zephirat Andre Tornado

O mundo está em confinamento por causa da pandemia de COVID19. Um prédio de quatro andares numa cidade qualquer e os seus habitantes. Cada apartamento conta uma história, cada morador tem a sua maneira de viver a quarentena. De várias idades, de várias sensibilidades, experiências e posturas, famílias, solteiros, casais, o prédio é um mosaico de situações variadas que narram como cada um está a atravessar este momento único nas suas vidas.


Histoire courte Interdit aux moins de 18 ans. © História original de minha autoria.

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Histoire courte
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Capítulo único


Se deixo de sonhar deixo de ser quem sou. Por isso, vou sonhar todos os dias… e também todas as noites.



Tomou um duche prolongado, daqueles em que a água quente é uma capa que se cola ao corpo e que não se quer despir, porque faz demasiado frio sem a proteção líquida e confortável. Quando saiu da cabina trouxe consigo novelos de vapor que lhe encheram a pequena casa-de-banho de nevoeiro branco e denso. Secou-se depressa, pendurou a toalha de forma displicente.


No quarto vestiu-se devagar, a deter-se nos detalhes, a escolher os acessórios com cuidado. Tinha de estar apresentável, bonito. Respirou fundo, apreensivo. Tinha de estar no seu melhor. Era uma oportunidade única e irrepetível. Regressou à casa-de-banho. Limpou o espelho embaciado com a manga da camisa. Penteou-se, perfumou-se. Lavou os dentes. Tinha de ter bom hálito. Sorriu e fez caretas. Cara séria, cara engraçada, piscou o olho.


Ou talvez, pensou a entrar em pânico… ou talvez fosse apenas a primeira noite de mais noites e não uma oportunidade única e irrepetível, se tudo corresse bem, se ele conseguisse aguentar-se à bronca, porque aquele desafio era complicado e, no final, só ficavam os mais fortes. E ele era forte? Achava que não…


Vestiu o casaco por cima da camisa, ignorando a manga húmida. Ajeitou-o nos ombros. Movimentou o pescoço, para aliviar a sensação de aperto na garganta, porque sentia-se estrangulado.


Nervoso, como um noivo no dia do casamento.


Foi até à sala.


O ambiente estava preparado. Acendera velas perfumadas, fechara os cortinados, arrumara as almofadas do sofá, limpara o pó da estante e aspirara o chão. Na pequena mesa comprada na famosa loja sueca de móveis estava o computador portátil ligado, a imagem de uma montanha nevada como ecrã de fundo. O seu telemóvel, ao lado, passava música aleatória a partir do Spotify. Sentou-se na cadeira de rodízios, também comprada na famosa loja sueca de móveis.


Sentia a ponta dos dedos gelada e tinha os pés dormentes. Agora, que estava tão perto de concretizar a sua ambição, o seu desejo e a sua loucura enchia-se de medo e de dúvidas mesquinhas.


Desligou a música. Entrou na sua caixa de correio eletrónico pelo computador. Tinha mais de duzentas mensagens para ler, um desleixo monumental, mas ele não era muito organizado. Perdia, no mar de linhas, aquelas importantes, relacionadas com o seu trabalho e depois lixava-se. Não quis pensar muito nisso – em como estava prestes a ser despedido. Ou, provavelmente, já tinha sido despedido. Seria uma daquelas linhas destacadas a preto, assinada pelo patrão. Com a desculpa da pandemia agora faziam-se essas coisas bonitas. Despedidas à distância. Tudo à distância.


As pessoas escondiam-se nas suas casas durante a quarentena imposta pelo Governo. Mas também se mostravam com toda a sua feiura e malvadez.


Abriu a notificação que lhe interessava.


Ela já estava online! Praguejou mentalmente, crispando os lábios. Chegava atrasado e isso não era bom. Também não era mau.


Ligou-se ao mundo virtual. Ela falava concentrada, com o livro entre as mãos. Estava a fazer uma pequena introdução antes de começar a ler mais um capítulo da obra que resolvera apresentar aos seus seguidores, no seu canal que se replicava pelas várias redes sociais. Ela lia livros com a sua voz doce como uma brisa primaveril, fragrante como um mar de verão, quente como uma lareira de outono, límpida como um dia de inverno. Contava sobre o seu dia anterior e ele amou-a mais. O seu coração batia acelerado contra as costelas. Ele assentou o queixo na mão e ficou a contemplá-la. A decorar-lhe cada traço do rosto, a cor da boca, o tremular das pestanas, a alvura do pescoço. Tinha o cabelo amarrado e simples, vestia-se casualmente, mas ele não se importou. Ela seria sempre perfeita, em qualquer apresentação.


Ousado, tocou-lhe na bochecha através do monitor. A ponta dos seus dedos criou uma depressão no ecrã de cristais líquidos e a imagem desapareceu, num vórtice cinzento, naquela área. Ele fechou os olhos e teve-a, naquela sensação.


Ela pertencia-lhe e hoje, naquela noite, ela iria finalmente saber quem era ele.


No fim da transmissão em direto, a linda atriz costumava responder a perguntas dos fãs, num jogo que ela tinha inventado que permitia aproximá-la dos seus admiradores. Nessa noite, ela iria responder-lhe à sua pergunta e depois…


Depois iriam dançar os dois num baile memorável no centro da sua sala perfumada pelas velas, à meia-luz. Ele a conduzi-la, ela a sorrir-lhe. Ele vestido com as suas melhores roupas, ela de calças de fato-de-treino e meias brancas.


Lindos os dois. Nesse sonho!






Eu não vou ser derrotada por isto. Não vou! Hei de sobreviver e hei de escrever um livro de memórias, depois disto, a contar a experiência. Um diário. Sim, um diário!



Tinha todos os dias planeados numa folha de cálculo. As horas e as tarefas perfeitamente definidas, identificadas por cores, as letras em destaque para os momentos que não podiam ser trocados por outros. Cada semana organizada num horário espartano, tempos para pausas e para refeições, tempos para trabalho e lazer, tempos para ir à janela e espreitar como estava o tempo, tempo para respirar. O despertador tocava às sete e meia da manhã e não se podia deitar depois das onze da noite. Se não cumprisse, havia penalizações. Tudo definido por ela. Pequenos castigos.


Não podia ceder à tentação de amolecer. Seriam cinco semanas – para começar. Depois logo se veria. Se começasse a furar o esquema, a achar que podia deixar de fazer isto ou aquilo, seria o descalabro. Não iria ser indisciplinada ou indolente.


Com os dias tão preenchidos, mesmo que fechada em casa, não ocupava a cabeça com elementos desnecessários, nem com distrações fúteis ou receios imbecis. O vírus estava no mundo e as pessoas tinham de combatê-lo com todas as suas armas. A dela era a exigência, acima de qualquer outra.


As tardes eram as suas preferidas. Na folha de cálculo tinha, em células separadas, a indicação dos nomes dos amigos e dos familiares que iria contactar. Foi uma grande dor de cabeça conseguir enfiar os seus contactos naquele cronograma, respeitando o restrito cumprimento dos vinte minutos que tinha estipulado para cada chamada. Podia ser de voz ou de vídeo. Por fim, optou por criar uma hierarquia – quais os contactos que mereciam vê-la ou apenas ouvi-la. Sentiu-se mal, num primeiro momento, mas depois convenceu-se de que estava apenas a ser justa, porque a vida era mesmo assim, feita de escolhas. Havia as pessoas e havia as pessoas importantes e havia ainda as pessoas fundamentais e, acima dessas, no topo da pirâmide, as pessoas indispensáveis.


Conseguiu controlar as suas chamadas, sempre. Vinte minutos e falava tudo o que precisava de falar. Trocou beijos e abraços virtuais, disse palavras de conforto e de incentivo. Contou piadas e compungiu-se com histórias dramáticas, comentou notícias e outros mexericos. Dispensou conselhos e escutou avisos. Havia momentos divertidos e sérios, mas eram momentos com pessoas e isso era sempre bom. Os vinte minutos davam para tudo.


Trabalhava de manhã, à distância, ligada ao escritório com a ajuda de uma daquelas plataformas que a punha em contacto com o chefe e com alguns colegas, dependendo do serviço. Era tratar de papelada. Tomava um banho prolongado no fim do dia, depois de uma sessão de exercício físico e no duche ouvia música e cantava alto, para ouvir a sua própria voz. À noite lia um livro ou via um pouco de televisão – geralmente o início das notícias para se manter atualizada. Nalgumas noites substituía a leitura por um filme ou um par de episódios da série que determinou acompanhar. Tudo até às onze da noite. Antes de se deitar, abria a janela de par em par, fizesse frio ou não, e respirava o ar da noite. Mais um dia passado, menos um dia de confinamento.


Dias perfeitos. Estava feliz e realizada, porque estava a vencer o desafio.


Ao fim da terceira semana, a sua fortaleza ruiu.


Cantarolava na cozinha a preparar um batido depois de uma sessão de ginástica intensiva. Antes do banho em que voltava a convocar a música para lhe encher a alma de brilhos, fazia um lanche. Sentia-se revigorada, poderosa, magnífica.


Mas depois deixou de sentir.


As pernas cederam e ela descobriu-se sentada no chão da cozinha a chorar alto, a boca escancarada a vomitar grandes berros, as lágrimas a molhar-lhe a cara numa inundação salgada e quente. O estômago embrulhava-se numa dor e ela via tudo à roda, nauseada, confusa e dormente.


O que é que lhe estava a acontecer?


Precisava dos seus amigos e precisava de menos silêncio.


Que se danasse a planificação!


Precisava de improviso e de Sol.






Sou tão inútil… Olhem só tantos bolos no Facebook e no Instagram e no Whatsapp. Eu não sei fazer bolos! Nem pão… Pão!! Como raio se faz pão em casa?!



Fez uma saída rápida até ao supermercado mais próximo, um daqueles estabelecimentos de bairro que tinham os produtos essenciais e que ele nunca costumava visitar nos dias normais. Nesses tempos de outrora, antes da pandemia, da quarentena e do estado de emergência, fazia as suas compras nas grandes superfícies, ao sábado, depois de uma volta pelas lojas onde aproveitava para comprar sapatos, uma blusa, qualquer inutilidade.


Agora, depois de estar em casa durante três semanas e com as provisões da despensa esgotadas, costumava ir até esse estabelecimento, uma mercearia asseada que vira crescer as suas vendas – porque todos os vizinhos passaram a aviar-se ali e, tal como ele, deixaram de frequentar os centros comerciais e os grandes hipermercados, por temer a aglomeração de gente.


Ele também não comia muito, ou fez por deixar de se empanturrar. Na verdade, as suas refeições tornaram-se inconstantes e muito erradas do ponto de vista nutricional. Comia mais snacks e guloseimas sempre que sentia fome, fosse esta real ou só uma necessidade de aliviar a monotonia. Nas horas do almoço e do jantar ficava sem apetite e bebia umas cervejas, comia uns amendoins, a navegar pelas redes sociais. Se tinha engordado? O espelho dizia-lhe que sim, mas ele era incapaz de comprová-lo por não possuir uma balança. E nem pensava comprá-la tão cedo.


Então, naquela tarde, imbuído de um espírito esquisito de missão, curioso e nervoso, foi até à loja do seu bairro e aviou-se de farinha com fermento, ovos, leite, manteiga, mel, açúcar, um pacote de passas e outro de nozes. Foi de máscara e com uma pequena embalagem de álcool gel no bolso do casaco, para desinfetar as mãos, antes e depois da pequena saída ao mundo exterior. Não se cruzou com ninguém e ele agradeceu por isso. Não lhe estava a apetecer ver gente e mesmo na loja mal olhou para a mulher da caixa que o atendeu num silêncio forçado e absoluto, daqueles que serão parecidos ao vácuo no espaço. Nem sequer um mísero suspiro para indicar que havia ali alguém a respirar por detrás da viseira transparente.


Regressou a casa numa corrida, a abraçar o saco das compras que era seu, porque ele reutilizava o saco para evitar o plástico e essas ideias ecológicos que agora, em tempos de doença virulenta e mortal, pareciam tão ridículas.


Na cozinha, dispôs os ingredientes pacientemente sobre a bancada. Apoiou o telemóvel no frasco alto da massa esparguete e ligou-o no YouTube, naquela receita que lhe captara a atenção, no meio de um sem fim de outras receitas que ensinavam a fazer bolos. Pareceu-lhe simples e, depois de pronto, o bolo tinha um aspeto bastante apetitoso.


Juntou os ingredientes, improvisou alguns passos, levou a forma ao forno. Sim, tinha uma forma de bolos que a mãe uma vez lhe tinha oferecido num Natal e ele achara o objeto tão inútil que servira, durante alguns meses, de fruteira. Até a ter guardado no armário e nunca mais a ter visto por achar que jamais iria precisar desta.


E não era que o dia tinha acontecido em que precisou, efetivamente, da forma para bolos?


No fim do tempo indicado pelo vídeo, abriu o forno. Foi aspergido por uma nuvem quente com um aroma bastante doce e guloso que lhe fez crescer água na boca.


O bolo era magnífico quando o desenformou. Alto, fofo, dourado. Aproximou-lhe o nariz e aspirou-o, encantado com a sua obra.


Tirou várias fotografias. Não publicou nenhuma, cioso do seu feito.


Os outros que continuassem a julgá-lo um zero à esquerda em termos culinários.


Comeu o bolo deleitando-se com cada fatia suculenta de nozes e passas, como se nunca tivesse comido nada melhor. Murmurava hum, de olhos fechados e não se importou de ganhar mais dois quilos. Eram como um troféu que assinalavam a sua conquista.


Ele tinha conseguido fazer um bolo!






Eu não quero mais isto! Não quero! Não consigo aguentar tanta coisa para fazer… Quando é que o país volta a abrir? Como é que dizem que estão chateados em casa? Eu não consigo parar… Infelizmente, não consigo. Ah, onde está o silêncio?



Nunca descansava. Os dias eram de luta e de labuta.


Fugia para a casa de banho, sentava-se na sanita. Apoiava os cotovelos nas coxas, entalava a cabeça entre as mãos e aproveitava aqueles pequenos segundos só dela quando fazia xixi. Era caricato… Enquanto escutava o jato de urina a atingir a água, podia perder-se naquele pequeno silêncio. Uma pausa. Era tão boa, aquela pausa!


Saía. Recomeçava.


As escolas tinham fechado duas semanas antes das férias da Páscoa. Duas crianças em casa. Doze e oito anos. Os professores pediram endereços de correio eletrónico, passaram trabalhos. Textos para ler e interpretar, fichas de matemática, trabalhos com materiais que se podiam encontrar em casa, toca a usar a imaginação, portfólios digitais com fotografias tiradas dos objetos construídos. Pesquisas várias na Internet, projetos de História e de Geografia com imagens e textos compilados a partir dessas pesquisas. Mais cálculos, mais textos, um corrupio. Ela já não conseguia pensar.


Mas lá estava, a apoiar os filhos com a escola que agora se chamava virtual. Incansável, interessada, a disfarçar o sono e o tédio, a vontade de ir novamente fazer xixi.


Arranjava a casa, limpava e aspirava o pó, lavava e passava roupa, arrumava a loiça na máquina, fazia o almoço e o jantar. Tinha arrumações de armários programadas. Debalde. Nem uma mísera gaveta conseguira organizar. Não tinha tempo livre.


Ela perdera o emprego. O marido continuava a sair todos os dias de manhã, só regressava à noite. Fazia parte da equipa de informática de um serviço público, tinha de se apresentar todos os dias para que os outros colegas pudessem trabalhar à distância, com os seus computadores. Vinha azedo sempre que voltava a casa. Eram muitas queixas, demasiados problemas, horas a fio sem descolar os olhos de um monitor. Ela, então, não se queixava. Não havia espaço para ela contar o seu dia – porque estava em casa. Tinha sorte. Tinha muito tempo.


Fazia compras na companhia do mais novo. Dizia ao filho mais velho para se portar bem, voltaria num instante. Duas horas, no máximo. Nunca comprava muita coisa, era incapaz de acumular comida para mais de dois, três dias. Eram quatro bocas para alimentar, menos um ordenado. Esticava ao máximo o dinheiro e este parecia cada vez menos. A conta bancária drenava-se a olhos vistos.


Queria gritar. Não podia.


Queria chorar. Não devia.


Queria esconder-se. Não tinha onde.


A casa era uma prisão… mas a pequena casa de banho do quarto era um refúgio.


No habitual corre-corre, suando, soprando, criando alternativas para a ruína da sua família. Já ninguém falava coisas normais. Era só a escola, os problemas do trabalho, os números de infetados e de mortos a aumentar. Ela não falava. Só mexia a cabeça para dizer que sim, para dizer que não.


Sentia-se amordaçada, escondida dentro de si. À espera. Com os olhos postos na faixa de luz que se via no topo do poço. À espera para poder subir.


Foi outra vez fazer xixi. Era bom ter aquele pequenino instante para si.






Odeio estas convocatórias, mas estou na varanda todos os dias, a bater palmas, pelas dez da noite. Para todos verem que eu apoio o que quer que seja… Na verdade, até gosto de estar em casa, sem ninguém. Podiam deixar-me sossegado? Muito bem… Ah, já são dez da noite? Vamos lá.



Caía uma chuva miudinha. Ele vestiu um casaco impermeável e puxou o capuz sobre a cabeça. Conferia as mensagens do telemóvel. A namorada continuava a enviar-lhe textos apaixonados decorados com corações e outros emoji patetas, mas ele desconfiava que estavam a tornar-se uma rotina e, portanto, menos verdadeiros. Pelo menos, ele estava a fazer isso. A ver aquilo como uma obrigação, sem sentimento por detrás. Respondia-lhe de forma automática e não se sentia mal por isso. Estavam no fim e ele compreendeu o facto com uma indiferença passiva.


Foi buscar o maço de tabaco à mesa da sala. Deixou a televisão no canal noticioso. Não via televisão. Só a deixava ligada e via as suas séries e os seus filmes no telemóvel. A televisão servia apenas para decoração – um quadro animado na parede, imagens e brilhos para não se sentir tão desacompanhado.


Na realidade, estava até muito bem. Quando não via séries e filmes, jogava online com outras pessoas que também cumpriam a quarentena nos seus países. Tinha conhecido muitas pessoas ultimamente dessa maneira, em fóruns, salas de chat, grupos de gamers. Pessoas diferentes e interessantes. Seria por isso que a namorada o aborrecia?


Puxou o fecho do casaco até ao queixo. Entalou o cigarro nos dentes e guardou o isqueiro no bolso. Abriu a porta envidraçada da varanda. Estava mesmo frio! Que noite aquela! Mas bastavam uns minutos, fazer uma barulheira enorme batendo palmas e depois podia regressar ao conforto da sua sala. Ia começar a maratona de uma nova série que lhe tinham recomendado num daqueles diretos de um tipo a jogar via stream, em que interagia como louco na caixa de conversa. As pessoas andavam todas desesperadas por atenção e por falarem umas com as outras, nem que fosse de forma virtual.


Acendeu o cigarro, voltou a guardar o isqueiro no bolso, soprou o fumo para o ar. Manteve a mão resguardada do ar gelado, no mesmo bolso do isqueiro, enquanto fumava pacientemente, a oscilar sobre os calcanhares.


Viu as varandas do bairro a se iluminarem, as pessoas a aparecerem. Vestidas com casacos, com gorros e cachecóis ainda que estivéssemos em abril.


Que Primavera mais idiota!


As noites de homenagem eram sempre iguais. O início era assinalado com gritos e assobios, havia quem trouxesse gaitas e vuvuzelas. Depois alguém lembrava-se que já eram dez da noite, mais gritos, mais assobios.


Desatavam-se os aplausos que cresciam como uma onda que se agigantava numa explosão de barulho festivo que não ficava atrás de nenhuma celebração do final do ano, só faltavam os foguetes e o fogo de artifício. Quando ele escutava o pico da vaga, o som a reverberar na noite, entre os prédios, a fazer ricochete no cimento pintado e a estimulá-lo, ele punha o cigarro na boca que se torcia num esgar entre o desdém e a falsa alegria e batia palmas com os seus vizinhos. Os próximos, do seu prédio, os mais distantes, da rua toda. Olhava de um para outro lado, cumprimentava a vizinha do quarto esquerdo que pulava como uma louca, a mostrar-se a mais feliz das mulheres. Ria-se para dentro, achando aquilo tudo muito estúpido, mas fazia o seu papel.


Era preciso homenagear os profissionais de saúde, os bombeiros, os trabalhadores que mantinham as lojas essenciais abertas, mais toda a gente que continuava a sair à rua em tempos tão perigosos como aqueles, com um vírus mortal à solta.


Recolhia-se e fechava a porta, aliviado por não terem descoberto que ele continuava a fingir, noite após noite.


Como naquela noite.


Serviço cumprido.


Despiu o casaco. Apagou o cigarro no cinzeiro que estava sobre a mesa.


Esfregou as mãos uma na outra, satisfeito por ter sido tão empático com a comunidade. Mais um ponto para o seu currículo.


Foi buscar um pacote gigante de batatas fritas e atirou-se para o sofá. Hora de ver os episódios da série que tinha escolhido.


A televisão continuava acesa, imagens a desfilar, muda e colorida. Era a sua janela para o mundo e ele nem sequer olhava para ela.






Irei ajudar todos os que precisarem. E mesmo aqueles que julgam não precisar. Vamos vencer isto juntos!



Sabia que iriam precisar dela. Antes, sabia que as pessoas iriam precisar de ajuda e que não podia falhar.


Respirou fundo e juntou as suas armas. A vontade, a resiliência e a persistência. Cheia de coragem e de força, definiu o plano de ação e pô-lo em prática.


Correu o prédio todo, quatro pisos. Bateu à porta de cada vizinho e entregou-lhes um papel onde escrevera, a computador, a sua proposta com os seus números de contacto. Ela faria as compras e trataria de quaisquer outros assuntos que obrigassem a uma deslocação à rua. Explicou, simpática e voluntariosa, a voz num tom acima do normal, excitada por poder demonstrar o seu altruísmo, que estava disposta a ser a pessoa de ligação ao exterior. Havia maneiras de se fazer as encomendas e as entregas, horários, explicações de como tudo iria funcionar num esquema simples e prático. Informou que tinha pedido ao seu chefe a possibilidade de trabalhar fora do horário, porque se tinha voluntariado para aquele trabalho que lhe ocuparia o dia. O chefe não se importou e ela também não se importava. Completou que era tudo em prol do casal de vizinhos do primeiro esquerdo, eram velhotes, eram grupo de risco. O que todos fariam seria um ato generoso para os proteger. Nesse papel havia ainda a proposta de pequenos momentos de animação – ela podia ler, contar histórias, passar música, dançar, conversar, fazer momices. Tudo no patamar dos apartamentos e à distância segura de dois metros.


O pai da família dos dois meninos pequenos agradeceu a ajuda, mas recusou. Ele tinha de sair à rua, a mulher tinha de sair à rua e estavam orientados. O vizinho esquisito do último andar, que lhe abriu uma fresta na porta e que ouviu tudo só a mostrar um olho, também disse que não. Conseguia dar conta das suas coisas. Um dos apartamentos estava fechado, era utilizado por uma família quando vinha passar as férias na cidade. O casal de idosos achou a ideia ótima e aceitou a sua ajuda, de imediato. O homem ainda protestou, gostava de dar as suas voltinhas, de ir comprar o pão de manhã, mas a mulher mandou-o calar, ríspida, e disse que não iriam sair à rua enquanto o Governo mandasse toda a gente ficar em casa. O resto disse que sim, mas que entrariam em contacto com ela se precisassem. Ou seja, foi um meio não, ou um meio sim, pronto, que ela era otimista.


Definiu um horário para recolher pedidos – no início da noite de cada dia. Comprou uns cestinhos numa dessas lojas baratas e colocou-o junto à porta de cada apartamento, com um bloco de apontamentos e um lápis dentro. De manhã verificava os cinco cestos; a família do primeiro direito tinha declinado a sua oferta e havia o apartamento vazio, portanto, eram só cinco casas para cobrir, a dela não contava, num prédio de quatro andares.


Definia, a seguir, um percurso. Munira-se de álcool gel com que desinfetava as mãos, colocava uma máscara descartável, que as tinha conseguido comprar na farmácia do bairro a um preço razoável porque conhecia a dona, era muito sua amiga, e fazia a sua ronda. Supermercado, peixaria, talho, padaria. Os correios, para pagar as contas de água e de luz. Tudo o resto, o que não era essencial, foi descartado. À exceção de linhas e lãs para a senhora do primeiro esquerdo tricotar e bordar. Era a sua distração. A senhora não se entretinha com a televisão, os diretos na Internet e essas coisas modernas. Tinha as suas malhas e os seus bordados e ela ia também à retrosaria, considerando-a no rol das lojas indispensáveis.


Em casa, depois da volta matutina, dedicava-se à sua família. Cozinhava para as filhas, para os genros e para os netos. Panelões imensos de sopa, guisados, estufados. Aprendeu a cozer pão e confecionava bolachas. Fazia marmitas assinalando os dias da semana em cada uma, comida pronta a consumir depois de congelada e descongelada. Não queria que as filhas, os genros e os netos fossem à rua. Ela iria, ela é que se expunha. Tinha uma saúde de ferro, nunca fora à cama mesmo com febre. Estava geneticamente preparada para enfrentar o mundo exterior – e para vencer.


Dia após dia.


De noite, depois de despachar o trabalho e de cumprir com as suas obrigações profissionais, tentava aprender e instruir-se. Contactava com amigas, falava com um sem fim de pessoas para conhecer, de perto, a situação. Em primeira mão. Informação sem os filtros da imprensa, das fake news das redes sociais, sem as opiniões pessoais e distorcidas dos impressionados, dos melancólicos, dos assustados. Telefonava a um sem fim de gente, a oferecer a sua ajuda – como se ainda tivesse tempo, e tinha-o, haveria sempre de conseguir uns minutos, uma fatia do seu horário que ela espremeria entre uma obrigação e outra – a pedir desabafos, a dar a sua simpatia, a sua compaixão, a dar tudo que tinha.


Nessa lista de contactos, ocasionais e mais frequentes, tinha amigas enfermeiras que lhe contavam o que acontecia nas alas dos cuidados intensivos dos grandes hospitais. Horrorizava-se, compungida e emocionada, com o que elas lhe diziam, nas videochamadas, nos telefonemas de voz. Mais uma vez dizia que podia ajudar, que se dava como voluntária. Recusavam sempre. Era demasiado perigoso. A bolsa de voluntariado fora suspensa, ela que ficasse em casa, que se protegesse a si e aos outros. Ia ficar tudo bem, era a frase que encerrava qualquer conversa.


E ela sorria, concordava. Claro que ficava. Dentro das paredes que ela considerava a sua casa que extravasavam o apartamento. E ia mesmo ficar tudo bem.


Ao fim de três semanas naquela roda-viva, começou a sentir dores no corpo. Ignorou-as. Uma moinha nas têmporas, a testa a estalar. Deitou-se nessa noite cheia de preocupações aos trambolhões no cérebro, dormiu mal.


Despertou cansada, exaurida. Teve um rebate de consciência quando estava a levar a mão à maçaneta da porta da rua para sair. Deu meia volta, foi até ao armário da casa de banho onde guardava os remédios e o termómetro. Mediu a sua temperatura. Um minuto, talvez menos…


Sentou-se na sanita, atordoada, a verificar o pequeno mostrador digital.


Trinta e oito vírgula dois.


Era febre. Era, pois era.


Tentou convencer-se de que seria um mal-estar passageiro. O corpo ressentia-se da fadiga acumulada daqueles vinte dias de azáfama intensa. Nunca ia à cama, mesmo com febre, lembrou-se. Sorriu a desafiar o destino. Mas, de seguida, o seu sorriso esboroou-se.


Não podia sair.


Agarrou no telemóvel com as mãos a tremer.


Estava enjoada, agoniada, o corpo a oscilar, dores e dores por todo o lado. Tanta gente que dependia dela! Como iria fazer, se ficou doente? Quem iria olhar por todos aqueles que ela ajudava? As suas filhas, os seus netos… o casal simpático de septuagenários do primeiro esquerdo.


Desligou várias vezes a chamada antes que a atendessem, cheia de dúvidas, cheia de pena e de remorsos, zangada por se ter deixado adoecer.


Mas tinha de ligar.


Ela ouviu todos os conselhos. Não podia sair de casa, se estava com febre. Iria ficar na lista dos acompanhamentos, devia ter o telemóvel à mão para atender as chamadas que iria receber nos próximos quinze dias. Ela nem teve energias para protestar. Aceitou tudo. As recomendações, os conselhos, as palavras de incentivo. Esboçou um sorriso, mas sentiu um travo amargo no fundo da garganta.


Meteu-se na cama, frustrada. Não se permitiu chorar. Não iria ser tão fraca a esse ponto. Pediu à filha mais velha que avisasse as pessoas que precisavam dela. A filha apareceu numa visita surpresa, ela disse para não se aproximar, num grito tanto de raivoso quanto de desesperado. Ela não queria que a tomassem por fraca, que tivessem pena dela. Não… era só o cansaço, repetia. Só o cansaço, no dia seguinte já estaria boa, pronta para a sua batalha daquela imensa guerra.


Na noite, piorou. Sentiu um aperto no peito, falta de ar.


Irritou-se com a sua fragilidade. Continuou a não chorar.


A ambulância levou-a na madrugada seguinte. Estava desorientada, balbuciava, tinha alucinações entre sonhos a preto e branco que lhe ferviam o sangue e lhe roubavam a alma. Perdeu-se na sua desorientação. Estava muito doente. Estava gravemente doente.


Queria não ter sucumbido. Queria ter sido sempre forte.


As pessoas… As pessoas precisavam dela.


Chorou, por fim. Derreteu-se num pranto aflito, soluçava e tentava respirar.


Foi internada de urgência. Diagnóstico: infeção por covid-19.






A primavera já chegou… Estou com saudades dos meus netos.



– O que é que estás a fazer? Larga a porta, homem! Sempre a espreitar as pessoas…


– Deixa-me em paz. Continua lá a fazer as tuas malhas e deixa-me em paz.


– Hoje estou a fazer croché. Umas pegas novas com restos de linhas. As outras já estão estragadas, por causa das panelas quentes. Estão esgaçadas e chamuscadas…


– Tens uma gaveta cheia de pegas… não dei por nenhuma estragada.


– O que foi que disseste? Lá estás tu a resmungar, homem…


– Sim, sim. Continua lá com a malha. Deixa-me em paz.


– Croché. Estou a fazer croché. Não sei o que fazes aí. Nunca se vê nada… é só o patamar e as portas do elevador…


– Estou a ver o vizinho lá de cima a descer as escadas… Resolveu vir pelas escadas. Ele passa sempre por aqui, a trotar como um cavalo. É ele que estou a ver, mulher. Está mais magro, sabias? Arranjou finalmente uma namorada.


– Como é que ele fez isso? Como é que arranjou uma namorada se esteve sempre metido em casa, como nós?


– Sei lá! Ele agora sorri mais e parece mais feliz. E não usa o elevador. É o amor que o carrega. Desce as escadas como um cavalo, já te disse.


– Ai, homem! Para quê dizeres essas coisas…


– Sempre fui um poeta.


– Um poeta? A chamares o vizinho de cavalo. Isso não é ser um poeta.


– Olha lá vem ele. Tem uma namorada, já te disse. Só uma namorada põe um homem assim. Até voa. Pronto, já se foi embora. Já não o vejo… Uma namora, é o que te digo.


– Se o vizinho já se foi embora volta para a sala. Está a dar um bom programa na televisão.


– O que é?


– Estão a cantar. Anda lá, que tu gostas de cantigas.


– Nunca mais vi a vizinha de cima, aquela menina jeitosa que gosta de ginástica… Acho que ela deve andar um bocadinho em baixo com tudo isto. Será que está com depressão? Há pessoas que ficam malucas por estarem fechadas em casa.


– Porque dizes isso? Uma menina jeitosa, é verdade… não queria que ficasse doente. Já basta o vírus que tira o ar às pessoas…


– Nunca mais a vi. Ela dantes saía à rua e pulava muito, lá na casa dela, outro cavalo. Conseguíamos ouvi-la aqui, no primeiro andar!


– A rapariga não é nenhum cavalo. Lá estás tu…


– Uma égua, pronto.


– Ai, homem! Para de dar alcunhas aos nossos vizinhos. Se calhar nunca mais viste essa vizinha porque ela é a namorada do moço que, dizes tu, está apaixonado. Ora aí está uma explicação razoável.


– Não, não. O vizinho apaixonado, o cavalo, arranjou moça noutro lado. Acho que foi no computador.


– Como sabes tu isso?


– Ele ligava o computador e punha-se a falar com alguém. Tocava viola e tudo, para a moça. Fazia serenatas. E era sempre de noite. Estás a ver, mulher? Serenatas à noite! E não entrava mais ninguém no prédio depois das oito da noite, quando vinha aquele Pamplinas mal-encarado que tem os dois filhos, casado com a mulher que perdeu o emprego. Até a vizinha que nos ajuda e que nos fazia as compras se metia em casa até às cinco da tarde, no máximo. Portanto, a namorada que arranjou saiu do computador.


– Ai, homem! Andas a controlar a vida dos vizinhos?


– Sempre fui muito sensível de ouvido. Ainda não estou surdo, como tu. Qualquer barulhinho desperta-me a curiosidade e pronto… acaba por saber dessas coisas.


– Ah… que coisa. Eu não estou surda.


– Será que a vizinha já está melhor?


– Qual delas, homem?


– A que nos fazia as compras e que foi internada com o vírus…


– Não sei. As filhas nunca mais apareceram aqui e nós não devemos abrir a porta, porque o vírus pode entrar aqui dentro. E se nos apanha, homem… vamos desta para melhor.


– Eu sou rijo.


– Não tentes a sorte! Por amor de Deus, não queiras ficar doente! Era uma carga de trabalhos!


– Nunca tentei a sorte. Mesmo contrariado, deixei de ir à rua. E gostava de ir comprar o pão…


– Não precisas de ir à rua. Se não é a vizinha que nos fazia as compras, temos aquele rapaz muito simpático do supermercado que nos traz as coisas a casa. Não tem faltado nada… estamos muito bem servidos.


– Sim, pois estamos. O maluco do último andar, o que bate palmas na varanda todas as noites… esse não tuge, nem muge. Esse não me incomoda tanto.


– O que queres dizer?


– É o mais maluco de todos e é o que se tem portado melhor. Faz a sua vida igual à dos outros dias. Nunca chateou ninguém e continua a não chatear.


– Homem, isso não te fica bem. És um autêntico coscuvilheiro, a fuçar na vida das outras pessoas.


– Gosto de saber sobre os meus vizinhos. Sou uma pessoa interessada. Digo sempre bom dia e boa tarde, mesmo que não me cumprimentem de volta. Eles é que ficam mal com essa atitude. Não serei eu… não serei eu. Vou sempre dizer bom dia e boa tarde. Foi assim que me ensinaram.


– E ensinaram-te muito bem. Não dei pelos nossos vizinhos de cima terem ocupado o apartamento. Costumavam vir pelas férias…


– Então não ouviste o primeiro-ministro contar, na televisão, que as pessoas não podiam viajar na Páscoa? Esses vizinhos vêm de longe, vêm lá da sua terra. Não puderam sair e o apartamento ficou vazio. Olha, foi melhor assim, Maria.


– Porquê, João?


– Sem vizinhos de cima, descansamos melhor. Sem aquela barulheira dos miúdos, as correrias e os berros.


– Temos os miúdos do lado…


– Esses não incomodam tanto. Os de cima são piores. São uns autênticos terroristas! Essa mãe não lhes dá educação. Os miúdos do lado estão bem-educados. Dizem bom dia e boa tarde, mesmo cheios de vergonha, calam-se quando a mãe os manda calar e deitam-se cedo. Já estes aqui de cima… é até altas horas da noite aos saltos e aos pulos, um barulho enorme com a música moderna deles. Não respeitam ninguém.


– Eles vêm para cá de férias e durante as férias não há horários.


– Ah, não os defendas. Também te incomodam. E as lojas cá de baixo? Ainda bem que fecharam.


– Não digas isso. Gostava da florista. Comprava sempre rosas frescas para as jarras. Acho que a dona Carminho despediu as funcionárias porque fecharam a florista. Gostava das moças, sempre tão simpáticas… e depois era a papelaria, onde ias registar o totoloto. As lojas não chateavam ninguém. Não, senhora…


– Ah, vou mudar de canal. Estas cantigas estão a irritar-me.


– Pensava que gostavas dessas cantigas.


– Hoje não quero ouvir.


– Será que a vizinha precisa de ajuda?


– Qual delas?


– A mãe dos miúdos. Perdeu o emprego, é só o marido que trabalha…


– Se precisasse de ajuda, vinha pedir.


– Olha que não sei, homem… Olha que não sei. Ela pode precisar e não dizer nada.


– Não podemos falar com ela agora.


– É uma pena… não podermos falar com as pessoas.


– Hum… nem as pessoas querem falar connosco. Somos velhos, querem proteger-nos e evitam aproximar-se. Nunca gostei disso.


– Nunca gostaste do quê?


– Que me vissem dessa maneira! Não estou com os pés para a cova!


– Olha a vizinha que nos fazia as compras. Apanhou a doença e está no hospital. E ela era mais saudável do que nós os dois juntos. Uma mulher tão forte e cheia de energia. Apanhou o vírus, sabe-se lá onde, e foi-se abaixo num instantinho. Nem sei como não ficámos contagiados…


– Ela era cuidadosa, verdade seja dita. A vizinha tomava sempre todos os cuidados e nunca falava connosco diretamente. Era com aquele cestinho. E o outro vizinho? Também nunca mais o vi.


– Qual deles?


– O do segundo direito. Aquele que é gordo.


– Deve estar bem. Já sabes que as notícias más correm depressa. Não viste como soubemos logo que a vizinha do terceiro esquerdo foi para o hospital? O vizinho do segundo direito está bem.


– Soubemos da vizinha doente porque a filha veio avisar.


– E houve aquele estardalhaço todo com a ambulância. Que susto, homem! Que susto.


– Sim, que susto. Não dormi nada depois de ter vindo a ambulância.


– Nem tu, nem ninguém, homem. Ficámos cheios de medo. E os outros cheios de medo por causa de nós.


– Eh… E lá estão a ver-nos como dois velhos jarretas.


– Somos dois velhos jarretas, homem…


– Dizes isso e ris-te.


– Queres que chore? Ouve lá… não está na hora? Quero falar com os meus netos.


– Não sei. Vou buscar o telemóvel e telefonamos para a nossa filha. Pergunta-se. Qualquer hora será sempre uma boa hora.


– Ela tem os seus afazeres. Não a vais incomodar.


– É sábado! Está de fim-de-semana. Eu sou o pai dela e o avô dos filhos dela. Estamos longe. É sempre uma boa hora.


– Sim, vai lá buscar o telemóvel. Continuas teimoso…


– Abre as cortinas. A sala está escura. Deixa entrar o Sol.


– O Sol… sim, já começou a primavera.


– Sim, começou na semana passada.


– Está calor.


– Daqui a pouco podemos ir dar um passeio. Hum, minha velha?


– Pode ser…


– Temos as máscaras. O primeiro-ministro diz que podemos sair se usarmos as máscaras. Quando passar este estado de emergência.


– Sim, sim.


– Vais comigo. Não te vai acontecer nada de mal. Eu protejo-te.


– E tu podes lá proteger-me do vírus que é invisível, homem!


– Posso, sim! Apanho o vírus primeiro e sirvo-te de escudo.


– Livra-te a ti! Não te quero doente. Não te podia ir visitar…


– Reclamas e reclamas, mas, no fim, não consegues viver sem mim.


– Homem, quem te atura sou eu. E mais ninguém.


– Aqui está o telemóvel. Vou ligar. Não queres abrir também as janelas? Está Sol. Está um Sol tão bonito.


– Faz corrente de ar.


– Precisamos de arejar a casa. Abre as janelas.


– Está bem, está bem. Já vi que estás com saudades da rua.


– Estou com saudades de muito coisas.


– Liga, lá o telemóvel. E eu estou com saudades dos meus netos.


– Mulher?


– Sim?


– Nós sobrevivemos.


– Sim, homem. Nós sobrevivemos.

31 Octobre 2020 17:50 0 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
3
La fin

A propos de l’auteur

Andre Tornado Gosto de escrever, gosto de ler e com uma boa história viajo por mil mundos.

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