O barqueiro que a levava sobre o rio Estige era o ser mais calado que Catarina já vira. Suas vestes negras e esfarrapadas cobriam-lhe apenas o sexo, enquanto o resto do seu corpo magro e pálido ficava à mostra. Caronte, o barqueiro, remava devagar, seus olhos completamente negros fitando o nada. Quando finalmente atravessaram o rio, Catarina o pagou com cinco óbolos.
Caminhou mais adentro do submundo enquanto mantinha a mão repousada sobre a espada de aço que levava na cintura. Seu corpo suava sob a couraça de prata e a túnica de lã vermelha. Debaixo do elmo de aço, Catarina sentia seus cabelos castanhos ficarem molhados devido à transpiração. Estava ansiosa, pois sabia que a qualquer momento se encontraria com Cérbero, o cão de guarda do submundo, e precisaria enfrentá-lo para adentrar no reino de Hades.
Enquanto caminhava sobre as rochas negras, sentiu um tremor no solo e logo em seguida o avistou: um gigantesco cão de três cabeças. Seus olhos eram completamente brancos, e seu bafo quente era sentido mesmo à distância. Sua cauda era uma serpente de cor esverdeada, e seu pelo negro exalava cheiro de enxofre.
O coração de Catarina disparou. A guerreira sacou a espada e se colocou em posição de batalha. Cérbero não pareceu se intimidar, olhou para aquela pequena criatura que o ameaçava e se aproximou lentamente. Catarina sentia o coração bater ainda mais forte à medida que o cão se aproximava. Ela já estava pronta para atacar quando Cérbero abaixou as três cabeças, empinou a parte traseira de seu corpo e começou a abanar sua cauda de serpente. Aquela reação inesperada deixou Catarina confusa, e um pequeno sorriso nasceu em seu rosto.
A guerreira ainda não sabia se atacava o cão de guarda do submundo ou se fazia carinho em uma de suas cabeças. Cérbero colocou a língua da cabeça do meio para fora, enquanto as outras duas respiravam ofegantes. Catarina embainhou novamente sua espada e pegou uma pedra do tamanho de seu punho que vira jogada no chão e, em seguida, arremessou para Cérbero, que correu alegremente para buscar a rocha.
Mesmo sem entender direito o que estava acontecendo, Catarina correu na direção oposta, indo direto para a caverna que levava ao submundo. Quando já estava na metade do caminho, sentiu o chão tremer novamente e, ao olhar para trás, viu Cérbero correndo em sua direção com a pedra em sua boca. A guerreira correu ainda mais depressa e conseguiu adentrar na caverna antes que o cão a alcançasse. Do lado de fora, a guerreira ouvia um chorinho de Cérbero, que provavelmente estava ansioso para brincar mais.
Caminhou por mais de uma hora dentro da caverna até chegar a um entroncamento. Entre as duas passagens, havia uma gigantesca pedra de tom avermelhado. Catarina sentou-se a fim de repousar.
Retirou o elmo e sentiu um suor escorrer de seu rosto até o pescoço. Pousou a mão sobre a espada que repousava em sua cintura e respirou fundo. Enquanto descansava, Catarina tentava decidir qual caminho pegar. Sabia que um levaria para o Campo de Elísios, um paraíso no submundo onde os humanos virtuosos repousavam após a morte. Já o outro a levaria para o Campo de Asfódelos, o lugar onde vagavam as almas de humanos irrelevantes, o lugar mais cheio do submundo. Ela sabia que para chegar ao Palácio de Hades tinha que pegar o caminho do Campo de Asfódelos, mas como saber qual dos dois caminhos era o certo?
Ajoelhou-se no chão, bem na divisa das duas estradas, e colocou as mãos no solo. Ela precisava usar seus poderes para descobrir qual caminho seguir. Como filha de Hades, Catarina herdara algumas de suas habilidades, e isso poderia ajudá-la a saber por onde seguir.
Fechou os olhos, respirou fundo e concentrou-se, tentando deixar a mente o mais tranquila possível para que seu corpo pudesse interpretar corretamente as vibrações daquele lugar. Foi aí que percebeu. Da mão direita, ela sentia uma alegria muito grande, um sentimento tão bom que era quase impossível ignorar. Seu corpo quase implorava para que ela seguisse naquela direção. Por outro lado, na mão esquerda, ela nada sentia. Era como se não houvesse nada lá.
Catarina abriu os olhos, colocou-se de pé e recolocou o elmo. Por mais que sua parte irracional e emotiva a inclinasse a seguir pelo caminho da direita, ela seguiu pelo da esquerda. A guerreira sabia que toda aquela alegria que emanava do caminho da direita só podia ser oriunda do Campo de Elísios. Já a falta completa de sentimentos que vinha da esquerda era característica do Campo de Asfódelos, onde todos os insignificantes vagavam pela eternidade.
Poucos minutos de caminhada depois, ela se viu em meio a uma multidão de almas. Algumas tinham rostos inexpressivos e fitavam o nada, outras nem rostos tinham. Suas feições foram apagadas assim como suas existências em vida foram completamente esquecidas.
A cada alma que tocava, era como se parte de sua energia fosse drenada. Ela nem sabia há quanto tempo estava entre os esquecidos. O tempo parecia perder a importância, talvez fossem minutos, horas, meses ou até anos. Não havia como saber.
Catarina sentiu um desespero tomar conta dela quando começou a esquecer o motivo de estar ali. Ela tentou se forçar a lembrar, mas sua mente parecia ficar cada vez mais vazia. Gradualmente, ela começou a esquecer até mesmo seu próprio nome e os traços do próprio rosto.
Desesperada, ela tirou o elmo da cabeça e olhou seu reflexo nele. A imagem não estava nítida, mas era o suficiente para ancorá-la em algo familiar. Catarina respirou fundo e encarou o reflexo até se lembrar de seu nome.
"Eu sou Catarina", repetia para si mesma. "Filha de Hades, o Deus do Submundo, e Polixena, a princesa troiana por quem o herói Aquiles se apaixonou, e que foi assassinada por Neoptólemo em cima do túmulo do herói poucos dias após dar à luz. Vim ao Submundo para matar meu pai que a estuprou e depois a abandonou grávida, não se dignando nem a protegê-la durante o saque de Tróia". A guerreira repetiu essas palavras para manter suas memórias vivas enquanto atravessava o mar de almas. Ela repetiu isso centenas de vezes até finalmente chegar ao outro lado.
Olhou para trás e viu mais uma vez aquelas milhões de almas esquecidas, vagando pela eternidade. Catarina recolocou o elmo e continuou seu caminho.
Caminhou por mais algumas horas até avistar o Palácio de Hades. Era uma construção enorme com paredes de rochas negras, localizada em uma ilha flutuante que pairava sobre o Tártaro, onde os humanos considerados maus eram enviados para serem torturados eternamente. Catarina sentia-se próxima de realizar sua vingança, próxima de enfrentar seu pai e fazê-lo pagar pelo que acontecera com sua mãe. Ela só precisava descobrir como chegar ao palácio.
Aproximou-se da beirada e avistou o Tártaro lá embaixo. Podia ver rios de lava e almas sendo torturadas por criaturas que trabalhavam para seu pai. Uma mulher nua estava sendo açoitada por um monstro de duas cabeças, e ela gritava de dor. Lá embaixo, Catarina podia ver uma escada em espiral que ia do Tártaro até a ilha flutuante onde o Palácio de Hades estava. Embora fosse um caminho, Catarina não queria descer até lá. Ela sabia que seria impossível sair do Tártaro com vida.
Olhou ao redor e mais uma vez soube que precisaria usar os poderes herdados do pai para poder atravessar. Olhou novamente para baixo e fechou os olhos. Concentrou-se enquanto erguia as mãos para frente. Lá no Tártaro, o rio de lava começava a ficar inquieto. O magma subia devagar, criando pequenas torres de lava que se solidificavam logo em seguida, formando um caminho para que Catarina pudesse atravessar. Quando a passagem ficou pronta, a guerreira correu por cima do caminho que acabara de se formar, a fim de atravessar o mais depressa possível. Correu o máximo que pôde e saltou até a ilha flutuante. Estava ofegante, mas conseguira, bastava agora entrar no Palácio de Hades e desafiá-lo.
Entrou no salão principal e não viu ninguém. Nem mesmo um monstro fazia a guarda daquele lugar. Catarina estava feliz por não ter de enfrentar ninguém além de seu pai.
— Poderia ter só me chamado, eu iria até você. Não precisava ter feito este longo trajeto. — Disse uma voz. Catarina olhou para trás e viu um homem de túnica negra, com um colar de pedras preciosas no pescoço e um anel de ouro em cada uma das mãos. Tinha a pele completamente pálida e olhos negros profundos. Seus cabelos eram tão pretos quanto seus olhos.
Catarina sacou sua espada e se preparou para batalhar.
— Acha mesmo que uma mortal pode matar um deus?
— É você? Hades?
— Sim, mas é claro.
Em seguida, Catarina correu gritando em direção a Hades e tentou golpeá-lo com sua espada. O deus se esquivou sem dificuldades e a encarou sorrindo.
— Estou orgulhoso que tenha chegado até aqui. Dentre todos os filhos que já tive com as mortais, você é a única a pisar neste salão.
— Você a estuprou, você não a ajudou quando ela precisou, eu vou matar você. — Catarina gritou e desferiu outro golpe que foi desviado com facilidade.
— Desculpe a minha falta de memória, mas quem era a sua mãe?
— Polixena, princesa de Troia. Você a estuprou. — Cataria gritou.
— Me lembro dela. Ela me chamou e pediu para que eu proporcionasse um último encontro entre ela e o seu amado e falecido Aquiles. Obviamente eu tinha que cobrar um preço. O que mais eu poderia pedir à mais bela troiana, senão que se entregasse a mim? Ela ficou feliz em consentir. Estou muito feliz de ver que esse acordo gerou um fruto tão belo, porém mais feroz.
— Mentiroso! — Gritou Catarina desferindo outro golpe que foi facilmente desviado. — Você poderia ter impedido o assassinato dela. — Catarina agora chorava.
— Sou um deus justo e não me meto nas brigas dos mortais. Quando a alma de sua mãe veio até mim, a julguei de acordo com os seus atos.
— Onde ela está?
— A quinta filha do rei de Troia, uma mulher que não fez nada além de despertar o desejo de Aquiles. Me parece uma pessoa completamente esquecível e digna dos Campos de Asfódelos.
— O quê? Como pôde mandá-la para lá?
— Polixena não foi importante o suficiente para merecer o Elísio, nem ruim o suficiente para ir ao Tártaro, Asfódeos é o local ideal.
— Maldito, eu vou te matar.
— Não vai, querida, não tem força para isso. No entanto, existe algo que você pode fazer para ajudar à sua mãe, se quiser, é claro.
— Do que está falando? — Catarina estava confusa.
— Eu tenho planos para governar além desse mundo fedido e cheio de mortos, sinto que uma filha com sua determinação e garra poderia ser uma grande aliada aos meus propósitos, se for bem treinada.
— Jamais vou ajudar você. Eu te odeio. — Gritou Catarina.
— Não preciso do seu amor, preciso de sua espada e que aprenda a usar as habilidades que herdou de mim. Me ajude no meu plano e o Submundo será seu, daí terá o poder de tirar sua mãe de Asfódelos.
Catarina pensou por alguns instantes. Que opção ela tinha? Com certeza não poderia matar Hades, no fundo, ela sempre soube disso. Se treinasse com ele e se tornasse mais forte, no futuro poderia se voltar contra ele. Na pior das hipóteses, seria a princesa do Submundo e poderia ajudar a mãe a sair de Asfódelos. Era uma decisão até fácil de se tomar. Só precisava aturar Hades por mais alguns anos até ser forte o suficiente.
— Tudo bem, eu te ajudo se me prometer que eu vou poder tirar a minha mãe daquele lugar.
— Minha querida filha, nós temos um acordo. — Respondeu Hades sorrindo.
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