Mais um dia se passa comigo sozinho no consultório, seria algo para se comemorar se isso significasse que todos os pacientes estão curados, mas não é por isso. Todos nós, psicólogos e psiquiatras, estamos proibidos de exercer a nossa profissão. Enquanto isso, na TV mais uma notícia sobre o número de pessoas com crise de ansiedade, depressão e várias outras doenças em seus estados mais graves aumentar aqui no Brasil. Principalmente aqui no estado do Rio.
Tudo isso acontecendo graças ao governo querer distribuir remédios e tratamentos sem eficácia para a população que precisa de acompanhamento psicológico. Como se quisessem que eles continuem doentes, afinal, é muito mais fácil controlar pessoas que precisam de você.
Não aguento mais olhar para isso, pois a TV faz parecer que é um caso bem menor do que realmente está acontecendo. Em qualquer lugar é possível presenciar pessoas conversando sozinhas, brigas que começaram por uma das pessoas ter a ilusão de que a outra queria machucá-la, e até assaltos e vandalismo de pessoas achando que isso iria aliviar o estresse ou qualquer outra coisa que esteja sentindo. Tem até alguns se banhando no chafariz da praça São Salvador.
Eu tento fazer o que posso para manter os que são próximos de mim saudáveis, mas isso não parece ser o suficiente. Quis apenas esperar as próximas eleições ou algo assim para ver se a situação melhora, mas sei que isso não vai acontecer. Estamos proibidos de trabalhar porque não queríamos utilizar as medicações que o governo nos deu, comprovamos que eles tinham substâncias viciantes, além de serem ineficazes. Após negarmos, eles nos proibiram de trabalhar e começaram a distribuição da medicação. Assim, mesmo se tentarmos tirá-los do poder, a população que já está viciada não vai querer. Eles podem até mesmo tentar ficar no poder para sempre.
Volto para casa e encontro minha irmã Vanessa encolhida no quarto, chorando e tremendo. Corro para ajudá-la, sento do seu lado e tiro a almofada que ela estava segurando e a abraço.
— O que aconteceu? Alguém brigou com você?
Pergunto preocupado, seus ataques de pânico estão ficando mais frequentes. Ela tenta me responder, mas está hiperventilando e por isso não consegue falar. Passo as mãos em suas costas para tentar acalmá-la. Finalmente sua respiração fica normal e ela me responde:
— Tive que ir sozinha lá no banco, estava muito nervosa, quando cheguei em casa nossa tia começou a me perguntar várias coisas e eu não sabia responder. Estava tão nervosa que não fiz pergunta nenhuma a moça, quando disse isso ela começou a falar que eu sou muito burra, que não sei fazer nada. Era a minha primeira vez fazendo isso, como iria saber?
— Calma, você vai acabar ficando mal de novo. Vou pegar um pouco de água para você.
Vou na cozinha e coloco a água para ela, ponho um pouco de calmante também. Após beber ela dorme.
Não posso deixar as coisas continuarem assim, não posso fechar os meus olhos e fingir que tudo está bem aqui em Campos. A cidade está um caos e eu sou só um, o que posso fazer sozinho?
Tenho uma ideia, mas preciso de mais pessoas. Ligo, imediatamente, para o meu amigo e colega de profissão:
— Oi Matheus, aqui é o Marcus. Eu estava precisando falar com você, pode vir aqui em casa?
— Claro! Estamos com muito tempo livre mesmo, né?
Depois de 20 minutos ele aparece.
— Sua irmã está dormindo?
— Sim, ela precisa descansar. Queria poder jogar conversa fora, mas quero te contar logo a ideia que tive.
— Que ideia é essa? Se você for falar que está muito entediado e por isso decidiu que quer assaltar um banco, já digo que estou fora.
— Não é nada disso, é uma ideia sobre o que fazer nessa situação atual do país.
— Ok, você realmente quer ser preso e me levar junto.
— Não é bem assim. Olha como está a nossa cidade, veja as notícias. Nós temos um jeito de ajudar essas pessoas, porque não podemos tentar? Pense nos seus antigos pacientes e em como eles devem estar agora, essas pessoas precisam de nós.
Ele fica com um rosto sério, mas parece estar pensando no assunto. Sei que ele não quer correr riscos, não por ele, mas pela família dele e eu entendo isso. Eu, como psiquiatra, fui estritamente proibido de medicar alguém e ele como psicólogo não pode consultar também. Se formos pegos fazendo algo do tipo, podemos ser presos, ou até mortos se quem nos pegar estiver de mau humor.
— Tudo que eu quero fazer é reunir mais alguns profissionais para tentar ajudar essas pessoas. Quem sabe se o movimento crescer nós possamos conseguir nos livrar dessa silenciosa ditadura que estamos vivendo?
— Eu quero ajudar, mas tenho medo disso envolver a minha família. Minha mulher e meus filhos são tudo que eu tenho. Assim como a sua irmã é tudo que você tem. Não posso arriscar a segurança deles.
— Eu sei. E é por isso que eu quero tentar me colocar na reta se algo acontecer. Eu vou colocar a minha irmã para morar com o pai dela por um tempo enquanto fazemos isso, se te pegarem você pode me culpar, falar que eu te forcei. Eu aceitarei toda a culpa de bom grado, apenas me ajude!
— Você sempre quer aparecer, né?
Ele parece mais aliviado, então tento fazer uma piada.
— Eu sempre quis dar uma de príncipe encantado mesmo.
Conto o que pensei em fazer enquanto ele me olha como se eu fosse louco.
— Marcus, eu sempre soube que você era estranho, mas não sabia que era tanto.
— Eu sei. Agora chega de jogar conversa fora e me ajuda a ligar para todos os colegas de profissão que você conhece. Temos que juntar o máximo de pessoas possíveis.
E foi assim que passamos o resto da semana, ligamos para todos os consultórios que já não funcionam mais e marcamos uma reunião sem mencionar para que, exatamente, era a reunião. Dois dias antes da reunião eu coloquei a minha irmã no ônibus de viagem para ir para a casa do pai dela. Acabo prometendo a ela que estaria aqui sorrindo para ela quando ela voltasse, mesmo que na verdade eu não tenha certeza do que pode acontecer comigo. Só não queria que ela ficasse mal enquanto estivesse lá.
Finalmente chega o dia da reunião e estou muito nervoso, tão nervoso que começo a me questionar se eles vão ficar do meu lado, se vão tentar me entregar, se vão achar que sou louco. No meio do meu devaneio acabo não percebendo o Matheus se aproximando de mim.
— Você está com uma cara péssima, não conseguiu dormir?
— Não consegui, fiquei muito preocupado com essa reunião.
— Você já conseguiu me convencer de fazer isso, acho que consegue convencê-los também.
— Torço por isso.
À medida que os convidados vão chegando, eu vou ficando mais nervoso. Matheus colocou a mão no meu ombro e sussurrou um: "Vai ficar tudo bem." para mim. Todos se acomodam na minha sala e assim que começo a falar sobre o motivo da reunião todos começam a fazer cara de horror e tem aqueles que mal começaram a me ouvir e já estavam levantando para saírem como se estivesse com medo de sequer escutar a proposta. Quando terminei de falar a proposta, uma psiquiatra que parecia ser mais velha que eu se levantou e se aproximou de mim. Eu não sabia seu nome, então devia ser uma das conhecidas de Matheus.
— Olha garoto, aprecio que queira ajudar a população, mas isso não é uma brincadeira de criança. As nossas vidas estarão em jogo assim que concordarmos com você, não só as nossas como a das nossas famílias.
— Sei que não é uma brincadeira e sei que nossas vidas estarão em jogo, mas alguém tem que fazer alguma coisa. Não podemos simplesmente fechar os olhos e fingir que nada está acontecendo.
Ela me olha de cima a baixo e simplesmente diz com uma voz calma
— E você acha que nunca tentamos? Eu tenho uma filha que sofre de esquizofrenia e por isso não poderia ficar sem as medicações e tratamentos, quando tudo fechou eu tentei arranjar pelo menos os medicamentos para ela. Sabe o que aconteceu? Os policiais descobriram e me espancaram, fiquei 2 meses no hospital para me recuperar, tive sorte de sair com vida. E agora tenho que escutar um cara que nunca sofreu com algo do tipo querendo me colocar nessa de novo.
Quase fico sem palavras para ela, quase. Não é porque eu nunca sofri com isso que eu não posso tentar ajudar. Se o que ela, e os outros na sala têm é medo de serem pegos, então farei o mesmo acordo que fiz com Matheus.
— Sei que cada um aqui deve ter um motivo para não querer tentar, que tem medo de serem pegos, então eu quero fazer um acordo com vocês. Se qualquer um aqui for pego, coloca a culpa em mim. Podem falar que eu ameacei vocês e os obriguei a me ajudarem, não me importo se o ódio deles vier só para mim, posso levar toda a culpa sozinho.
Todos os presentes me olham chocados, parecem muito surpresos por eu querer me entregar a causa a esse ponto. Eu acho apenas normal, esse não é o país que eu quero que minha irmãzinha viva. Se eu puder fazer deste um lugar melhor para ela, então é isso que farei.
Após pensarem de novo sobre o assunto, eles aceitaram. Não tinha porquê recusar, poderiam fazer o que queriam e se fossem pegos poderiam colocar a culpa em outra pessoa. Às vezes esqueço como nós, seres humanos, precisamos ter certeza que não seremos punidos para mostrarmos quem somos de verdade.
A partir daí as coisas se desenrolaram rápido. Começamos um esquema de "contrabando" de medicamentos, entramos em contato com nossos antigos pacientes para podermos dar tratamento adequado a eles e, é lógico, cuidarmos do vício que eles desenvolveram graças ao remédio do governo.
Meses depois, os nossos pacientes já apresentavam uma grande melhora e começaram a nos trazer outras pessoas que precisavam de ajuda especializada. Tivemos que abrir um consultório clandestino para cuidar de todos, a palavra se espalhou e quando percebi, várias pessoas tinham se juntado à causa. E isso serviu apenas para eu perceber que tudo seria em vão se continuássemos a fazer tudo escondido. Precisávamos tirar as pessoas do poder e colocar outras que fossem a favor da causa, só assim conseguiremos tratamento para todos e a total expulsão das pessoas que colocaram esse plano em prática. Teríamos que começar uma rebelião.
Minha irmã começou a insistir em voltar, nem que fosse por um tempo. Ela dizia que já fazia tanto tempo que não nos víamos que ela poderia esquecer de mim. Acabei aceitando tê-la por aqui no final de semana. É bom tê-la aqui, faz eu me lembrar que é para protegê-la e proteger as pessoas que amo que estou fazendo isso.
Estamos sentados na sala lendo livros, um ao lado do outro, quando ela me diz:
— Marcus, você acha que alguém pode nos ajudar?
— Sobre o que você está falando, Vanessa?
— Pessoas tipo super heróis que fariam as pessoas pararem de sofrer pelas ruas.
— Talvez pessoas assim existam!
Ela fecha o livro e começa a me encarar.
— Até quando vai esconder isso de mim?
— Isso o quê?
— Quando você saiu com os seus amigos eu fui no seu quarto para pegar um casaco seu para usar, seus casacos são melhores que os meus, e vi várias caixas de remédios e diagnósticos lá. Sem contar que eu sei que você adora parecer um herói, como os que aparecem em livros.
Tenho que encontrar um esconderijo melhor para aquilo.
— E você vai falar para eu parar?
— Não! Apesar de eu achar isso muito perigoso, sei que o nosso país precisa de alguém que faça isso. Mas antes de eu dar o meu completo aval eu preciso que você me prometa uma coisa.
— E o que seria, ó doce e gentil irmã?
Faço essa graça enquanto ela se levanta para ficar na minha frente e apontar o dedo para mim.
— Que você vai sair inteiro dessa, você está proibido de ser pego e de morrer.
Ela tenta fazer uma cara séria enquanto olha para mim. Eu acabo concordando, apesar de saber que sair impune disso é quase impossível, mas esse é o único jeito dela conseguir dormir direito hoje sem se preocupar comigo.
O final de semana se vai, levando consigo a minha irmã. Com sua partida eu começo a fazer planos mais radicais para a resistência. Apesar de não ser algo que eu normalmente aprovaria, teremos que fazer um ataque à prefeitura.
Vamos tomar o controle da cidade.
No mês seguinte as armas e máscaras que compramos já estavam prontas para usarmos, compramos também algumas bombas de gás. Na hora combinada estávamos dentro de uma van na frente da prefeitura, tudo aconteceu muito rápido. Nós descemos da van e corremos em direção a portaria rendendo os seguranças no processo, começamos a jogar as bombas de fumaça dentro da prefeitura. Quase tudo lá dentro estava coberto por uma cortina de fumaça, graças a isso uma situação inesperada aconteceu, um dos funcionários conseguiu usar a neblina a seu favor e fugiu, enquanto corria, ligava para a polícia federal. Corri para avisar aos outros que a polícia federal estaria a caminho e que teríamos que fugir, eles já estavam quase na porta do escritório do prefeito, mas tiveram que me escutar, pois não teríamos tempo para fugir depois.
Tarde demais, já dava para escutar os carros chegando. O ataque não foi bem sucedido e graças a isso e tivemos que fugir por nossas vidas.
Estávamos usando máscaras que cobriam todo o nosso rosto, isso tornaria difícil para a polícia federal nos identificar. A van estava em alta velocidade e tivemos que entrar em várias ruas diferentes para despistá-los. Somente quando chegamos no nosso consultório clandestino que paramos, descemos da van e entramos no consultório e começamos a olhar em volta para ver se todos estávamos bem e foi só aí que percebi que estava faltando alguém.
Matheus não estava no consultório, no meio da correria ele não conseguiu chegar na van, foi pego e nem percebemos. Com isso eu já sabia o que poderia acontecer, eu prometi que ele poderia jogar a culpa para mim, parece que agora estava na hora de cumprir a promessa. Eu pareço ser o único a notar, então mandei todos embora. Para a minha surpresa a Marcela, a mulher que me confrontou na nossa primeira reunião tentou me consolar.
— Eu sei que deu errado, mas não podemos desistir agora. Olha até onde conseguimos chegar, tenho certeza que conseguiremos na próxima.
Ela pensa que estou chateado com a falha do plano, aproveito que ela pensa assim e uso essa desculpa.
— Tem razão, vamos conseguir da próxima. Mas eu estou um pouco mal agora, então quero ficar sozinho.
— Tudo bem garoto, nós estamos indo. Não se preocupe, teremos cuidado no caminho.
— Marcela, posso te perguntar algo antes de você ir?
— Fala garoto.
— Se algo acontecesse comigo, vocês continuariam com essa resistência?
Ela dá uma risada baixa.
— Já me envolvi demais e provei o gosto de poder ajudar os outros. É viciante, não acho que sequer conseguiria parar.
Então falo a única coisa que está martelando na minha cabeça.
— Se algo acontecer comigo, você poderia cuidar da minha irmã no meu lugar?
— Poderia sim, cuidaria como se fosse a minha filha. Adeus Marcus!
Ela dá um sorriso triste que não chega aos olhos, parece que ela percebeu o que vai acontecer.
— Adeus Marcela, foi bom ter sido seu amigo!
A partir do momento que fico sozinho se passa dez minutos quando ouço barulho de vários carros parando na frente do consultório. Se ele me entregou, significa que deve ter conseguido sair vivo pelo menos. Fico feliz de saber que pelo menos a promessa que fiz com ele eu poderei cumprir, Vanessa ficará triste quando souber que quebrei a nossa promessa.
Consigo ouvir vários passos vindos do lado de fora, homens armados da cabeça aos pés derrubam a porta enquanto eu me coloco de joelhos esperando eles me renderem.
Sei que eles farão muitas coisas ruins comigo até finalmente chegar a hora da minha morte, tudo isso para mostrar a força deles e que não se pode ir contra o sistema. Mas passarei por tudo isso com um sorriso no rosto por saber que mesmo que eu morra, o movimento não vai parar. Isso se tornou muito maior do que eu e fico feliz de ter feito parte disso.
Pelo menos irei morrer por uma causa, morrerei por um país onde possamos viver livres dos assombros de nossas mentes e do mundo real.
Merci pour la lecture!
Na distopia construída em A resistência, o povo é privado da própria saúde mental. Somos infectados pelo desespero conforme a narrativa é tecida, e imaginamos o quão caótica seria essa realidade, mas, sobretudo, temos a vontade de fazer a diferença assim como Marcus; e sou suspeita por comentar isso, uma vez que estudo psicologia. Merecidamente, conquistou o terceiro lugar do #DistopiaBR.
Com uma premissa interessante e diálogos envolventes, A Resistência nos apresenta um mundo caótico e perigoso, o que torna o herói da história, uma pessoa comum, ainda mais admirável. A história possui um final realista e ao mesmo tempo esperançoso, que nos impacta pela profundidade.
Privados de sua própria saúde mental e alienados com remédios viciantes que sequer são eficientes, a população do nosso Brasil em "A Resistência" se encontra vivendo em uma distopia bem original e criativa, utilizando de problemas reais em seu tema. Partindo daí, a trama bem construída nos apresenta profissionais dispostos a lutarem contra essa alienação, com excelentes diálogos e motivações!
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