava que você demoraria um pouco mais para entender.
Danilo surpreso e um pouco constrangido, secou sem jeito os olhos marejados e tentou mudar de assunto.
– Do que está falando? Já tá na hora do chá?
O mago sorriu singelamente, mas Danilo notou um toque diferente no olhar dele.
– Talvez meu achismo fosse porque eu gostaria que você ficasse um pouco mais. Às vezes alguns momentos podem ser solitários. Sua presença ajuda quando isso acontece.
– O que você quer dizer com isso?
– Que está na hora de você voltar. Vamos.
Aquilo deixou Danilo estupefato e ele demorou para se ligar. Até que saiu correndo em direção ao mago, alguns metros à frente.
– Não, não! Como assim, voltar?
– Você já ficou tempo demais aqui. Se ficar mais, é provável que alguma linha do tempo de modifique demasiadamente causando um efeito dominó e refletindo em várias outras pessoas de outros tempos e espaços...
“De novo esse auê de viagem no tempo! Nunca entendi essa bagaça!”
– Mas e se eu não quiser? – o mago continuou andando até um dos aposentos da residência onde ele costumava ler seus livros de magia. – Você é poderoso, Reed. O suficiente para me deixar ficar. Por favor...
A voz trêmula dele o fez parar, mas Clow não se virou, apenas se desculpou, abriu a porta do aposento e entrou.
Danilo pensou por um, dois, três momentos antes de entrar. Talvez pudesse dizer alguma coisa que fizesse Clow pensar duas vezes antes de o mandar de voltar para o seu mundo.
– E se der errado e você me mandar pra outro mundo que não o meu? Quer dizer, da primeira vez deu errado e vim parar aqui, não?!
– Pensei o mesmo que você, por isso nos últimos dias fiquei treinando minha magia para ver se a conexão iria ser feita sem problemas. Assim, o que faltava era esperar por você.
Danilo estava parado na porta, como se algo o impedisse de se aproximar. Clow conseguia sentir a inquietude e tristeza no aposento.
– Eu soube que aquele mundo era o seu, porque lá faltava algo, que antes também faltava em você, mas que agora você já reencontrou. – Clow pegou uma espécie de papel retangular, onde de um lado estava limpo e o outro com vários traços à tinta preta. – Seria essa a carta que você estava procurando no primeiro dia em que veio?
Mesmo à distância, Danilo iria identificar aqueles traços de qualquer maneira. Era o símbolo de Clow que ficava atrás de cada uma das cartas Clow. Ele acenou que sim.
– Embora você soubesse de aspectos específicos da minha realidade que não seriam de conhecimento comum no seu mundo, visto o jeito dele ser, você ainda assim permaneceu em silêncio sobre certas coisas. Mas mesmo o silêncio fala e eu entendi que talvez a criação de cartas pudesse ajudar no controle do meu poder. Dividindo-o em características e transferindo cada uma delas para...cartas. Ideia interessante, bem interessante. Se não fosse você, não sei se teria pensado nisso...
Os ombros de Danilo caíram sugestivamente diante daquilo. “Então, é isso? Agora que ele entendeu o que tem que fazer, as cartas vão ser criadas; de alguma maneira elas vão parar nas mãos de uma garota de 10 anos num Japão fictício; e eu vou voltar pro meu mundo e ver toda a história se desenrolar como deve ser à distância? Por que eu tô sempre à distância?”
– Você vai ficar bem, com certeza.
Danilo apertou os punhos, as unhas machucando-o. Aquelas palavras caíam tão bem vindo dele. Tocavam tão fundo...
– Se eu tenho mesmo que ir, tem uma coisa que quero perguntar. Uma coisa que tem me incomodado um pouco, Reed, por mais ridículo que isso pareça. Antes de ir, eu posso saber?
– Sim? – Clow virou-se para ele com seu rosto angelical.
– Eu sei que isso pode ser meio tardio, mas...desde que eu cheguei você não perguntou qual era o meu nome. Tipo, eu sei o seu, mas você não sabe o meu. Acho.
Clow Reed pôs as mãos atrás das vestes e deu um sorriso acanhado, lembrando de sua amiga japonesa.
– A senhorita Hajiwara costuma brincar que se você der seu nome a alguém, esse alguém pode controlar sua alma. E que se você der o seu aniversário, ele pode controlar sua vida. Eu não desejo ter esse controle sobre você, a mera ideia disso já é horrível por si só. Um pesadelo praticamente.
Danilo sustentou o olhar do mago com lágrimas e garganta presa. Por um motivo quase infantil, diriam aqueles mais duros de coração, ele não queria voltar para o seu mundo, pois um lugar de fantasias era muito melhor do que a crueza da realidade. Todavia, a simples verdade era que ele não queria deixar Clow, mesmo sabendo de toda a história a se desenrolar no futuro; não seria isso motivo suficiente?
Clow Reed também notou algumas lágrimas se formarem, mas seu sorriso continuou firme e sereno. Ele abriu os braços longos e puxou Danilo num abraço. Como se aquilo fosse o estopim para os sentimentos avassaladores de Danilo transbordarem peito afora.
Ele chorou e chorou, copiosamente. Suas mãos apertaram com força o manto escuro do mago. Compreendia então o que o personagem de Yue devia sentir por Clow, era o mesmo que Danilo sentia agora. Ele definitivamente não queria voltar para aquela vida cinza. “Ele é a vida. Clow é a Vida pura! Eu não quero deixá-lo.”
Enquanto o abraço durou, um símbolo mágico de Clow surgiu brilhante no chão ao redor de ambos. A luz iluminando-os de forma intensa, juntamente com uma pressão que fazia as roupas dos dois balançarem violentamente.
Danilo apertou ainda mais as pálpebras bem como os braços ao redor do mago, que sussurrou algumas palavras no ouvido dele. Mas já aí Danilo não conseguia ouvir mais nada e quando abriu os olhos, ele estava de volta na sua cama.
Seu corpo formigava onde havia encostado no mago. Ele cobriu o rosto e começou a chorar, encolhido no ninho.
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As semanas que se seguiram para Danilo foram duras. Ainda que ele tivesse voltado ao seu lar, sua rotina monótona e sem brilho fez parte da sua vida por muitos dias. Até que a insensibilidade foi se transformando em cor com as memórias que tinha de Clow, e ele escolheu reler outra vez aquela história infantil. Novamente recresceu com a personagem Sakura.
Até que certa vez, ainda que sua rotina normal, bem normal, continuasse a mesma de sempre, Danilo percebeu que passou a vivenciar ao máximo o presente das coisas banais do seu dia: guardar os produtos da loja nas prateleiras, observar as pessoas passando pela calçada, chutar o computador do Seu Zeca, ver a mãe regar seu boldo, o pai abrir o jornal... Coisas banais, coisas que davam sentido a sua vida.
Aquela perspectiva o prendeu tal peixe no anzol e, saindo do trabalho para voltar para casa, seus pensamentos rodaram com as imagens de Clow, das suas conversas, das cartas, da magia. Nas histórias, Clow possuía reencarnações e guardiões...alguns desses aspectos apareciam no mundo da Sakura porque havia um vínculo entre aqueles mundos...
“E se tinha um vínculo...então...isso quer dizer que...”
Danilo parou repentinamente na calçada, fazendo a mulher apressada atrás dele bater de cara em suas costas e desviar, murmurando um “imbecil”. Ele nem se mexeu, os olhos fixos e vidrados na calçada manchada e suja. “Clow disse que existiam outras realidades e que o poder dele deveria ser dividido de uma forma ou outra para que o caos não se instaurasse. E se ele conseguiu achar mesmo um ponto aqui que era ligado ao mundo dele, então...então...!”
Enquanto o formigueiro humano continuava a corrida rotineira, cabeças baixas, pés apressados, ele ergueu o rosto para o céu azul, divisando um brilho longínquo por entre as nuvens.
Danilo ouviu a voz das estrelas, a risada de Clow em seus ouvidos como se ele esteve ali bem ao seu lado, no pé da sua orelha. Seus olhos marejaram luminosos e ele finalmente conseguiu abrir um sorriso do tamanho do mundo.
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