Há um fato curioso sobre a dor: depois de tantos anos tendo apenas ela como companheira, é fácil se apegar. E a eternidade parece um tempo bom o suficiente para que a chamasse de companheira. Assim, com o cair da noite, vinha a ansiedade de revê-la pela manhã, pois era a única capaz de afastar aquele silêncio. A única maneira de não esquecer a si mesmo naquele lugar.
Ao amanhecer, porém, ela não estava presente. O dia reinava como única visão, mas o céu estava vazio. Não encontrou o par de asas abertas planando em direção ao próprio corpo. E, se estava acostumado a sentir apenas a ela e aquela espera, tamanha aflição pareceu algo completamente novo. Tornou-se um desconforto no fígado, um peso sobre o peito que ainda respirava, um gosto amargo na boca — muito diferente do metal com o qual estava apegado. Ofegando, olhou ao redor como se houvesse algo além do vazio, mas não a encontrou. Quando acreditou que poderia colapsar, avistou-a sobrevoando o espaço entre os dois.
Logo lá estava ela, pousada sobre o próprio abdômen. Seus olhos brilhavam em amarelo, mas não parecia em nada com o fogo do Sol. Lembrava-o mais de como era sentir fome, quando seu corpo conhecia algo além daquele singelo toque. Já não sabia mais o que era comer.
— Você está atrasada… — murmurou por dentre lábios partidos, antes que ela iniciasse sua refeição. Os olhos amarelos o encararam confusos. — Quando o Sol nasceu não sobrevoava meu corpo. Espero-te por uma noite inteira e ainda se atrasa?
A dor, porém, não é dada a conversas. Costuma glorificar apenas os sons que fogem por outros lábios. Principalmente aquela, que sempre mantinha o bico ocupado com alimento. Raramente haviam palavras entre os dois, e aquela manhã parecia ser singular. Talvez porque a dor não gostava de ser questionada.
— Espera por sua tortura todas as noites?
— Não. Por você. Por que se atrasaste?
— Não acho que preciso te responder.
— Depois de tantos anos juntos, não pode me dar uma resposta decente?
Os olhos amarelos piscaram em confusão. Ela inclinou a cabeça para o lado, expondo as brilhantes penas negras. Havia beleza em sua forma — ou era a única que poderia apreciar.
— Apenas não se atrase amanhã!
— Não deve exigir nada de mim. Acha que gosto de ter que me servir com sua imundice?
— Como?
— Preciso atravessar todo um vazio com minhas asas, todos os dias! Acha que sinto algum prazer? Duas viagens para me degustar com os restos de um fracasso! Minha única paz é a noite longe de ti. E ainda acreditas que pode exigir minha presença pontualmente?
— Somos ligados um ao outro… é o que temos, o que devemos honrar! Não escolhemos esse compromisso, mas se é o que nos resta porque não pode ser leal a ele? A mim?
— Porque a eternidade também me cansou! Aprendi a falar, a entender, a perceber o quão injusto é desprender minha vida apenas para que você seja punido. Que culpa tenho por ser um imbecil?
— Você não quis dizer isso…
— Pois não apenas quis como repito: é um imbecil! Patético! Desistiu de uma vida de glória para ajudar macacos sem rabo a fritar batatas! Nem lar mais tenho por tua causa, mas preciso aguentar suas lamúrias infinitamente?
— Eu pensei que gostasse de minha carne…
— Pois é tão imbecil que tudo o que pensas é errado! Deveria ingerir teu cérebro para que não estragasse mais nada!
— Mas-
— Agora pare com suas insanidades! Já é tortura o suficiente sentir teu gosto asqueroso em minha boca!
As lágrimas que emergiram de nada se relacionavam ao bico que arrancava sua pele. Preso a uma rocha infinita, contorceu os braços, querendo encolher o corpo diante um novo tipo de dor. Estava acostumado a ter a carne sendo engolida, o fígado mastigado, mas nunca pensou que até mesmo a dor poderia rejeitá-lo. E pela primeira vez desde que aquele ciclo começou, se sentiu absolutamente sozinho. Nem mesmo uma águia faminta conseguia satisfazer.
— E ainda chora! — A águia voltou a falar, tendo sangue escorrendo pelo bico. — Poderia ser mais patético?
Virando o rosto para o outro lado, sabia a resposta: não poderia. Nada deveria ser mais absurdo que se apaixonar pela dor e por ela ser rejeitado. Nada poderia doer mais.
Capa por:@divulgasonhos_
(ig:https://www.instagram.com/divulgasonhos__/)
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