Baltazar estava farto! Enjoado de todos os dias se ver
obrigado a engolir aqueles cubinhos enfadonhos e
repugnantes a que chamavam, deprimentemente
comida. Jurara vezes sem conta que não mais iria comer
aquelas refeições, feitas das mais suculentas partes da
vaca, da mais deliciosa galinha ou do peixe mais fresco
dos oceanos, que ele sabia bem serem uma data de
mentiras, escritas em vulgares latas cheias de cor e
imagens ilustrando gatos estupidamente saudáveis.
Meu Deus! Como odiava aquele aparato publicitário, onde as
ditas refeições, manipuladas artificialmente,
aparentavam um tal aspeto que fariam qualquer humano
as desejar secretamente.
A dada altura já pouco comia.
Limitava-se a questionar indignado junto do seu bonito
pratinho de porcelana, onde estaria a semelhança entre
o pedaço regurgitado que tinha à frente e a tão
proclamada iguaria conventual. Certo é que, para mal
da sua espécie, continuavam a enganar donos idiotas que
acreditavam piamente estarem a dar aos seus “gatinhos”
o melhor gourmet do mundo. E como todos os humanos,
que vêm o que é bom com os olhos e não com o
paladar...
Revoltou-se realmente quando certo dia, do telhado de
sua casa, reparou no terrível cão da vizinha, mastigando
vorazmente a sua refeição da manhã. Baltazar vira nos
seus olhos toda a expressão da felicidade. Alarvemente,
num prazer quase pecaminoso, o brutal cão parecia-lhe
ao longe, manter um leve sorriso de troça, como se se
tivesse apercebido da sua cobiça. “Maldito brutamontes!”,
pensou, enquanto cravava com força as garras
afiadas nas pobres telhas cor de laranja.
Não sei se era por já não comer há uns dias, mas certo é
que já sonhava com Max a devorar aquelas pratadas de
biscoitos crocantes, ao som de belas melodias
encantadoras e muitos passarinhos à sua volta. Quando
acordava dos seus devaneios, corria para o telhado e
fixava-se horas a fio sem despregar olho daquele
reluzente prato metalizado, que lá estava, imponente,
poisado no jardim do lado. À medida que o tempo
passava e a cena se repetia, ficou definitivamente
obcecado. Tão obcecado que tinha resolvido que iria
comer da comida do cão, nem que lhe caíssem os
bigodes!
Faltava arranjar um plano para o fazer sem que Max
se opusesse no seu caminho, e nem quero imaginar se
isso acontecesse. Max era daquele tipo de cão com cara
de porco e uma baba incessante ao canto da boca, que
realmente lhe dava um aspecto muito pouco atractivo,
para não mencionar a sua imensa massa corporal,
disforme tipo sapo, que nada o favorecia quanto à
elegância. Na realidade um autêntico aborto avantajado,
que a natureza, maldosamente nos deu a contemplar.
No início, limitou-se a pensar, em círculos contínuos,
como uma mosca de asa amputada, em agonia, sem
compreender porque não consegue atingir os céus em
direcção ao monte de esterco mais próximo. Depois
trabalhou horas a fio, rascunhou centenas de planos,
maquinando até à exaustão. Nada o levava à tão
desejada refeição sem que Max estivesse por perto. É
que sempre que havia comida na taça, havia Max
debruçado sobre ela, e quando a besta disforme não
estava por perto, tambem não valia a pena lá ir, pois
Max conseguira aquele mimo de corpo pouco
convencional, às custas de uma fome
impressionantemente devoradora. Fussangava até a
última migalha.
Tornava-se bestial assistir a uma
refeição daquele animal adorado quase ao fanatismo
pela sua única dona, que já há muito enviuvara.
Baltazar sufocava em ansiedade, a sua obcessão
encontrava-se no limiar da loucura. Na sua cabeça só já
existia uma maneira de atingir os fins, que por muito
brutal e sanguinária que fosse, já não o levariam atrás.
Se era a única maneira, que assim fosse! Coitado, tinhase
tornado num gato completamente perturbado.
Ultimou os últimos preparativos na cave da sua casa. Na
penumbra de um dos cantos, tornava-se assustador vê-lo
limpar o tambor da magnum 45 que ele havia
desencantado algures, com os olhos baços e
esbugalhados que pareciam sair das órbitas. Estava
magro que nem um cão, isto se nos lembrarmos que Max
já não era bem um cão.
Atuaria na manhã seguinte.
O sol começara a despontar lá fora, na sua cabeça a
manhã tinha demorado uma eternidade a chegar. Não
pregara olho a noite inteira, limitou-se a ficar aninhado
sem se mexer, no mesmo canto húmido da cave
subterrânea onde se tinha refugiado, com a arma
carregada, firme entre as suas patas trémulas da
fraqueza a que tinha chegado. Sabia que teria que ser
rápido e frio a agir, pois ao mínimo descuido, ao mínimo
toque de consciência, Max poderia ser-lhe fatal.
Imaginar-se retalhado, perfurado até aos ossos, por
mandíbulas e caninos monstruosamente pré-históricos,
era algo que lhe provocava um medo que lhe invadia os
nervos.
“Sem alma, sem piedade...”, dizia em voz baixa para si
mesmo, interiorizando o espírito da coisa, enquanto
caminhava decidido e cauteloso através do último terço
do gradeamento que separava os dois jardins vizinhos.
Quando chegou ao fim, respirou fundo duas ou três
vezes, lançou um olhar furtivo para se dar conta do
terreno inimigo, e ver se a velha bruxa já despejara o
mal da sua loucura no prato do seu queridinho, que
estava prestes a ir para os anjinhos, (aposto que a velha
iria levar aquilo como um novo enviuvamento.)
Finalmente chegara a hora mais dramática. Empunhou a
arma e saltou em direcção ao cão, determinado e
alucinado como nunca se tinha visto um gato. No
primeiro momento da ação o bicho nem reparou, tal era
o estado de hipnose a que a paparoca o sujeitava, mas
logo sentiu a fúria de Baltazar quando este lhe deu um
valente pontapé rotativo, certeiro no seu focinho já de si
achatado. Partindo-lhe os dois caninos superiores e de
queixo à banda, Max nem teve tempo de cambalear, logo
de seguida já tinha o canhão apontado entre os olhos.
Haviam de lhe ver o focinho nos momentos que se
seguiram. Um rio de mijo descontrolado escorria-lhe
pelas patas a baixo, num pranto miserável agarrado ao
pêlo de Midas. Até pela mamã chamou. O gato nem
queria acreditar no triste e deplorável espectáculo que
aquele bruta-montes estava a dar. Nunca lhe tinha
passado pela cabeça que iria ser assim. Por instantes o
felino vacilou, por momentos quase ia tendo pena...mas
foi só por momentos. Bastou-lhe premir o gatilho uma
vez para espalhar a mioleira de Max sobre uma vasta
área de relva verdejante.
Estava feito! Iria finalmente provar o sabor da vitória,
que se encontrava totalmente desprotegida sobre uma
taça de inox que até lhe pareceu mais reluzente e
admirável. Ainda nem estava bem a acreditar que o tinha
realmente conseguido, e da expectativa ao momento da
confirmação foi um instantinho. Meteu à boca o primeiro
biscoito de cão e...era maravilhoso! Um paladar único,
crocante, intenso, derretia-se devagarinho na boca
permitindo uma degustação prolongada de elevado
prazer sensorial.
Como qualquer bom assassino, Baltazar não resistira a
assistir ao funeral da sua vítima. A “viúva” estava com
um ar desolador, no meio de outros presentes, amigos da
“família”. Max encontrava-se num pequeno caixão
transparente, em fibra de vidro, desenhado na Alemanha
especialmente para si. Não deixava de ser macabro,
vistos que se encontrava sem cabeça, impossível de
reconstituir. Em substituição colocaram uma batata,
talvez para lembrar que o bicho não era completamente
destituido de cérebro. De qualquer forma foi um funeral
com pompa e circunstância, cheio de flores, alguns ossos
e muitos gatos embalsamados, atirados para o fundo da
campa à medida que um padre, verdadeiro, vindo
directamente do Vaticano, se esforçava para nos falar de
um suposto paraíso canino, onde Max seria feliz para
sempre, rodeado de belos campos abastados de enormes
colinas de comida gordurosa e infinita. Entre estes e
outros encantos dignos dos mais profundos sonhos de um
cão, a “viúva “ resolveu desmaiar.
Nos dias que se seguiram ao tão comovente enterro, a
situação tinha-se tornado alarmante. A quantidade de
cães brutalmente assassinados já tinha ultrapassado uma
dúzia, sem contar com os efêrmos que definhavam à
fome por falta de ração. Desaparecia do mercado de uma
forma misteriosa a uma velocidade vertiginosa, deixando
atrás de si um rasto de caos e anarquia. A polícia parecia
desorientada e sem saber como reagir. Não tinham ideia
do que estaria por de trás de tamanha acção de violência
e horror.
Quando finalmente as autoridades resolveram agir e
investigar sobre tão profunda crise, o número de vítimas
tinha já quadriplicado. Foi decretado estado de
emergência canino em toda a região. As organizações
internacionais abriam corredores humanitários e
pequenos campos de refugiados eram montados para
acolher matilhas imensas de vira-latas. As consultas
psiquiátricas dispararam em flecha, com cães e outros
animais em profunda depressão e estado de choque. As
raças mais pequenas sofriam sobretudo de violentas
cólicas nervosas. Os donos, esses, passaram a dobrar as
suas doses de xanax e outros sedativos que há anos
estavam habituados a tomar.
Baltazar não conseguia parar, encontrava-se cada vez
mais diabólico, mortal e atingira uma proporção física
deveras impressionante. A sua cave tinha-se tornado, por
assim dizer, um autêntico bunquer pós-holocausto. Havia
sacos de ração por todo o lado, atulhados até ao tecto.
Também tinha conseguido um autêntico arsenal de armas
de que se servia todos os dias: granadas, minas,
matracas, catanas, diversas armas de fogo, soqueiras
(que eram muito do seu agrado) e até um novo lançarockets
desmontável, já estreada sobre um aristocrata
cocker Irlandês. Cada biscoito que punha à boca era um
incentivo para continuar a alimentar a sua loucura e a
consequente chacina, e claro, o próprio arcaboiço. Quem
o visse assustava-se, Baltazar tinha perdido toda a
aparência de um gato e deveria agora pesar cerca de uns
trinta quilos e ter o triplo do tamanho normal. O focinho
estava áspero, o pêlo perdera todo o brilho e o andar
pesado e desajeitado davam a entender todo o seu
aspecto criminal.
Já só saia de noite, o que tornava a sua missão mais
difícil, mas não podia arriscar mais. Era um gato
procurado. Haviam gangs de cães revoltados e ferozes
por todo o lado, sedentos por fazer justiça com as
próprios mãos. Em toda a cidade circulavam cartazes
anunciando chorudas recompensas por informações
crediveis, que ajudassem as autoridades à sua
identificação e consequente detenção. Passaram a
Chuver o mais variado tipo de estórias e testemunhos,
contava-se a verdade e a mentira. Do mais ridiculo ao
espectacular havia relatos para todos os gostos. Eu
próprio vos conto um episódio dos ultimos dias de
Baltazar, fidedigno e uma verdadeira narrativa de
horror. Uma estória dramática de roubo, violação e
crime que acabou no espancamento até à morte de um
indefeso caniche. Num daqueles fins de tarde em que as
noites caiem depressa, uma inconciênte velhinha,
passeava o seu boby lá para as bandas do tropical jardim
municipal, que é de plástico para poupar nos custos de
manutenção. O ritual era alegre e habitual. Enquanto o
“pantufa” se aliviava nas imediações, a senhora lá ia, um
pouco mais atrás, contemplando as bonitas bananeiras
made in Taiwan, apanhando de quando em quando os
cocós civicamente, que a merda de cão nos jardins
públicos não é de facto um presente desejável.
Subitamente apercebeu-se da presença de uma terceira
entidade. Um ser negro, enorme, de arfar pesado e
fantasmagorico aproximava-se nauseabundo e predador
nas costas do cachorro. Paralizada e cheia de cagaço
ainda ensaiou um aviso ao distraido “lambe cona”. Nem
um subliminar grunhido gotural se lhe escapou da goela.
O resto já vocês podem imaginar, um salpicado de pintas
vermelhas na doce penumbra da noite...
Baltazar o monstro infernal, Baltazar o insaciavel. Como
foi possivel? A mente de um felino é misteriosa! A velha
senhora essa continua incontinente, presa para sempre á
cama de um qualquer lar ilegal e deprimente.
Tudo chegaria ao fim, e realmente chegou. Certa noite,
tinha Baltazar vindo de mais um bem sucedido ataque
nocturno, quando chegou o intendente da polícia e mais
um reforço do 15º batalhão das forças especiais do
regimento local, que lhe cercaram a casa. Tinham-lhe
finalmente descoberto o covíl. Lá de fora fez-se ouvir um
estridente som de megafone, dizendo-lhe que a casa
estava cercada e que se rendesse. Ouviu também uma
série de mentiras, (que iria ter um tratamento justo, que
não haveria violência contra ele...), balélas! O seu
coração batia a um ritmo acelarado e empunhou de
imediato a arma que trazia sempre junto a ele. Lá fora,
juntara-se ao som das sirenes um imenso ruído de uivos e
latidos de cães que lhe entravam na cabeça e lhe
consumia os nervos. Assustava-lhe mais a ideia de um
linchamento às mãos de uma matilha de cães em fúria,
do que a própria polícia e todo o seu aparato militar,
afinal não existiam leis para julgar e punir felinos. Estava
pronto a ripostar caso fosse necessário, não estava
disposto a entregar-se assim tão facilmente. Tinha-se
tornado uma máquina de guerra versão felina. Encostouse
a uma das esquinas mais escura e protegida por uma
barreira de sacos de comida. Bátegas de suor do tamanho
de morangos emanavam do seu rosto, os seus olhos
reluziam como faróis de um camião prestes a atravessarse-
nos no caminho. A sua cabeça processava a duzentos
hora sem por isso conseguir reagir. A expectativa
provocara um silêncio tumular, apenas se vislumbrava
um imenso emaranhado de holofotes que se cruzavam
irrequietos.
A polícia nunca chegou a agir, pois Baltazar suicidara-se.
Não por covardia, mas sim por outra razão. Enquanto
estivera encurralado no seu próprio esconderijo,
agonizando por uma solução de fuga que era quase nula,
um dos sacos da barreira que o protegiam caiu no chão,
pondo a descoberto a literatura dos ingredientes que
faziam aquelas tão soculentas refeições, as mesmas a
que ele se predispusera fazer tudo para obter. Ao lê-las,
quase por acaso, ficou chocado com a tremenda
revelação que lhe foi dada a conhecer.
Não conseguiu evitar as lágrimas , um miado de
desespero saiu-lhe das mais profundas entranhas
enquanto escorregava lentamente encostado à parede
em direcção ao chão. A penumbra encarregou-se de dar
um aspecto ainda mais dramático à cena. Encostou a
arma à nuca e balbuciou umas últimas palavras antes de
premir o gatilho, “como seria possível aqueles biscoitos
serem feitos com restos de gato!...”
TF.
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