Minha vó Lucinda sempre me falou da necessidade de enterrar seus mortos, porque só assim se consegue viver. Eu nunca entendi bem o que isso queria dizer quando criança. Afinal, o que faríamos com os mortos se não enterrá-los?
O barulho das garrafas caindo, um celular no meu peito, quase sem bateria. E sempre aquele número, que eu sabia decorado, melhor do que o meu.
Uma discagem, uma chamada breve, direto na caixa eletrônica.
Ei! Aqui é Leidiane! Se está ligando deve ter algo importante para dizer, então deixe seu recado que retorno quando puder!
Eu não consigo lembrar se fechei o portão de casa ao sair.
Consigo o imaginar batendo com o vento contra a murada, do jeito que Leide sempre reclamava. Na verdade, quase consigo ouvir o barulho que ele faria, mesmo do outro lado da cidade.
Isso não importa muito agora, não nesse momento.
Saio do metrô vazio trôpego, como um bêbado, mesmo que esse seja o mais sóbrio que estive em meses. Desde aquele dia, desde Leide.
Ligar para aquele número se tornou um ritual. Ligar, ouvir a voz, desligar. De novo.
Às vezes eu deixava o recado. Coisas simples como o que aconteceu no meu dia, como sentia sua falta. Ás vezes eu até esquecia do que aconteceu. Talvez eu estivesse me enganando tanto que um dia acreditaria.
Eu viro a esquina para o parque conhecido. É madrugada, mas não sei o horário. O telefone está ali no meu bolso, mas não quero tirar e ver.
Por um momento eu penso se vou ser assaltado ou morto.
É um pensamento quase reconfortante.
Todos os dias a mesma coisa. Começa, repete. Tudo igual.
Até que um dia algo muda.
Um dia, alguém atende o telefone.
Milson?
.
O lado está ali, bem à vista. E o nosso píer. O mesmo em que demos o nosso primeiro beijo. É o nosso lugar. Tem alguém lá.
Meu coração acelera no peito ao ver a silhueta, o vestido florido que ela ama tanto. Ela está lá, me esperando.
Acelero o passo.
A voz do outro lado me faz perder o ar.
Por um momento penso que estou sonhando, o que é bem possível.
Mais possível do que ouvir aquela voz, a voz de Leide.
Foi como se, pela primeira vez naquela vida miserável, eu tivesse uma prece atendida.
Vó Lucinda dizia para enterrar seus mortos, nunca chamar por eles.
Eu nunca entendi, até chamar por Leide todos os dias.
Qual a justiça da morte, de levar alguém, mas a morte acontece mesmo é para quem fica para trás?
Vó Lucinda dizia para não chamar pelos mortos, mas o que se faz quando são eles que te chamam? E ela está ali, no píer. Os cabelos crespos ao vento, o vestido balançando. O sorriso no rosto doce, a pele lisa e imaculada, escura como o ébano, tão diferente da última vez que a vi.
Ela ainda está encharcada, mas não mais inchada e verde, protuberante e se desmanchando, como quando a acharam naquele rio. Há um odor forte no ar, mas o ignoro. Nada mais existe.
“Você veio.”
Os olhos, escuros, completamente escuros, me fizeram parar por um segundo, mas o sorriso dela me fez retomar o passo.
E correr até ela.
“Leide!”
“Edmilson.”
Eu me enterro em seus braços, afundo o rosto em seu cabelo.
O ar é frio ao redor, o odor mais forte, a noite mais escura. É como entrar em vortex de escuridão, mas nada disso importa.
Vó Lucinda me disse para não chamar os mortos, que não são eles que respondem, mas ali estou eu, abraçando Leide. Eu a chamei e ela veio.
E agora, nunca mais a deixaria ir.
“Eu amo você.”
Ela sorri e nos separamos brevemente, e mesmo assim parece tortura.
O sorriso parece mais largo do que lembrava, os olhos completamente escuros brilhando na escuridão.
“Vem.” Ela me estende a mão e aponta para a balsa, a mesma em que passeamos no primeiro encontro. "Venha comigo."
Não há hesitação nenhuma. Só Leide. Apenas Leide.
Tudo o que importa é Leide.
Milson? Venha me encontrar. Estou esperando.
Quando a balsa se move, por um breve momento penso em olhar para trás, mas estou ocupado demais bebendo a imagem de Leide.
Se tivesse olhado, teria visto o corpo boiando na baía, ficando para trás.
Merci pour la lecture!
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