5 de setembro de 1938.
O Chefe de Polícia estava diante do documento, prestes a assiná-lo. Foi a porta de seu Gabinete, aberta bruscamente, que o impediu. Por ela entrou seu assessor, apressado e ofegante, com uma pasta cáqui debaixo do braço.
- A questão do Haníbal foi resolvida - disse ele, lançando aquela pasta sobre a imponente mesa de mogno do Chefe de Polícia.
Era quase meio dia, e o sol entrava pela janela lateral, lançando a silhueta de ambos contra a parede. Os homens eram quase idênticos: cabeça quadrada, óculos redondos, postura austera.
O Chefe de Polícia abriu a pasta e leu o cabeçalho:
- Foram os Caçadores? - perguntou ele, positivamente surpreso.
O assessor puxou a cadeira e se sentou – Não – respondeu, folheando o documento até encontrar uma das fichas anexas, para a qual apontou com o dedo indicador.
- Esta mulher? - perguntou o Chefe de Polícia, depois de verificar o documento - Deu cabo do problema? Sozinha?
- Isso mesmo.
- Explique.
- O DOPS-MG encontrou Haníbal numa cidadezinha chamada São Lázaro, mediante denúncias. Os moradores estranharam o sujeito forte, caladão e de sotaque pelas redondezas. Dois investigadores passaram a segui-lo, mas, considerando o histórico do alvo, temiam tentar prendê-lo.
O histórico do fugitivo era, de fato, impressionante. O Chefe de Polícia ajeitou os óculos no rosto e lembrou do que havia ocorrido meses antes. Após intenso combate no Palácio Guanabara, Haníbal era o único combatente ainda de pé, entre os homens que comandara no ataque, todos tombados. Rendido nos gramados da residência presidencial, ele estava orgulhosamente paramentado com a farda integralista. Foi colocado dentro do camburão por outros três brutamontes de boina vermelha, agentes da Polícia Especial, e, lá no camburão, esperou calmamente por cerca de 20 minutos. Quando a viatura parou num sinal, um dos policiais que o acompanhava, viajando de frente para ele, acendeu seu cigarro. Habinal então destroçou-lhe o maxilar, chutando-o com o pé calçado de coturno. Depois, quebrou o nariz do guarda a sua direita, com uma cotovelada.
O assessor prosseguiu com o relato - Os Caçadores foram acionados e, junto ao DOPS-MG, começaram a traçar uma estratégia para emboscar o capitão Haníbal.
"Emboscadas não são boa ideia" pensou o Chefe de Polícia, lembrando-se de outro episódio envolvendo Haníbal. Ele estava na Estação Central, quando dois investigadores anunciaram-lhe a prisão. Foram nocauteados com um golpe fulminante da pesada bolsa, cheia de armas e munições, que Haníbal trazia consigo. Mesmo com aquela carga, e com uma mochila igualmente carregada às costas, o brutamontes correu em meio aos transeuntes, aproveitando-se da aglomeração que impedia a mira de outros investigadores, espalhados pela estação.
- Sabendo que o sujeito nutria fanatismo à raias da loucura – contava o assessor - e era dotado de assombrosa noção de combate, o comandante dos Caçadores pediu que Belo Horizonte enviasse uma agente que ele conhecia "de outros carnavais".
- Esta tal de Lúcia, presumo.
- Positivo. O comandante já a conhecia antes de ser recrutada pelo DOPS-MG. Atenderam a solicitação, e puseram em prática um plano sugerido por ela mesma.
Conforme a narrativa do assessor, o Chefe de Polícia ajeitava novamente os óculos, e ia reconstituindo mentalmente cenas: era terça-feira, pela manhã, e Haníbal vinha pela movimentada rua principal em direção à mercearia. Dois investigadores observavam-no, um da confeitaria, outro do botequim. Súbito, a tranquilidade da cidadezinha foi interrompida, quando os transeuntes na rua viram uma mulher sendo posta para fora de um prédio, trazida pelos braços por dois guardas locais.
Haníbal observou a cena, da mercearia. Da confeitaria ao outro lado da rua, o investigador, que não tirou os olhos de Haníbal, percebeu o imenso soldado cerrando os punhos, e podia jurar que também escondia os dentes rangendo dentro da boca. Claramente fitava a moça de saia negra, camisa verde oliva e faixa azul no braço. O Chefe de Polícia por si mesmo concluiu que a farda que ela vestia, da ala feminina da Ação Integralista, trouxe à memória de Haníbal os orgulhosos desfiles integralistas do qual tomava parte.
Haníbal saiu da mercearia, entrando num beco e dando a volta no quarteirão. Chegou de frente para os guardas, e um deles sacou o cassetete. Tomando-o pelo pulso, Haníbal afundou-lhe o nariz com um soco. A mulher não titubeou e pisou na canela do outro guarda, que segurava-lhe o braço, chutando-o depois no rosto. Tomada pela mão, correu com Hanibal em direção aos morros em volta da cidade.
- O que aconteceu? – perguntou Hanibal, afastado com a moça em meio à mata.
- Alguém me delatou – respondeu ela, ajustando uma mecha de seus cabelos negros no coque militar que ostentava – me pegaram arrumando os arquivos e materiais da Ação, que mantínhamos no porão daquele prédio no Centro. Mas...quem é você? Por que você me socorreu?
- Anauê! – respondeu Haníbal, recebendo dela um sorriso, seguido de donzelesco suspiro.
O clima não durou muito - Você perdeu o juízo? – perguntou Haníbal, puxando-a pelo braço – vestir-se assim depois que declararam a Ação ilegal?
Ela baixou os olhos, contemplando vagamente o chão - A Ação ainda vive se mantemos ela viva – respondeu, olhando em seguida nos olhos de Haníbal – e não estou disposta a deixá-la morrer. Toda semana eu descia àquele porão, vestia meu uniforme, e punha em ordem os livros, panfletos e revistas de nossa célula em São Lázaro. Continuei fazendo isto. E não vejo razão para parar de fazê-lo!
Haníbal então percebeu mulher para além da farda. Olhos negros, lábios acentuados, candura no semblante.
- Eles vão nos encontrar se permanecermos aqui – disse ele, tomando-a pela mão.
- Hei, moço, para onde está me levando? – perguntou ela.
Haníbal não respondeu. Levou-a pela mão, atravessando o matagal até chegarem num casebre de paredes descascadas e janelas de madeira trancadas. Adentraram, e lá dentro ela pôde ver uma bandeira da Ação Integralista Brasileira na parede, um colchão no chão, e pouco mais que isso entre as paredes.
Haníbal logo chegou de outro cômodo, trazendo uma grande bolsa na mão e uma mochila nas costas.
- Imagino que nunca atirou antes - disse ele, abrindo a bolsa e dela tirando uma metralhadora, a qual municiou.
- Aprendo o que tiver de aprender – respondeu ela.
- Ótimo – ele tomou um revólver, também da bolsa, carregou-o e entregou para a mulher - Vamos voltar à cidade, roubar um carro e invadir o porão. Salvaremos o que pudermos salvar.
- De acordo!
- Vamos!
Ele ia saindo pela porta, quando foi chamado a atenção.
- Hei! – ela apontou para a parede – vai deixar a bandeira aqui?
Haníbal suspirou, constrangido. Deixou a bolsa na porta, ao lado da mulher, e foi na direção da parede onde estava aberta a bandeira.
O barulho do tiro estrondou pela casa e pela mata.
Os miólos de Haníbal se espalharam em sangue sobre a flâmula, tão logo pôs nela as duas mãos para, reverentemente, retirá-la da parede. Diante dos olhos da mulher, parada sob as ombreiras da porta de revólver em punho, o cano da arma fumegava.
Daquele jeito o Chefe de Polícia imaginou a última cena narrada pelo assessor:
- A tal mulher adivinhou que Hanibal iria confiar nela, e ainda por cima lhe dar uma arma? - perguntou ele.
- Não. Ela pediu três dias para ganhar a confiança dele, descobrir onde estavam as armas e, enfim, eliminá-lo. Mas, a oportunidade faz o ladrão...
- Ótimo – o Chefe de Polícia fechou a capa do prontuário e colocou-o sobre a mesa, ao lado do documento que estava prestes a assinar – e por que se deu o trabalho de vir correndo aqui me reportar isto?
O assessor pegou de volta o prontuário.
- O senhor já assinou a Portaria 4.430? – perguntou ele.
- Você me interrompeu quando iria fazê-lo.
- Então... – foi a vez do assessor ajeitar os óculos no rosto. – ...arredonde o número de 199 para 200 agentes – sugeriu ele.
Vigilantes, lendas urbanas, espíões e vilões no Brasil dos anos 20-50 En savoir plus Pulp Heroes Brazil.
Merci pour la lecture!
Nous pouvons garder Inkspired gratuitement en affichant des annonces à nos visiteurs. S’il vous plaît, soutenez-nous en ajoutant ou en désactivant AdBlocker.
Après l’avoir fait, veuillez recharger le site Web pour continuer à utiliser Inkspired normalement.