jagutheil Julio Gutheil

Um homem escondido do mundo é atormentado por seu passado.


Cuento No para niños menores de 13.

#horror #terror #fantasmas #loucura
Cuento corto
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O Latido dos Cães de Caça

Amanhecia mais um dia sem sol. A mesma coisa das últimas três semanas.

Eu não tinha dormido, nem nessa noite nem nas outras três ou quatro; acho que perdi até a noção do tempo. Passei toda a madrugada na poltrona antiga que um dia fora do meu avô. Ela cheira a mofo e a velhice. Mas nem isso me fazia sair dali, já que todas as quatro garrafas de uísque barato que tinha tomado já estavam ali do lado mesmo, na pequena mesa capenga e cheia de cupins vorazes que não se saciavam da madeira apodrecida.

A escuridão daquela sala abandonada aos poucos se dissipava, dando lugar ao cinza mórbido do novo dia miserável que nascia. Mal me mexia, com o pescoço duro, olhando sempre para o mesmo ponto escuro da parede descascada. Meus olhos estavam congelados, não piscavam, e pela minha mente somente passavam as assombrações. Quando finalmente aquele único ponto a qual observava ficou claro, consegui ver outra vez aquela maldita foto.

Posso dizer que éramos felizes. Ou não. Nunca soube. Lembro-me até hoje do dia que tiramos a foto. Éramos bastante jovens, animados com a vida. Mas aos poucos todos os nossos sonhos foram definhando e a verdade se mostrou tão crua que a vida se tornou um eterno funeral embalado por cânticos de réquiem.

Mais algum tempo remoí aquelas mazelas e misérias, sempre catatônico, sem reagir, deixando que aquele mar de lembranças sombrias percorresse os corredores empoeirados da memória. Mas de repente escuto os latidos dos cães de caça dos vizinhos; lá vão eles caçar de novo, aproveitando suas manhãs outonais livres. Aquele som me arrancou do limbo. Depois de muitas horas me mexi de novo. Os músculos doíam, minha cabeça pesava uma tonelada e minhas pernas demoraram uma eternidade para responder. Tentei me levantar, mas caí; não de volta na poltrona, mas no chão sujo. Fiquei estirado ali, como um cachorro vira-lata que definha de fome. Com muito esforço cego, tentei me erguer de novo. Consegui. Mas do caminho entre o chão frio até a altura do ar mal cheiroso, milhares de faces cruzaram com o meu olhar, me acusando, querendo me apedrejar e estampando em mim a culpa por tudo. Sussurros nos meus ouvidos, vindo de todos os lados. Sentia-me tão entorpecido que nada me afetava, não sentia nada, nem de bom nem de ruim, tudo apenas girava num caleidoscópio de alucinações.

Queria conseguir entender por que ela me contava tantas mentiras. Uma mentira sobre a outra. E com essa fixação doentia na cabeça dei alguns passos em direção à janela da sala. A luz, mesmo fraca e pálida, queimou meus olhos. E na bruma que se formou diante de mim, vi com clareza o seu rosto cínico, sorrindo alegre, com mais uma de suas mentiras.

Apoiei-me num dos lados da janela, respirei fundo. Um pouco da bruma se dissipou; resquícios mínimos de lucidez lampejaram por alguns instantes. Aos poucos a ardência dos olhos foi cedendo, e consegui olhar para fora, vislumbrando aquele cenário desolado. Dei-me conta que chuviscava; fraca, mas constantemente. Um véu cinza cobria o bosque de ciprestes pouco a frente da casa, e misturada naquela névoa espectral eu vi mais e mais rostos...

Os cães de caça continuavam a latir.

Minha cabeça pulsava, como uma bomba prestes a explodir. Boca seca, como se mastigasse areia, e apesar da leve melhora dos olhos, ainda via tudo embaçado e distorcido. Tentei me virar, e aos tropeções dei alguns passos, entorpecidos, bêbados, que derrubavam coisas por todos os cantos. Tentava seguir o caminho da luz que estava acesa no banheiro. Consegui chegar nele. O fedor não incomodava, nem o sentia para falar a verdade. A luz fraca e pálida da lâmpada que balançava como um pêndulo dava aquele recinto imundo um ar fantasmagórico, repleto de espectros inquietos, sussurrantes e que me apontavam seus dedos imaginários enchendo-me de acusações e clamando minha morte.

Os latidos dos cães ainda ecoavam, sem parar, assim como o barulho dos cascos dos cavalos dos caçadores indo atrás do sangue de algum animal. Agora estava eu apoiado na pia repleta de vômito, mirando um olhar embaçado de tantas alucinações para o chão ladrilhado cheio de sujeira e decrepitamente velho. Arfava com muita força, como se o ar fugisse de mim. Olhei no espelho quebrado. O que vi era qualquer coisa menos um ser humano. Uma figura descarnada, de pele amarela, barba crespa e cheia de nós, olhos mortos perdidos em um horizonte de mentiras.

Abri o pequeno armário e peguei o primeiro frasco que vi. Enchi a mão de comprimidos e enfiei todos de uma vez na boca, e os engoli com a água marrom e amarga que saia da torneira.

A sensação daquilo me descendo na garganta me fez lembrar o exato momento que dei a primeira facada. Funda; rasgante; bem no pescoço. No mesmo instante voltou-me as narinas o cheiro intenso de sangue, que me cobriu inteiro, além do que se empoçou no chão. Acho que ela conseguiu ver nos seus últimos instantes sua face refletida naquele líquido quente e viscoso que jorrava de dentro de suas entranhas depois dos golpes seguintes.

A fúria é algo que cega um homem. Não me lembro de como foi sua expressão; aliás, tudo o que aconteceu entre pegar a faca na cozinha, caminhar silencioso pelos corredores da casa e matá-la, de certa forma foi apagado da minha memória. É um lapso, um breu completo. Só lembro a partir do primeiro golpe.

Saio dali. Os comprimidos fazem algum efeito, mínimo, fraco, de tanto que eu já os engoli dia após dia. Mas mesmo assim ainda é algo. A cabeça desanuvia, e muitos dos fantasmas evaporam-se diante dos meus olhos doloridos, mergulhando a casa em sombras e silêncio, que conseguiam ser mais perturbadores do que toda a balbúrdia que faziam os espíritos que infestavam minha mente.

Lá longe, os cães de caça seguiam a latir, incansáveis e determinados.

Arrasto os pés por um corredor totalmente escuro. Cuspindo um catarro espesso pelo chão, sentindo o nariz fechado e com uma falta de ar quase claustrofóbica. Não me lembro se pensava em algo, ou se apenas havia um gigantesco vazio na cabeça. Quando me dou conta, estou diante de uma porta de ferro enferrujada. Sem muito esforço a abro, os olhos dessa vez não queimaram, ficaram apenas um pouco foscos. E quando o mundo clareia, consigo ver a varanda de madeira e do outro lado do bosque de ciprestes, mais adiante.

A porta por trás de mim se fecha com um sopro forte de vento, tão forte que causou um eco que soou por toda a casa. Olho para o chão e vejo dezenas de jornais, ainda enrolados e dentro de sacos plásticos. Sabia muito bem o que havia nas manchetes, dos mais sérios até os mais sensacionalistas tablóides de última categoria.

Um pouco ao lado, bem abaixo a uma janela havia um banco de madeira, que meu avô construíra muitos anos antes com suas próprias mãos. Cato alguns dos jornais largados no chão e me sento no banco, me deixando cair, de forma que as velhas juntas rangeram e quase cederam. O efeito dos comprimidos já passara, e minha cabeça voltara a pulsar. Tonturas vieram junto dessa vez, meus músculos se retraíram com tanta força que pareceu que se desprenderiam dos ossos, a bile subira num jorro incontrolável. Quase caí do banco pondo pra fora aquilo, meu abdômen se contraiu de tal maneira que senti como se houvesse um buraco na minha barriga. Minha vista estava fosca de novo, surgira uma febre enorme do nada, tremia e batia os dentes e ainda via cenas misturadas e confusas de um passado nem tão distante num delírio que corria muito próximo da insanidade plena.

Ela sorria, e sorria tão docemente que por uma fração de instante me enganou mais uma vez. Uma mentira tão saborosa, conveniente, e que por tanto tempo eu acreditei como uma criança tola. Via seus cabelos compridos, tão pretos e sedosos que provocavam um tipo de feitiço sedutor cujo qual eu nunca consegui resistir. E seus olhos. Aqueles dois olhos brilhavam como safiras. Dançava num campo aberto, florido, que exalava vida e felicidade por todos os lados. Mas então p mundo escureceu, clarões piscavam sem parar, eu ouvia gritos, sentia sangue nas mãos e a mesma raiva, a mesma ira.

Delirava de olhos abertos, olhando para céu plúmbeo, até que fui arrancado em parte daquilo tudo quando uma mão gelada agarrou minha nuca. Continuava fantasiando coisas do passado, mas me virei arfante, dolorido, a procura da mão que me tocara. Mas não havia nada, ninguém além dos corpos imaginários do remorso.

Cenas rodopiantes de crueldade e loucura continuavam passando pela frente dos meus olhos. Abri um dos jornais. Na capa havia fotos de um corpo mutilado, de olhos tão abertos e ainda tão sedutores... Percebi um sorriso, que me provocava. Ela me perseguia. O sorriso me perseguia. Em todos os lugares. Nunca de frente, nunca diretamente, nunca me encarando. Somente em pequenos detalhes. Uma pintura, uma foto, um borrão no assoalho da casa.

Abri outros. A mesma história, com outras palavras, outras versões, outras invenções. Eles não sabiam, nunca irão saber a dura e cruel verdade. As fotos reavivavam minhas lembranças daquele momento; sem piedade os fotógrafos haviam registrado cada perfuração que fiz nela, as poças de sangue coagulado no chão, o corpo desfigurado, tudo... tudo... E os jornais vendiam...

Os jornais foram se empilhando. Passei um por um. A notícia não envelheceu nessas semanas. Até que cheguei ao último. A data era de amanhã, e na capa havia uma casa destruída por um incêndio. A minha casa. Não consegui ler a matéria, tudo se borrou de novo diante dos meus olhos; de novo não sabia distinguir entre realidade e delírio. Amassei aquele amontoado de insanidades impressas e atirei para longe, e só lembro mais de ter ouvindo o barulho da bolota de papel batendo contra a lama do chão encharcado.

E o latidos dos cães de caça.

Quando me dei conta estava esfregando o rosto com força, sem parar, revendo infinitas vezes todas as cenas da mentira que fora nossa vida juntos. Estirado naquele banco velho, sentindo dores intensas, que não sabia se eram reais ou efeito de tanta bebida e remédios. Por que ela fez tudo aquilo comigo? Por quê? Eu tinha me entregue por completo, abandonei meus sonhos de infância, desisti de tudo por ela. Tudo era perfeito, um paraíso de amor e esperança... que ela despedaçou com uma naturalidade que foi uma facada infinitamente mais dolorosa do que todas as que eu enfiei nela mais tarde.

Em meio a tantos remorsos, escuto uma voz. Uma voz de verdade. Clara, nítida, bem próxima de mim. A primeira voz que ouvi em mais de um mês isolado naquele buraco perdido e apodrecido pelo tempo.

"Olá, meu caro amigo. Como você está?"

Em uma espécie de choque jogo o pescoço para baixo, abrindo meus olhos de uma vez só, sem conseguir respirar. Depois de a dor ter diminuído, começo a procurar a origem daquela voz tão amável. Olho de um lado para outro incessantemente, mas não vejo nada além da insólita paisagem amarronzada do outono.

"Que homem mais mal educado, não responde a um velho amigo."

Agora a voz vinha de outro lado, e depois veio de outro, e outro. Parecia flutuar pelo ar, girando ao redor da minha cabeça, mais um dos frutos doentios dela, que ia chegando aos limites da sanidade. Mas não, aquilo era real, muito real. Tinha que ser algo de verdade. Em um esforço que foi quase além das minhas capacidades deterioradas me levantei, com a sensação de que iria cuspir os pulmões a qualquer momento.

"Quem é você?" Pergunto numa voz entorpecida, quase um grunhido sem forças.

"Quem eu sou? Sou um amigo."

Então ele surge na minha frente. Era um homem. Trajava um fraque, muito elegante, que parecia ser de tecidos dos mais nobres. Na cabeça uma cartola, nos pés botas negras de couro reluzentes. E aquilo era um dos maiores absurdos que já tinha visto em toda minha vida ridícula.

Fiquei parado, olhando diretamente para ele, meio encurvado, tremendo e arfante.

"Nunca te vi" Falo, sem ter pensando nisso.

"Claro que não."

"Então por que me chama de amigo?"

"Porque eu sou sim seu amigo. Venha comigo dar um passeio."

Só podia ser outra alucinação. Jamais poderia ser real. Minhas insanidades estavam me arrastando para a loucura definitiva, onde os delírios eram tão perfeitos que parecem serem de verdade.

Aquele homem tinha uma voz macia, suave. Ele parecia ser amigável, suas palavras emanavam doçura. Olhei bem para seu rosto. Tinha um sorriso largo, radiante; olhos azuis profundos. Era esguio, não muito alto, de rosto anguloso; sem barba, com a pele lisa e muito clara. E ele me fitava com tranqüilidade e serenidade impressionantes, sem nunca tirar aquele sorriso de seu rosto. E chovia já bastante a sua volta, gotas de água escorriam por seu rosto, molhando suas elegantes roupas. Suas botas ficavam enlameadas, os cabelos que ficavam de fora da cartola encharcados; mas sua expressão angelical era inabalável.

Fiquei confuso e ainda mais atordoado. Com passos lentos desci a pequena escada de degraus de madeira, e logo pisei no chão molhado, cheio de lama e folhas mortas. A chuva estava gelada, e o vento que soprava sem parar me deixava com a pele eriçada. Minhas pernas andavam sozinhas, eu não as sentia. O homem começou a andar do meu lado, sempre sorrindo, como se fosse o mais belo dos dias da primavera. As nuvens ficaram ainda mais pesadas, e tudo estava mergulhado num cinza intenso, opressor.

Seguimos por uma pequena estrada que adentrava no bosque de ciprestes. Mais adiante o chão estava mais seco, e sem nenhuma folha, mas muitos pingos de chuva ainda caiam sobre nossas testas. Tudo estava silencioso, e ainda mais escuro. De novo via vultos, muitos vultos, que me miravam de forma ameaçadora.

E os cães de caça latiam, latiam e latiam.

"Para onde nós vamos?" Pergunto, gemendo, arrastando os pés pelo chão.

"Não tenha pressa. Podemos conversar muito no meio tempo."

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa a ele ouvi ao longe um ruído muito alto, que quebrou com a parede grossa de silêncio que havia no ar. Não consegui entender o que acontecera, só tinha certeza que viera da casa.

Os cães agora latiam em frenesi e loucura.

"O que foi isso?"

"Nada, apenas seus amigos festejando."

"Festejando?"

"Claro, eles têm um excelente motivo para festejar"

Minha cabeça estava girando, andava sem saber como o estava conseguindo. Não tinha como questionar as coisas que ele dizia.

"Por que você a matou?" Perguntou o homem de repente, e em uma simplicidade enorme.

"Como você sabe?" Falar doía demais, era um tormento, um suplício, mas eu falava mesmo assim.

"Todos sabem."

"Ela merecia..."

"Ora... Por quê?"

"Ela me traiu, mentiu para mim, me enganou durante anos. Ela me usou, e quando não precisou mais de mim me jogou fora como lixo."

"Isso não é desculpa."

"Você não sabe de nada."

"Eu sei de tudo" o homem ria alegremente, colocando a mão no meu ombro.

Tiro a mão dele do meu ombro com raiva.

"Quem diabos você é?" Rosno, com os olhos virados, respirando com minhas últimas forças.

"Essa é a pergunta mais difícil de todos os tempos, sabia?"

"Pare com isso seu verme! Responde quem é você de uma vez!"

"E eu gostaria de saber de você: Quem é você? Ou o que é você?"

Fiquei sem resposta, a raiva cresceu muito naquele momento, mas ficou entalada na garganta. O que era eu? No que eu fui me tornar?

Continuamos andando nesse meio tempo, sem nunca parar. A névoa descia mais e mais, ficando densa, grossa e tão espectral que era possível ver os fantasmas de todas as incontáveis gerações que ali viveram.

"Vamos, me responda, estou tão ansioso por saber sua própria opinião sobre sua decadência tão lastimável."

"Foi culpa dela..."

"Não, não... não foi. Eu sei muito bem que a culpa foi somente sua."

Começamos a subir uma ladeira, ainda mergulhados em névoa e em meio aos ciprestes. Ouviam-se os latidos dos cães não muito longe, outra vez ganindo atrás de alguma lebre de má sorte e sem se importar com o barulho de antes.

"O que levaria um jovem de futuro tão brilhante a mergulhar dessa forma na violência e insanidade? Egoísmo? Ciúmes? Inveja? Ira reprimida? Ora, ora, temos tantas possibilidades..."

"Não temos. Eu te falei a verdade; ela me traía e me enganava de uma forma tão cruel que perdi o controle."

"Essa é a mentira que você conta para si mesmo? A justificativa que inventou para não entregar-se de uma vez aos braços da loucura? Fugir de si mesmo é como se estes cães de caça que tanto latem decidissem perseguir seus próprios rabos."

"Você não deve saber o que um homem amargurado e ferido na alma e capaz de fazer por vingança."

"Não sei mesmo – Ele disse isso abrindo ainda mais seu sorriso – Mais sei o que é desafiar quem me criou."

"Como?"

"Ache o que você quiser. Você tem esse direito. Pelo menos por enquanto."

Chegamos a uma clareira, no topo da colina. Podia ver a casa dali, velha, decadente, prestes a desabar. Adiante havia um poço. Chuva, neblina, frio e fantasmas. A visão daquele ponto não passava de um borrão cinza na imensidão sem vida que era todo aquele pedaço perdido de mundo.

"Sua infância foi feliz aqui."

"Foi."

"Até que você viu seu tio abusando o filho do empregado."

Não respondo nada. Uma chaga quase fechada foi arrebentada de novo, o sangue jorrou em torrente, e a dor voltou ainda mais intensa do que foi naquele dia remoto.

"Foi a primeira vez que a ira brotou dentro do seu ser. E a primeira vez das tantas que você matou. Até hoje seus parentes devem se perguntar que fim levou seu tio depois daquele inexplicável desaparecimento. Mas eu sei, porque eu estava lá, observando e sabendo que mais cedo ou mais tarde eu e você estaríamos aqui neste exato lugar"

"Seu cretino... você não sabe de nada. Eu nunca matei mais ninguém."

"Não se faça de desentendido. Você gostou daquilo, tinha um sabor de poder que te enfeitiçou. Mas não se assuste ou fique preocupado com o que eu pense de você, eu também sei que você só teve a coragem de recomeçar a matança vários anos depois. Aquela moça que você tinha encontrado no primeiro dia de aula da faculdade, cujo nome já se perdeu no esquecimento, ela gostava realmente de você."

"O que ela tem a ver com isso tudo?"

"Só o fato de ela ter sido sua primeira mulher em uma cama, e que na hora seguinte arrancou-lhe a cabeça."

Meu passado era uma enorme sombra. Tinha tentado sepultá-lo durante muito tempo, e quando estava conseguindo apareceu ela, e fez meu mundo desmoronar outra vez. Eu matava mulheres sim, foram muitas, tantas que não lembro o nome de quase nenhuma.. A bebida e os remédios faziam esquecer-se de tudo; mas ela, a última e derradeira mulher da minha vida, fez com que esses vícios fossem levados a um nível que me destruiu por completo, eu não era mais nada.

"Não fique aí se remoendo, olhando apenas para o chão. Você já passou tempo demais fazendo isso naquela casa imunda e infestada de pragas. Vamos, se abra."

"O que você quer que eu diga?"

"O que você sente?"

"Vontade de te matar."

"Não me surpreendo. Mas diga-me como é ter dupla personalidade?"

"Se é dois num só, como você deve supor. Mas não, não se é nada. O que você preferiria: o jovem e brilhante advogado com futuro sem limites ou o assassino louco e demente com trauma de infância que mata sem motivos? Não adianta querer um ou outro, pois não se é nada, se é apenas um espantalho, uma carcaça vazia."

Ele me olhava com a mesma doçura, candidamente, sorrindo de uma maneira que ia me deixando irritado, nervoso, inquieto e só aumentava meu completo desequilíbrio.

"Se você repetir uma mentira mil vezes ela se torna verdade? Sua capacidade de ser dissimulado sempre me fascinou, meu caro. Como alguém iria desconfiar de um jovem tão dedicado, simpático, gentil, honesto, amigo de todos? Mas não porque você tinha uma versão boa de si mesmo, mas porque você era realmente muito bom em esconder o verdadeiro monstro que sempre foi."

E ele tinha razão, eu era muito bom nisso.

"Por que você veio até aqui desencavar meu passado, que nem mesmo eu queria lembra?"

"Porque sim. Você jamais pode esquecer isso. Os atos das pessoas são irreparáveis, logo nunca deverão ser esquecidos, e mesmo que você queira com todas suas forças, nunca irá conseguir uma proeza como essa."

"Eu iria parar, iria mesmo. O sujeito normal dentro de mim estava começando a vencer, a tomar o espaço do assassino. Todas as mulheres que matei não tinham me feito nada, absolutamente nada, só as matava por diversão. Mas a última, a mulher que eu amei de verdade, pela qual me decidi a largar meus sonhos e até parar de matar, ela me apunhalou. Você sabe o que é uma mentira? Você sabe o quanto uma mentira destrói?"

"Claro que sei. Sou mestre nisso! Conte mais, conte mais! Minta mais para mim, minta mais e mais para você mesmo!" Ele estava efusivo, com uma alegria tão grande como se estivesse contando a ele algo muito divertido.

Os latidos dos cães de caça pareciam mais próximos agora.

"Por bastante tempo me deixei enganar, sem desconfiar. O amor pode cegar tanto quanto a raiva; talvez no fundo soubesse, mas não queria. Um dia não suportei mais, e o assassino deixou só outra parte, ele se fundiu com o outro e perdi o controle. A ira me invadiu por completo e terminei com tudo. Fugi; escondo-me da polícia, passo os meus dias em uma sala escura me embebedando e deixando os remorsos me consumirem, esperando não sei o quê."

"Então creio que temos a resposta daquela pergunta. Quem é você? Quem é você de verdade? Sem as mentiras, sem correr ao redor do próprio rabo? No fundo da sua alma?"

"Um assassino que deixa seu passado apodrecê-lo. Um animal entocado sem coragem de encarar o mundo."

"Você tem a solução para esse medo de encarar o mundo depois de tudo o que fez."

Estava petrificado. Não de medo, não de frio. Não sabia o porquê, apenas estava completamente duro. Não sentia minhas articulações, me ocorreu que estivesse virando uma estátua; que um destino cruel estava me eternizando na melancolia para que jamais conseguisse me esconder de novo, e que o fardo do remorso jamais me abandonasse. Mas não era isso, era algo pior.

A água gelada da chuva escorria pelo meu pescoço, sobre meus olhos, entrando pelo meu nariz junto com a respiração densa. Revi minha vida em poucos instantes, como um pano de fundo para a imagem do olhar doce e angelical do homem elegante que não dissera quem era e o que queria. Mexi-me duramente, virando para o outro lado. Lá embaixo a casa encoberta pela neblina. Mas de repente ela explode, e as labaredas laranja emergem da névoa, e a velha casa começa a ruir.

"Meu amigo, aos poucos você está se libertando. Apesar da brutalidade, matando aquela mulher você deu o primeiro passo para essa liberdade. Os remédios, a bebidas, o isolamento... tudo um longo caminho. E agora essa casa amaldiçoada ruindo... você está quase lá. Só falta um único passo."

O ar infernal do incêndio em meio ao chuvisqueiro e a neblina era espantoso. As paredes caíam, o teto já desabara, e eu vislumbrava com uma clareza cristalina a multidão fantasmagórica de almas que emergia do calor, fugindo dali, conseguindo sua própria liberdade após décadas aprisionadas, agrilhoadas pelas barbáries feitas por tantas gerações depravadas e cruéis. O homem estava certo, acabara de desmoronar a última coisa que me mantinha ligado a esse mundo podre.

"É agora. Eu te ajudo."

Reparei certa mudança na voz dele, estava mais grave, mais ressoante. Olhei para seu rosto, ainda estava sorridente, mas agora um sorriso que concorria com minha insanidade. Seus olhos brilhavam, quase soltando fagulhas. Ele enfiou a mão dentro de suas roupas, e de lá tirou um jornal, que me entregou. Tinha cheiro de recém impresso, folhas alvas e ainda quentes. Na manchete: "Corpo de assassino em série é encontrado dentro de um poço." A data era de cinco dias depois daquele.

Levantei o olhar, e encontrei o dele. Suas íris estavam vermelhas, seu rosto pálido e o sorriso completamente demente. Suas roupas desmancharam, transformando-se em trapos rasgados. Começou a andar na minha direção, gargalhando, abrindo o sorriso tanto que pude ver todos os seus dentes reluzentes e pontudos.

Comecei a andar de costas, sem pensar no porquê disso. Não estava com medo dele. Não tinha medo de mais nada àquela altura. Encarava os olhos dele friamente, sem temer mais nada, só indo mais para trás a cada passo que ele dava. E quando finalmente parei, estava bem na beirada do poço.

Virei-me de frente para aquele buraco e olhei para seu fundo, ouvindo a gargalhada frenética do homem elegante que agora era maltrapilho. No reflexo escuro da água parada vi de relance os rostos de todas as mulheres que matei durante meus anos de loucura; e pela última vez vi com clareza o sorriso da última, daquela que eu amei e da única que senti dor ao matar.

"Ela te amava, muito mesmo" o homem de repente soou gentil outra vez. "Nunca te traiu ou mentiu, cada palavra que ela dissera era genuína e sincera, e você a matou porque esse é quem você é de verdade. Um assassino, repleto de ódio, que tem sede de sangue. E você sabe disso, tanto quanto você sabia que ela te amava."

Foi estrondoso o momento que o restante da casa desmoronou, voaram brasas ardentes e cinzas por todos os lados. Finalmente a última masmorra da minha insanidade foi destruída.

"A grande mentira de todas colapsou com aquelas facadas, e você quebrou. Fugir de si mesmo é como um cão de caça perseguindo o próprio rabo. Eles souberam, todos eles, e você fugiu e escondeu-se. Mas não tem mais para onde fugir, nem onde esconder-se. Vamos, está na hora."

E ao som da chuva, do crepitar do fogo e das risadas dementes daquele demônio, me joguei para a escuridão eterna.

A última coisa que ouvi em vida foram os latidos dos cães de caça.

29 de Septiembre de 2018 a las 13:25 0 Reporte Insertar Seguir historia
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