Depois que nos mudamos para a casa no alto da rua, senti que eu, Ailia Otto, estava sendo tratada como merecia pela primeira vez na vida.
Acabara de passar numa boa universidade e, como meus pais queriam comprar um imóvel maior há algum tempo, uniram as circunstâncias à ocasião.
Eu gostava do novo lar. Havia um quê de suntuoso no modo como a arquitetura antiga se moldava aos móveis; as dimensões facilmente comportando duas vezes minha velha casa. Facilitava muita coisa poder ir e vir a pé da faculdade.
No entanto, aquele espelho me incomodava.
Minha irmã e eu decidimos tirar no palitinho, só depois percebi a besteira que fiz. Sempre fui mais azarada que Anna, então era óbvio que perderia, e o quarto que consegui, por mais espaçoso que fosse, tinha aquele espelho de corpo bizarro colado à parede. Deus, que moldura medonha! Usei todo o estoque de ferramentas do papai na tentativa de arrancar aquela droga, mas nada surtira efeito. O espelho parecia fundido aos tijolos.
Depois da primeira noite, cheguei a cogitar pedir a Anna para que trocássemos de quarto, mas desisti da ideia logo pela manhã. Sabia que teria de me explicar sobre os motivos, e não queria dar a ninguém o gostinho de saber que eu tinha esse medo ilógico de olhar para espelhos no escuro. Logo eu, a metida a racional da família.
Pisquei várias vezes, encarando meu próprio reflexo. Visto de dia, não parecia tão assustador, mas ainda precisava convencer meu psicológico daquilo; de que o espelho seria o mesmo quando escurecesse. Estava decidida a enfrentar tal bobagem de frente, e seria naquela noite!
— Bom dia, Srta. Universi-otária? Que está fazendo que ainda não desceu? — Anna perguntou de repente, abrindo a porta do meu quarto.
— Hmm… não acha que ganhei peso?
— Ai, Ailia… tá gostosa como sempre.
Eu sorri com desdém, nada convencida. Quando Anna falava daquele jeito sobre mim, na verdade estava falando dela mesma, por isso continuei concentrada ao reflexo.
— Pensei que tivesse medo desse espelho. — Anna mudou de assunto, ainda segurando a porta entreaberta.
— Quem te disse isso? — Assustei-me, dando um passo para trás ao me virar para minha irmã.
— Somos gêmeas, sua burra. Por que acha que fiz a gente tirar esse quarto no palitinho? Também odeio esse negócio. Essa moldura… é pavorosa. Desça logo, sim? Mamãe acabou de tirar o pão do forno.
Sim, ela estava certa. Anna e eu sempre tivemos mais semelhanças do que a mera aparência física. Apesar da diferença de personalidade, sempre odiávamos os mesmos professores na escola, acabávamos gostando dos mesmos garotos; das mesmas comidas; curtíamos o mesmo estilo de roupa e tínhamos medo das mesmas coisas.
— Papai já saiu? — perguntei à mesa, minutos mais tarde, bebericando um gole de café.
— Cedinho. — Minha mãe respondeu, passando manteiga numa fatia de pão. Parecia ainda mais atarracada que de costume enrolada naquele xale.
— Ele tem mesmo de trabalhar até nos finais de semana? — Anna comentou mal-humorada.
— O pai de vocês disse que está para fazer um negócio grande hoje. É provável que só volte à noite.
Meu pai trabalhava para o maior banco da cidade e passava horas num escritório da Bolsa analisando painéis de cotações, tentando adivinhar o melhor momento de se vender as ações que administrava para nos deixar um pouquinho mais ricos.
A noite enfim havia chegado e, com ela, veio a queda na temperatura. Era fim de outono e o inverno mostrava que viria rigoroso. Na sala, despedi-me de mamãe e de Anna e disse que subiria para dormir.
Acendi as luzes do quarto assim que passei pela porta e, como de manhã, já fui logo encarando meu reflexo no espelho. Fechei os olhos. Respirei fundo. Apaguei as luzes de novo e fui levantando as pálpebras, lentamente.
Senti um arrepio na espinha antes mesmo de escancarar os olhos. Ah, meu Deus! O que eu tinha na cabeça? Ainda não conseguia enfrentar aquilo. Na escuridão, meu reflexo se transformara em outra coisa e, com as pálpebras ainda semicerradas, distingui apenas uma sombra. Engoli em seco. Não… não estava certo. Eu não era tão grande; não era tão larga. Quem aparecia no espelho?
Não quis saber de nada. Corri para a cama e me afundei nos cobertores, cobrindo a cabeça e tremendo, não pelo frio, mas pelos nervos que me traíam e pulsavam como criaturas em pânico. Ouça a voz da razão, Ailia! Mas as lágrimas me impediam de fazer algo além de encharcar o travesseiro. Meu Deus. Meu Deus, me ajude! Que era aquilo…?
Não soube dizer o momento que adormeci, mas sonhei que rompia a escuridão de um lago vítreo, caindo para o fundo e mergulhando cada vez mais para baixo. As águas enchiam meus pulmões a medida que gritava, mas eu só caía e caía. Apertei as pálpebras.
O lago sumiu quando escutei o chamado de uma voz distante. Demorei a perceber que alguém também me sacudia. A silhueta turva da minha mãe me balançava de um lado para o outro, obrigando-me a despertar.
— O que…? — balbuciei com sono. — Que foi mãe?
— É o seu pai! — Só então me dei conta de que ela se debulhava em prantos. — Ele… ele sofreu um acidente a caminho de casa.
O mundo pareceu se abrir diante de mim, mesmo que ainda estivesse deitada. O fato de Anna ter entrado de supetão em meu quarto, tão acabada quanto mamãe, só me fez assimilar a verdade hedionda.
— O que aconteceu…? — sussurrei, minha voz saindo de algum lugar do fundo do estômago. — Papai está bem?
Minha mãe caiu sobre os meus ombros, berrando; Anna aos meus pés no colchão, chorando copiosamente.
Não precisaram dizer mais nada.
Merci pour la lecture!
Um início muito bom, bem imersivo, preparando o suspense através do medo irracional da protagonista para os próximos capítulos. Leitura agradável, corre suave, bem escrita e pontuada. Vamos em frente.
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