Quando passava à encruzilhada das ruas Backer e Austin Moss, às cinco da tarde, voltando para casa, Sophia nunca ouvia o barulho do serrote. Ela nunca ouvia nada. Desde as carruagens rangendo contra as pedras irregulares da rua às risadinhas cascateantes nas calçadas, oprimida pela angústia, nenhum som a alcançava.
O sol pendia forte acima do horizonte, atrás dela, banhando os lábios risonhos a diante de rosa purpúreo. Sophia caminhava entre eles sem oferecer a nenhum uma olhada especial. Os rostos, já acostumados com o sol abrasivo, eram todos iguais, ficavam estáticos no mesmo lugar, dia após dia, como lápides fincadas no cemitério, conversando sobre o assunto do dia, o qual ela nunca se inteirava, ofereciam um tímido sorriso se viam-na passando e voltavam a conversa.
Gente estranha, dissera seu pai seis meses atrás.
Sophia repetiu aquelas palavras, olhou um rosto, um qualquer, outro e depois mais um, procurando um novo, com uma ruga de diferença seria o bastante, porém, em vez de encontrar, sentiu falta de alguns. Acontecia com frequência, rostos sumiam. Ela fez a curva na segunda esquina e estava na rua de casa. Os rostos ficaram para trás.
Naquela parte, o caminho estreitava, alongava, sussurrava... podia ouvir no farfalhar do próprio vestido o suspiro da irmã menor. Alice vinha piorando e o frágil escudo estava próximo de sucumbir a lança da morte. Há duas semanas, Sophia voltava para casa já prevendo encontrar o pequeno corpo embalado em lençóis mortuários brancos.
Metade da rua passada e o resto alongando-se, ampliando a opressão no peito, Sophia ouviu:
— Senhorita Friedrich?
Ela ignorou.
— Senhorita Friedrich? — A voz de um homem repetiu insistente. — Senhorita?
— Ahn? — Ela girou e um homem, um pouco mais velho, devia ter uns 20 anos, vinha atravessando a rua, acenando.
— Olá, senhorita.
— Olá... — Ela respondeu e não fez nada além de esperar o devido momento, decorrido no silêncio, para perguntar:
— Desculpe... Senhor...?
— Olivier. — O homem respondeu, puxando a cartola. Sua outra mão agiu, agarrando-a, e os lábios frios e tesos do homem pousaram na mão dela. — James Olivier.
— James Olivier... — Sophia repetiu. — Não nos conhecemos, estou correta?
— Pois, acabamos de nos conhecer! — Ele disse, rindo, um sorriso de um cavalheiro fleumático, vestido a caráter, que até seria bonito se não a impedisse de prosseguir.
— Sim... — Ela respondeu, mostrando seu sorriso morno de canto da boca. — É verdade.
— Bem, senhorita, minha família é uma das primeiras, vieram com o avô do sr. R... e a sua família chegou há seis meses, se não me equívoco.... Sinto muito pelas boas vindas tardia. Estive ocupado.
Sophia olhava um ponto indistinto na calçada, cordialmente evitando contato, tentada a ignorá-lo, o que seria um constrangimento mútuo, porém voltou a fitar o homem.
— Com o quê?
— Com o quê...? Bem, ocupações. Diversas ocupações. A senhorita nem imagina.
A resposta imediata seria "não". Os habitantes da colônia tinham vidas ociosas e despreocupas, movidas pelas mãos dos antigos donos daquela terra. Cada casa tinha no mínimo quarto par de mãos facilitando a vida, a casa dos Friedrich tinha cinco.
— Queira perdoar-me a grosseria... — Sophia disse, passado o devido tempo. — O senhor deseja algo mais? Tenho... coisa a fazer, se o senhor me entende.
— Oh...
Sophia sorriu.
— Sua irmãzinha?
— Sim...
— Ouvi falar. De que se trata?
— Os médicos disseram que é doença do coração, e estavam de mãos amarradas.
— Em Londres?
Ela acenou afirmado.
— Os médicos londrinos desistem fácil. Levaram-na ao nosso hospital?
— Não. Papai disse "o médico daqui dirá igual" e “deixe que o Deus todo poderoso decida o destino...".
O homem ofereceu um olhar complacente.
— Tem razão, o seu pai. Está na mão de Deus.
— Está, todos nós estamos, mas ainda acredito no poder dos homens. O outro médico poderia ajudar, talvez..., mas... ele vive viajando e ninguém diz onde ele mora.
— Não temos outro médico, senhorita. — Olivier disse. O meio sorriso de um acadêmico que explicava a um leigo quanto era dois mais dois completou as cinco palavras. — O hospital só tem um médico, uma enfermeira... e.… agora, uma aprendiz... nenhum enfermo, não ficamos doentes por aqui. Morremos, mas não adoecemos.
— Refiro-me ao Dr. Kupffer. É um amigo do sr. R. Não ouvi falar? Chegou de viagem mês passado. Estou procurando ele. O senhor não o viu?
— Não.
— Tem certeza? É um amigo do sr. R.
— Sim. — O homem respondeu. — Sugiro, senhorita, manter distância desse senhor. Aqui ninguém incomoda o sr. R e seus amigos...
James pôs a cartola acima dos cabelos castanhos, alinhados à perfeição.
— Até outro dia, senhorita — disse, cheio de cordialidade, e saiu apressado, balançando a cabeça em negação até tomar distância, entrando na primeira esquina.
Sophia imitou-o na direção oposta, contrariando a temeridade daquela gente em relação ao sr. R e todas as faltas de etiqueta do sr. Olivier, parando-a para conversar na rua, com o nada vigiando a conversa, sem nem ter a decência de acompanhá-la o resto do percurso.
Gente estranha.
Chegando no portão de casa, ela se deteve. O coração tentava saltar do peito ao sentir o hálito febril dentro da habitação. Em Londres, Alice costumava esperá-la no jardim durante as raras ocasiões em que saía, porém, aquela casa nem jardim tinha. Sem dúvida era o lar adequado para uma família em decadência, simples e conservada, feita de tijolos avermelhados, duas janelas altas pendendo irregulares como olhos acusadores e a porta dupla de rico adorno que abria como a boca de um gigante.
Um par de mãos escurecidas a recebeu na residência. Pertenciam a Kalung, ou Marun, ou outro nome qualquer. Sophia não fazia questão de guardá-los.
— Meu pai está em casa? — Ela perguntou, adentrando.
— Na sala... senhorita Fredricx... — O homem de pele escura respondeu, com um sotaque gutural de quem mal falava frases complexas no idioma, e baixou o olhar.
Sophia acenou, dirigindo-se até a primeira passagem, larga e livre de portas antes das escadas. No entanto, parou e iniciou o ritual diário. Alisou o cabelo, os fios negros como carvão, endireitou o vestido azul, um puxão aqui, outro ali, pôs a mão direita em cima da mão esquerda, formando uma concha à frente do abdômen, respirou fundo e, só então, entrou.
Johann Friedrich lia compenetrado o jornal do dia anterior em seu trono pessoal, virado na direção da janela, contrário à porta. Sophia não via o rosto do pai. Daquele ângulo, apenas a borda do papel amassado, devido ao jeito brusco como ele o pegou antes dela entrar, era visível atrás da poltrona.
— Olá, meu pai. — Sophia usou o máximo de polidez e impessoalidade naquelas três palavras. Era parte importante do ritual.
— Olá. — Johann respondeu, os olhos grudados na notícia do dia anterior. — Atrasou-se hoje...
— Sim.
— Como se saiu nos.… estudos?
— Bem. Me saí bem. — Foram as palavras escolhidas. Agoniada naquela posição, o mal humor dele se tornara uma barreira espinhosa desde a piora de Alice e, nos últimos dias, ela vinha tentando diminuir a duração daquela conversa.
Sophia esperou os segundos necessários para uma resposta do pai, que não vinha com frequência, abriu a boca tencionando finalizar o ritual...
— Como vai o bom doutor?
— Passa bem.
— Passa bem. — Ele repetiu, largando a mão direita do jornal para ajustar os óculos quase caindo do nariz. — Que seja... Passa bem. Sua irmã ardeu de febre depois do almoço... coitadinha.
Sophia ouviu a folha do jornal virar, esperando o fim da longa pausa no revirar da próxima página enquanto ele saboreava os segundos, lia e relia a primeira notícia porque poderia mantê-la no canto como um jarro de flores murchando durante horas.
Johann inclinou os cabelos de um amarelo-milho, observando o reflexo na jarra de prata polida depositada na mesinha, onde outros jornais esperavam a vez. Virou a página após retomar a leitura.
— Deseja ver sua irmã agora?
Ela acenou, desnuda de palavras.
— Vá, então. — Ele disse, como se enxergasse a resposta.
Sophia agarrou-se a etiqueta, a qual estava acostumada a se submeter desde os cinco anos, deixou a sala e ouviu o jornal sendo depositado na mesinha. Sentia um distanciamento profundo daquele homem há tempos, a cortesia pedia o título de "meu pai", mas ele se tornara um estranho com suas desconfianças infundadas, pois quando se sentiu impotente e rejeitado arrastara a família àquela terra de gente estranha, no incipiente território africano, guiado apenas pelo simples prazer do domínio.
A casa em Londres enchia-se de vida, de sorrisos verdadeiros e do calor humano nas tardes de verão, comparando-a a atual habitação, vivia numa cripta mortuária fria e soturna. Se alguém falava à porta, o eco açoitava até o primeiro andar e quando usavam as escadas, acompanhando, o rangido dos degraus anunciava sua aproximação.
Casa estranha.
Os pés de Sophia subiram sobre os degraus, dedos percorrendo teclas de piano jamais teriam tamanha delicadeza. No entanto, o rangido estava presente. Alcançando o quarto da irmã, o coração acalmou-se e o medo sumiu. Viver aquela cena todos os dias, antes da própria acontecer, envolvia o momento crucial numa ternura gélida, pois, na próxima cena, ela e a irmã estariam em paz independente da conclusão.
Sophia abriu a porta.
Duas velas combatiam a escuridão no recinto, à direita e à esquerda, guardando a cabeceira da cama. As chamas dançavam criando figuras demoníacas nas paredes, avivando as sombras no lençol, o rosto ossudo da menina minava uma fina camada de suor, o busto erguia-se e recuava em lentos suspiros.
Aos quatro anos, Alice costumava atrair olhares de admiração nos círculos sociais de Londres. Uma delicadeza comum na realeza, sua mãe dizia, mas difícil de encontrar fora do palácio. Sophia discordava. Alice era uma criança como outra qualquer, brincava, corria e dava saltinho, abandonando a delicadeza sempre que provava os vestidinhos encomendados pela mãe. Mas cinco anos depois, aquela Alice cheia de vida se tornava uma sombra longínqua.
Sophia deitou a mão no cabelo louro da irmã. Sua mãe, cujos fios também levavam o brilho do ouro, explicara para ela, no dia em que Alice nascera, ser comum o cabelo escuro somente nas mulheres primogênitas da família. Johann tinha outra opinião, mas mantinha guardada para si. Sophia nunca vira a tia mais velha para confirmar qual dos dois estavam certos.
— Pobrezinha... — Ela disse, permitindo o orgulho, a tristeza, a raiva e um manancial de sensações escapar fundido às lágrimas.
Se o destino da irmã residia nas mãos de Deus, não fazia mal apelar a bondade dele. E ela sempre apelava.
Ajoelhada à beira da cama, Sophia uniu as mãos. O murmúrio das orações sepultou o silêncio durante vários minutos, até parar sem aviso, as mãos ainda unidas e a oração presa na garganta.
Nos últimos dias... não... nos últimos meses, tudo decorrera igual e continuaria naquela rota se uma das duas não fizesse nada a respeito. Alguém precisava ceder. Tirando a alegria no dia e o descanso à noite, não havia razão para continuar, viver se tornara uma valsa eterna sobre cacos de vidro, os pés descalços se contorciam sangrentos, o corpo gritava de dor, mas a dança jamais encontrava seu fim, pois o fim era morte.
Sophia balançou a cabeça, censurando o pensamento. Debruçou-se e beijou a testa em brasa da irmã. Seus lábios comicharam e ela mordiscou ambos. No mesmo instante, sentiu o gosto salgado do suor e daquele aprisionamento tocando a língua, descendo garganta abaixo, apertando no peito.
Ela saiu do quarto limpando a boca com uma das mãos.
Uma voz masculina saltou de imediato nos ouvidos dela, átona e compassada como o silvar do vento e, em seguida, o sorriso bajulador do sr. Friedrich surgiu no topo da escada conduzindo um desconhecido.
O homem, beirando os cinquenta anos, trazia as feições neutras da realeza, que poderiam ser tanto de alegria, tristeza ou raiva, porém também levava as roupas simples e desajeitadas de um qualquer. Em Londres, inúmeras vezes ouvira desprezo na voz do sr. Friedrich respondendo a vaga menção de pessoas desajeitadas.
Até os imundos devem portar-se bem, ele dizia.
— Por aqui, senhor. — O anfitrião disse, apontando o quarto de Alice como se não existisse ninguém a mais no corredor.
Sophia se deteve na porta. Implorava para ir, mas o corpo escolheu ficar. Ela interrogou o rosto do homem que chamava de meu pai, mas o gesto não foi recíproco e nenhuma resposta veio do semblante, agora, irritado. Voltou a fitar o homem desconhecido.
— Olá, senhorita.
— Olá... — Ela respondeu, com voz falha, incomodada daquele homem comum receber o sorriso bajulador, o mais raro, visto somente duas ou três vezes por ano.
Johann pigarreou.
— Está é.… minha outra filha, Sophia.
— Sophia... — O homem sorriu e o bigode de um preto acinzentado agitou-se como um morcego ferido. — Olá, Sophia.
— Olá... — Ela repetiu. E baixou o rosto, repreendendo-se por agir como uma tonta.
— Sou pobre o doutor Johann Kupffer.
Sophia soltou uma exclamação contida, permitindo um sorriso escapar de seus lábios salpicados de sal. A vida oferecia um sopro trazendo aquele homem a sua casa. Após tanto tempo, algo acontecera. Novos dias alegres e noites descansadas viriam, fosse qual fosse o resultado, a valsa teria um fim.
— Deixe-o passar. — O sr. Friedrich ordenou.
Um passo para lado, Sophia deixou o homem entrar no quarto.
Ela ainda não ouvia o barulho do serrote.
Merci pour la lecture!
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