Eu sou uma médica. Mas, talvez, seja difícil para os mortais aceitarem que éramos iguais – ou, ao menos, tão iguais quanto um marido e sua esposa podem ser neste planeta. Tudo o que você sabia, eu também dominava, ou um dia dominaria; mas a glória ainda era apenas sua, e eu estava em paz com esse conhecimento.
Exatamente porque éramos os dois dedicadas à cura, é que tudo o que ouço não me é estranho. “Aquela pessoa está melhor agora”, ou mesmo “A vida continua”. Viúvas de guerra escutam estes mesmos absurdos o tempo inteiro, e também precisam engolir a bile como eu faço. O mundo dos homens é belo – afinal, foi nele que você nasceu, foi nele que nos conhecemos, foi nele onde fui feliz – mas também é cruel e caótico. Não existe regra nem árbitro, razão ou motivo, para o que acontece nele. Pessoas morrem todos os dias, e elas escutam as mesmas coisas todos os dias. E elas seguem em frente, porque quando se está vivo, é tudo o que resta.
A vida continua, eles dizem. Esta é uma frase favorita dos humanos – e eu me lembro o quanto você a odiava. Eu costumava achar engraçado sua aversão a ela; até que um dia, esta obsessão se tornou a sua própria ruína, levando toda nossa família para o mesmo vórtice no qual você foi consumido, e eu parei de achar uma característica adorável. Mas você nunca gostou de como os homens facilmente aceitam que a vida continua. Quanto a mim, eu não ligava para isso... Essas palavras não passavam de um som de estática, uma poluição como a fumaça de uma fogueira ou o sangue de um animal abatido descendo pelo rio.
Eu costumava pensar, na minha inocência divina, “é claro que a vida continua”. Parecia-me um tanto óbvio como essas frases se juntavam à outras como, “amanhã é um novo dia” (mas é claro que sim, é desse jeito que funciona o tempo), “não adianta chorar sobre o leite derramado” (mas por que alguém iria chorar justamente com isso?) ou mesmo aquele fatal, porém clássico, “acidentes acontecem” dito em tom conspiratório (não diga! É claro que acontecem).
Você nunca gostou de como estas coisas celebravam a impotência e a passividade dos homens, satisfeitos em viverem suas vidas um dia de cada vez, enquanto os deuses brincavam com seus destinos como crianças levadas amarrando gatinhos em galhos de árvores. Eu não entendia que você queria libertar a humanidade dos deuses – uma ideia absurda, que certamente o teria levado de mim muito mais cedo se fosse descoberta –, porque simplesmente eu via uma folha cair e só pensava que o inverno estava chegando. Eu não via a beleza nela... E talvez, por isso eu tenha me apaixonado por você, porque ao seu lado as estrelas se tornavam diamantes, e não somente pontos luminosos num céu que distribuía, igualmente, fartura e míngua.
Eu queria que você estivesse do meu lado agora, Asclépio.
Quem sabe eu poderia me consolar que você, também, é um pequeno diamante lá em cima agora. Que, de agora em diante, todos podem vê-lo pela coisa preciosa que eu o considerava.
Infelizmente, estrelas são apenas estrelas, e minha cama continua vazia e gelada todas as noites.
Mas, mesmo que eu não entenda a beleza das pequenas coisas como você conseguia, sem esforço nenhum (era por isso que sua cura era tão pura e tão boa, você amava a humanidade à despeito de sua fraqueza, como um pai paciente que espera grandes coisas de seu rebento promissor), eu consigo entender agora, ainda que um pouquinho, a celebração da impotência da humanidade.
Foi apenas depois do luto, esta coisa que rasgou minha realidade em duas metades distintas, esta coisa sem forma e sem calor que brilha a escuridão contida dentro dela como um prisma, trazendo novos tons de tristeza todos os dias ao meu coração, que eu passei a entender a força que existe por trás de reconhecer suas fraquezas. Existe um poder enorme e inominável em poder admitir sua ineficácia, e vê-la sendo repetida por aqueles ao seu redor, todos unidos no inevitável ato de viver um dia de cada vez, tentando escalar este buraco sem fundo que é o universo.
Eu sei que eu “estou falando grego” (estou aprendendo piadas na sua ausência, viu só? Nossa Aceso disse que existe uma grande propriedade curativa no humor, e eu estou começando a entendê-la) para você, e que sua pessoa jamais entenderia – jamais aceitaria, melhor dizendo – esta realidade. Você era um sonhador e esperava grandes coisas da humanidade e de você mesmo; você queria o melhor para nós, dentro dos seus termos. Mas a verdade é que nem todos os seres humanos têm a sua fortaleza.
Alguns são apenas como eu, aceitando que a vida continua e que a única coisa que podemos fazer é seguirmos com ela, porque enquanto estivermos vivos, é tudo o que nos resta.
Eu converso com a sua memória, agora que você não está mais aqui.
Tento me lembrar da sua voz e da sua presença, do seu cheiro e do seu toque, mas sinto que começo a me esquecer das pequenas coisas – o que você me disse quando nos conhecemos, na Ilha de Trinacia? Qual era a expressão que você fazia quando comia as suas comidas favoritas? O luto é uma coisa estranha, um espelho estilhaçado no chão, e eu percebo que minha alma já não consegue mais colar todos os pedaços de novo. Alguns se perdem no tempo, na crueldade do esquecimento, e eu me vejo ansiando por olhar para o céu quando isso acontece.
Seu pai, Lorde Apolo, veio pessoalmente à nossa casa naquele dia anunciar que você era uma estrela no céu agora... Não, uma constelação inteira. Serpentário, ele disse. Em homenagem às serpentes que rodeavam o templo, aquelas mesmas que se tornaram seu símbolo por sua pura negligência em manter a grama ao redor de nossa casa em um nível aceitável para que elas não pudessem se esconder ali.
Uma alma tão digna quanto a sua não podia ser renegada ao vórtice do esquecimento – e se não pudesse voltar à vida, não enquanto Lorde Hades mantivesse o domínio sobre sua alma – ao menos haveria alguma coisa para ser lembrado, de agora em diante. Os homens não esqueceriam da sua gloriosa história, então nós poderíamos descansar, nos sentirmos orgulhosos... Nós fizemos nosso trabalho, ele disse. Você fora vingado.
Eu não tive coragem de dizer ao seu pai que os homens não se importam com estrelas, Asclépio.
Que eu não me importo com estrelas.
Eu queria você de volta, só isso.
Um sonho impossível no meio de tantos outros sonhos que nunca vão se realizar, eu reconheço; os humanos são tão fracos e insignificantes, mas ainda assim, sonham tão alto, alto o bastante para todos os deuses saberem que nunca os alcançarão. Talvez, vivendo no meio deles por tanto tempo, nós tenhamos nos tornado um pouquinho menos divinos...
Tudo o que sei é que tive muito tempo para me casar com a ideia de que você foi estúpido – que ressuscitar os homens, desafiando o ciclo natural da vida, iria apenas trazer-lhe problemas, e que qualquer um com um mínimo de cérebro teria visto isso de longe –, e agora tudo o que me resta é o vazio da aceitação. Você escolheu sua vocação acima de sua família, e eu também tive muito tempo bem aqui, nos destroços da nossa história em conjunto, para me obrigar a aceitar isto... E, mesmo que eu não possa tirar satisfações com você, não mais, eu ao menos posso conversar com qualquer coisa que ainda resta da sua essência.
Sou uma médica, é verdade, e também uma semideusa. Mas também sou apenas uma mulher.
Uma humana, celebrando a fraqueza que você abominava.
Aquele templo (que eu acredito que, no futuro, irá se tornar seu lugar de veneração... Os homens já começam a contar, com admiração, sua história por aí) continua cheio de pessoas buscando conforto e cura – e eu tenho me mantido ocupada ajudando-os na melhor da minha capacidade. Foi graças a você que eu aprendi a alegria em ver o agradecimento nos olhos deles, a satisfação de um trabalho bem feito, a gentileza com que o coração se eleva quando alguém deixa nossos domínios com um sorriso e uma prece nos lábios.
Eu gosto de pensar que este é o seu legado – o seu presente para mim e todos os outros. Se você sumir da memória da humanidade, se tornando apenas um ponto brilhante no céu longínquo, uma nota de rodapé na História – apesar de que, creia-me, eu não permitirei que isso ocorra, pois continuarei me lembrando mesmo que todos os outros se esqueçam –, ao menos isto aqui continuará.
E, um dia, eu também vou segui-lo nesta luz com a esperança de encontrá-lo nos campos Elíseos, e minha memória também vai ser esquecida pelos mortais com bem mais facilidade, reconheço.
Este foi um mundo que eu só aprendi a apreciar depois de conhecê-lo – você, a alma bondosa que sempre o viu pela coisa maravilhosa e misteriosa que é –, e é apenas o correto sorvê-lo na sua ausência, quando eu sei que você gostaria de estar fazendo o mesmo. Sua tendência de lutar pela necessidade dos outros antes das suas próprias levou-o de mim, mas isso não significa que eu não posso, teimosamente, buscá-lo de novo... Não como Orfeu e sua Eurídice, mas apenas através desta fraqueza que você odiava, mas que eu aprendi a ver com outros olhos.
Mas, enquanto isso, até lá, eu ainda terei aprendido muitas outras coisas, e terei vivido tantas outras, apenas para ter muitas histórias para contá-lo quando nos revermos. O que você me deu foi a memória de um anil puríssimo, e um céu claro e repleto de estrelas é o que eu quero lhe dar em retorno.
Enquanto isso, até lá, eu continuo fechando os olhos todas as noites, a luz das estrelas subitamente brilhante demais para meus olhos. Engolindo a sensação de perda em meu peito, suprimindo a antecipação infantil e irracional de ouvi-lo entrando pela porta, se desculpando por ter demorado tanto assim, abatendo o desejo de esquecer do mundo apenas por alguns momentos em seus braços, como eu costumava fazer, e apenas apreciar o calor da sua vida, porque já faz tanto tempo desde a última vez que fiz isso.
Enquanto isso, até lá, eu continuo vivendo num mundo sem a sua luz.
Merci pour la lecture!
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