loremkmorais Lorem K Morais

Minha vó Lucinda sempre me falou da necessidade de enterrar seus mortos, porque só assim se consegue viver. Eu nunca entendi bem o que isso queria dizer quando criança. Afinal, o que faríamos com os mortos se não enterrá-los?


Horreur histoires de fantômes Interdit aux moins de 18 ans.

#terror
Histoire courte
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Capítulo único

Minha vó Lucinda sempre me falou da necessidade de enterrar seus mortos, porque só assim se consegue viver. Eu nunca entendi bem o que isso queria dizer quando criança. Afinal, o que faríamos com os mortos se não enterrá-los?


O barulho das garrafas caindo, um celular no meu peito, quase sem bateria. E sempre aquele número, que eu sabia decorado, melhor do que o meu.

Uma discagem, uma chamada breve, direto na caixa eletrônica.

Ei! Aqui é Leidiane! Se está ligando deve ter algo importante para dizer, então deixe seu recado que retorno quando puder!


Eu não consigo lembrar se fechei o portão de casa ao sair.

Consigo o imaginar batendo com o vento contra a murada, do jeito que Leide sempre reclamava. Na verdade, quase consigo ouvir o barulho que ele faria, mesmo do outro lado da cidade.

Isso não importa muito agora, não nesse momento.

Saio do metrô vazio trôpego, como um bêbado, mesmo que esse seja o mais sóbrio que estive em meses. Desde aquele dia, desde Leide.


Ligar para aquele número se tornou um ritual. Ligar, ouvir a voz, desligar. De novo.

Às vezes eu deixava o recado. Coisas simples como o que aconteceu no meu dia, como sentia sua falta. Ás vezes eu até esquecia do que aconteceu. Talvez eu estivesse me enganando tanto que um dia acreditaria.


Eu viro a esquina para o parque conhecido. É madrugada, mas não sei o horário. O telefone está ali no meu bolso, mas não quero tirar e ver.

Por um momento eu penso se vou ser assaltado ou morto.

É um pensamento quase reconfortante.


Todos os dias a mesma coisa. Começa, repete. Tudo igual.

Até que um dia algo muda.

Um dia, alguém atende o telefone.

Milson?

.

O lado está ali, bem à vista. E o nosso píer. O mesmo em que demos o nosso primeiro beijo. É o nosso lugar. Tem alguém lá.

Meu coração acelera no peito ao ver a silhueta, o vestido florido que ela ama tanto. Ela está lá, me esperando.

Acelero o passo.


A voz do outro lado me faz perder o ar.

Por um momento penso que estou sonhando, o que é bem possível.

Mais possível do que ouvir aquela voz, a voz de Leide.

Foi como se, pela primeira vez naquela vida miserável, eu tivesse uma prece atendida.


Vó Lucinda dizia para enterrar seus mortos, nunca chamar por eles.

Eu nunca entendi, até chamar por Leide todos os dias.

Qual a justiça da morte, de levar alguém, mas a morte acontece mesmo é para quem fica para trás?

Vó Lucinda dizia para não chamar pelos mortos, mas o que se faz quando são eles que te chamam? E ela está ali, no píer. Os cabelos crespos ao vento, o vestido balançando. O sorriso no rosto doce, a pele lisa e imaculada, escura como o ébano, tão diferente da última vez que a vi.

Ela ainda está encharcada, mas não mais inchada e verde, protuberante e se desmanchando, como quando a acharam naquele rio. Há um odor forte no ar, mas o ignoro. Nada mais existe.

“Você veio.”

Os olhos, escuros, completamente escuros, me fizeram parar por um segundo, mas o sorriso dela me fez retomar o passo.

E correr até ela.

“Leide!”

“Edmilson.”

Eu me enterro em seus braços, afundo o rosto em seu cabelo.

O ar é frio ao redor, o odor mais forte, a noite mais escura. É como entrar em vortex de escuridão, mas nada disso importa.

Vó Lucinda me disse para não chamar os mortos, que não são eles que respondem, mas ali estou eu, abraçando Leide. Eu a chamei e ela veio.

E agora, nunca mais a deixaria ir.

“Eu amo você.”

Ela sorri e nos separamos brevemente, e mesmo assim parece tortura.

O sorriso parece mais largo do que lembrava, os olhos completamente escuros brilhando na escuridão.

“Vem.” Ela me estende a mão e aponta para a balsa, a mesma em que passeamos no primeiro encontro. "Venha comigo."

Não há hesitação nenhuma. Só Leide. Apenas Leide.

Tudo o que importa é Leide.


Milson? Venha me encontrar. Estou esperando.


Quando a balsa se move, por um breve momento penso em olhar para trás, mas estou ocupado demais bebendo a imagem de Leide.

Se tivesse olhado, teria visto o corpo boiando na baía, ficando para trás.

24 Octobre 2020 15:01:48 12 Rapport Incorporer Suivre l’histoire
9
La fin

A propos de l’auteur

Lorem K Morais Cosmopolita, cafezeira e ranzinza. Estou sempre de um lado para o outro, sem pouso certo. Uma hora aqui, outra acolá. Cirurgiã-Dentista e escritora por ocasião, porque preciso colocar em palavras tudo o que vi. Entre aqui e acolá. Em comum a vontade de fazer as pessoas sorrirem. Vocês podem me encontrar também no meu blog Anjo Sonhador [loremkrsna.blogspot.com]. Não se acanhe não, se achegue aqui. Deixe te contar uma história.

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Isís Marchetti Isís Marchetti
Olá! Tudo bem com você? Faço parte do Sistema de Verificação e venho lhe parabenizar pela Verificação da sua história. Achei seu conto arrepiante! Imagina que loucura, você andando por aí, arrasado porque perdeu o amor da sua vida, comete alguns atos de loucuras, mas que dá pra compreender (as ligações, convenhamos que isso por si só já é estranho, mas não deixa de ser algo que as pessoas não fariam, o que duplica mais ainda a estranheidade de tudo) que ele só está com saudades e que ainda não superou o acontecido. E aí tudo isso pode ser mudado de uma hora para a outra, porque ela estava ali, te chamando. Sinistro, cara! Como uma pessoa que também participou do desafio de terror e que leu as histórias participantes, eu gostaria de ter tido a oportunidade de ter lido essa história antes, e se é da sua curiosidade eu ainda tentaria interceder para que essa história ficasse no desafio, eu, particularmente, gostei demais dessa! Eu sei que não é eu que escolho nem nada parecido, mas não custa eu comentar, haha. Vamos lá, a coesão e a estrutura do seu texto estão ótimas! Apesar de ser um texto pequeno com poucas palavras você conseguiu passar para mim toda a aflição e a angustia que vinha atingindo Milson, e isso foi simplesmente espetacular. A narrativa proporciona um texto muito gostoso de se ler, faz com que a leitura flua tranquilamente e sem nenhum impecilho do começo ao fim. Quanto aos personagens, eu fiquei com pena dele no fim! Mas fazer o que, da pra compreender que era com ela que ele queria estar apesar de tudo, e mesmo que morto não fale, eu acredito que ele estaria, de fato, nem um pouco arrependido. Quanto à gramática, tem um pequeno apontamento que gostaria de te mostrar em: "Saio do metrô vazio trôpego" em vez de " Saio trôpego do metrô vazio" não é grande coisa, então você é livre para mudar só se quiser mesmo. No mais eu gostei bastante do muito que você fez em poucas palavras. Foi realmente impressionante. Desejo a você sucesso e tudo de bom! Abraços.
November 06, 2020, 12:55
Alexis Rodrigues Alexis Rodrigues
Meu deeeeeus Que final! ♡
October 26, 2020, 08:11

  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    oooh, obrigada! Mas hey, só um aviso. Essa história não está mais no concurso, eu coloquei outra. Então se tinha as comentários contando com essa, talvez seja melhor comentar em mais uma só para garantir. Caso esteja participando. Boa sorte! October 27, 2020, 16:24
Karimy Lubarino Karimy Lubarino
Uh, caramba, eu me lembrei do rio Aqueronte enquanto lia a sua história. É como se ao morrer e entrar no barco com a Leide, que possivelmente faz papel do Caronte, o Milton vai deixando no rio todas as coisas que queria ter realizado em vida - e uma delas é justamente ficar com a Leide. E realmente foi muito assustador essa ideia de ser carregado para o submundo pela pessoa que mais se ama . Parabéns pela história!
October 25, 2020, 17:36

  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    mais uma coisa! Só um aviso. Essa história não está mais no concurso, eu coloquei outra. Então se tinha as comentários contando com essa, talvez seja melhor comentar em mais uma só para garantir. Caso esteja participando. Boa sorte! October 27, 2020, 16:25
  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    aaa, fico feliz que notou esse detalhe e que gostou da história, obrigada! October 27, 2020, 16:24
Antónia Noronha Antónia Noronha
gostei muito do teu conto! muito bem escrito e descrito! parabéns!
October 25, 2020, 16:13

  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    Muito obrigada! Só um aviso. Essa história não está mais no concurso, eu coloquei outra. Então se tinha os comentários contando com essa, talvez seja melhor comentar em mais uma só para garantir. Caso esteja participando. Boa sorte! October 27, 2020, 16:26
Tomas Rohga Tomas Rohga
Mais um conto excelente (e arrepiante). Parabéns
October 25, 2020, 03:03

  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    Obrigada Tomas! Só para avisar: Essa história não está mais no concurso, eu coloquei outra. Então se tinha os comentários contando com essa, talvez seja melhor comentar em mais uma só para garantir. Caso esteja participando. Boa sorte! October 27, 2020, 16:27
Lilac L. Lilac L.
Caramba. CA-RAM-BA. Eu realmente não sei bem nem o comentar porque minha cabeça ventrou num loop infinito. É como se a Leide estivesse fazendo o papel de Caronte e eu achei incrível demais! Sua escrita é muito boa e eu estou só SURTOS por dentro.
October 24, 2020, 19:03

  • Lorem K Morais Lorem K Morais
    Muito obrigada! Fico feliz que gostou da história e percebeu sobra o Caronte, me deixou muito satisfeita! Só um aviso: Essa história não está mais no concurso, eu coloquei outra. Então se tinha as comentários contando com essa, talvez seja melhor comentar em mais uma só para garantir. Caso esteja participando. Boa sorte! October 27, 2020, 16:29
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