Varria de um lado para o outro; os papéis de bala deixados ali pelos visitantes que não tinham o menor senso de educação eram levados juntamente com as embalagens, pulseiras de entrada e sabe-se lá mais o quê. Depois de anos trabalhando como zelador no Aquário Municipal — exatamente longos quarenta e dois anos —, Jorel já não se importava mais com as coisas que iam para o lixo, no final seriam descartadas.
O plano inicial era aceitar o trabalho para pagar a faculdade de Arquitetura, mas o jovem, de vinte anos na época, não contou que sua área iria sofrer baixas e arranjar emprego seria impossível. Não contou também que ficaria acomodado no cargo e que hoje em dia ainda estaria exercendo a mesma função de anos atrás.
Jorel não se orgulhava, na verdade, tinha vergonha dessa parte da sua vida. Havia desistido de um sonho e hoje se contentava com o que a vida tinha lhe dado: o básico. Era grato, claro, mas fingia para si mesmo que nunca teve oportunidades para crescer na profissão.
Apesar de tudo, algo interessante aconteceu e “ele” observava o homem de boina varrer naquele exato momento por trás do vidro grosso que se estendia por todo o salão da “sereia ametista”, como foi dito pelos visitantes devido a coloração arroxeada e brilhante presente por toda a pele da criatura. Jorel não sabia o nome científico dela, mas estava lá quando o Urso Polar perdeu os holofotes para a sereia estranha anos atrás. Pensando bem, o zelador nunca achou realmente que o peixe colorido se assemelhava a criatura encantadora que enganava homens tolos, exceto pela cauda de peixe que lhe substitua as pernas, era apenas um modo de definir aquilo que flutuava na água. Nos primeiros dias, Jorel chamou de "mancha aquática", mas após alguns meses passou a usar o apelido mais comum a fim de facilitar ao se referir ao bicho. O peitoral desnudo e reto fazia os visitantes chamá-lo de “ele”, mas Jorel não tinha certeza disso, pelo menos, nunca teve uma confirmação dos biólogos marinhos que estudavam a criatura todo santo dia.
A princípio, Jorel teve medo da face reta, sem boca, nariz ou orelhas, apenas com dois círculos negros que o engolia caso olhasse por muito tempo. Teve medo dos ossos da costela complemente expostos e da vértebra que sustentava o busto e fazia ligação com a cintura; além dos corais no topo da cabeça que se espalhavam pelo restante do corpo, isso não poderia ser natural! Ficou indignado com os espinhos que lembravam pedras, verdadeiras joias, presentes por todos os ossos visíveis, ombros e calda; mas, principalmente, teve medo do som que fazia quando um visitante corajoso o olhava fixamente e ia embora, som este que repetia quando ele ficava sozinho.
Apesar de tudo isso, hoje em dia, Jorel já não se incomodava mais — como tudo em sua mísera vida. Varria perto do aquário e nem se importava com a criatura lhe olhando tão próximo, com as mãos de dois dedos grudadas no vidro temperado, como se aquilo fosse a coisa mais interessante que havia visto durante toda a sua vida. A aproximação era tanta, que Jorel conseguia ouvir sons estranhos e indecifráveis vindo dele, parecidos com murmúrios; gostava de imaginar que ele queria conversar, mas Jorel não iria falar com uma criatura dessas, não. Ou iria?
Varria de um lado para o outro. O cômodo estava vazio, apenas as luzes do aquário clareavam o salão, que sempre se manteve em uma temperatura gélida. O bicho encarava o homem de boina, nadava junto com os passos que o zelador dava e o olhava fixamente.
— Eu poderia te dar a vassoura, quer? — A criatura, como esperado, não disse nada. Jorel riu de si mesmo por estar falando com ela.
Voltou a varrer, agora olhando de relance para o bicho no aquário gigante. Era triste vê-lo preso ali, sem ninguém ao seu lado. De certa forma, ele e a criatura eram semelhantes, afinal, Jorel não tinha ninguém o esperando em casa além da cacatua, que, ironicamente, também estava presa em uma gaiola.
Riu abafado de sua própria hipocrisia.
Pela primeira vez em anos, Jorel parou de varrer e olhou com atenção nos olhos negros que já o observavam há tempos. Era uma criatura extremamente bonita, embora fosse uma beleza muito exótica e assustadora, chegando a gerar calafrios no senhor. Olhando assim, tão de perto, o zelador conseguia ver ali um vazio enorme refletindo na escuridão daquelas orbes escuras, uma sensação próxima a de solidão. O que Jorel não imaginava, era que esse sentimento não vinha apenas do peixe estranho mas dele também.
A criatura colocou a mão no vidro, parecia compreender a situação.
— Até que você não é tão assustador assim — murmurou, voltando a varrer e se divertindo com as acrobacias que a criatura fazia para chamar a atenção.
Se Jorel soubesse que em poucos dias não poderia ver mais a criatura devido a uma doença séria que estava desenvolvendo naquele momento, não iria fazer amizade com ela ou fazê-la se apegar. Se ele soubesse que morreria no hospital público da cidade e que a criatura ficaria lhe esperando para varrer o salão durante os próximos anos, Jorel jamais teria interagindo com ela a fim de evitar mais um sofrimento para ela, que já acreditava ter criado uma relação em meio àquele mundo totalmente diferente do seu.
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