paloma-machado1524178432 Paloma Machado

Eu estava ferrada. Tinha que encontrar um peru em pleno dia 25 de dezembro. E como se isso já não fosse difícil o suficiente, ainda teria que disputá-lo com um indiano.


Romance Todo público.

#amizade #drama #comédia #romance #natal
Cuento corto
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Capítulo Único

Natal para mim não era nada mais do que uma comemoração que te fazia gastar rios de dinheiro, tempo e paciência; ainda mais se tivesse uma família tão grande quanto a minha. Todos os anos, nos reuníamos na casa da avó matriarca, um belo aglomerado de gente que fingia se suportar só pelo bem da velhinha. Aposto que quando ela batesse as botas, ninguém mais daria bola para o espírito natalino.

Como a família era grande, cada um levava algo para comer, normalmente feito em casa. Infelizmente eu parecia ser a única pessoa da enorme prole a não ter tato para a culinária; uma vez tentei fazer um simples bolo de fubá, nem meu cachorro esfomeado quis comer aquela obra do diabo. Aliás, aposto que até o pão que ele amassou estava melhor.

Sexta-feira. Saí mais cedo do trabalho e fui direto para o mercado, torcendo pelos chocottones ainda estarem em promoção. Entrei sem pegar carrinho ou cestinha e andei ligeiro até o corredor de pães e biscoitos, lá no final estava a mesa com o cartais de letras vermelhas e apenas uma solitária caixa. Dei passos largos, com os olhos vidrados naquela embalagem de papelão, rezando para que mais ninguém precisasse de panettones. Obviamente não fui abençoada com isso também.

Assim que estendi a mão, vi outra maior na mesma direção, mas já era tarde. O rapaz pegou a caixa, enfiou dentro do carrinho de compras e saiu em disparada.

— Droga... – resmunguei olhando para o relógio de pulso. Ainda dava tempo de passar na padaria, talvez restasse algo por lá.

Entrei no carro com pressa, jogando a bolsa no banco do lado. Arranquei rápido em direção à saída do estacionamento, mas um senhor cruzou meu caminho na maior tranquilidade, freei em seco e meti a mão na buzina. O senhorzinho, de cabelos grisalhos e olhos miúdos, parou de empurrar seu carrinho, me encarou através do para-brisa e me mostrou o dedo do meio. Abri a boca em espanto, ele sorriu e seguiu em frente.

Cheguei à padaria e dei graças por ela ainda estar aberta.

— Boa noite. Vocês ainda têm aqueles chocottones? – perguntei a atendente.

— Não, sinto muito. Acabaram de levar o último – ela respondeu apontando para o caixa.

O mesmo rapaz do mercado. Não conseguia acreditar. E por que ele precisava de mais um daqueles doces? Talvez sua família também fosse grande. Por fim decidi ir para casa, tentaria encontrar algo no outro dia, que era véspera de Natal, mais desesperador ainda.

Acordei às oito da manhã, tomei meu café e me arrumei para ir à caça de algo até o meio-dia, pois teríamos um almoço na chácara. Talvez desta vez eu devesse levar uma sobremesa, como uma torta ou pudim de leite. Tranquei o apartamento e peguei o elevador.

— Bom dia, Dona Flávia – disse o sindico, quando passei girando a chave do carro no dedo – vai cedo para o sítio hoje?

— Bom dia Seu Maneca. Ainda não, mas estou indo comprar algo para o almoço. – Parei no portão – o senhor sabe onde vende alguma coisa boa e barata por aqui?

— Inauguraram um hipermercado lá no Bairro Alto, minha esposa comprou um panettone na padaria de lá, uma delícia.

— Hm... Vou dar uma olhada.

Em um dia comum eu levaria vinte minutos para chegar, mas não podia esperar que em pleno dia vinte e quatro de dezembro fosse o mesmo. Finalmente parei no estacionamento coberto, uma hora depois, minha bunda já estava dolorida. Peguei o cartão de débito e passei pelas portas automáticas.

O mercado era enorme, mesmo. Peguei um panfleto com uma moça sorridente plantada na entrada, e uma cestinha. Não havia muitas promoções, mas os preços normais também estavam baixos. Perdi um pouco de tempo andando pelos corredores até encontrar a padaria no lado esquerdo, bem no final.

O cheirinho de pão fresco me deu água na boca, eu só tinha bebido um pouco de café com leite e meu estomago já estava reclamando. Decidi comprar dois pãezinhos de queijo e um expresso; havia umas três mesinhas na frente da panificadora, duas delas completamente ocupadas por uma família, na outra havia apenas um rapaz, de cabelos negros penteados para trás, com as pontas encaracoladas na nuca.

— Com licença, o lugar está ocupado? – perguntei.

— Não. Fique a vontade – ele empurrou a caixinha de condimentos para o lado, para que eu pudesse colocar minha bandeja sobre a mesa.

— Nesses dias é difícil até de encontrar um lugarzinho vago pra sentar – disse mordiscando meu pão de queijo.

— Ah, mas isso é bom – ele terminou seu achocolatado – aproxima as pessoas.

Olho-o atentamente. O maxilar largo e um pouco arredondado, a ponta do nariz brevemente curvada para baixo, olhos castanhos luminosos. A pele cor de bronze e a barba aparada destacavam ainda mais sua beleza indiana.

— Eu queria poder ficar e bater um papo com você, mas tenho que correr aproveitar as ofertas – ele se levantou, me dirigindo um sorriso de dentes branquíssimos – espero nos encontrarmos novamente.

Ele seguiu em direção ao caixa, pagou a conta e saiu com uma pequena boleira em mãos. Terminei logo meu café, pois também tinha que fazer o mesmo.

— Oi, vocês tem pudim de leite? – perguntei à moça que reabastecia a bancada.

— O único pronto já foi, mas acho que logo à tarde colocaremos mais.

Bufei em chateação. Então me toquei de algo. Eu sabia que aquele moço não me era estranho. Bem... Na verdade ele era o estranho que tinha comprado os dois últimos chocottones ontem. Só podia ser brincadeira. Agora ele também havia levado o pudim.

— Então vai a torta de limão mesmo – porque eu estava azeda no momento.

A atendente me entregou uma embalagem com decoração natalina e me desejou boas festas. Mas o que eu precisava era de sorte mesmo.

Às onze e meia peguei a autoestrada em direção ao interior. Quando cheguei à casa da vovó, o cheirinho de porco assado invadiu minhas narinas. Quase todos os familiares haviam chegado, menos a tia Dina, que sempre se atrasava. Entreguei a bandeja transparente pra vó Cecília, que olhou pra mim com ar interrogatório.

— A senhora sabe que não fui eu quem fez.

— E quando é que você vai criar vergonha nessa cara e aprender a fritar um ovo? – a velhinha não media a língua.

— Ora. Eu sei fritar um ovo – disse indignada.

— Seu ovo estralado poderia ser trocado por uma esponja de louça que eu nem notaria a diferença – ela deu as costas e guardou a torta na geladeira.

— Não dê bola pra sua avó – minha mãe apareceu me dando tapinhas nas costas. – Como você está, meu anjo?

— Bem, mãe. – Olhei ao redor – o Junior não veio?

— Seu irmão ainda está de birra, mas o fiz prometer que viria amanhã.

— Até porque a vovó arrancaria as orelhas dele.

Resolvi ajudar minha prima Julia a colocar a mesa, pelo menos isso eu sabia fazer. Tio Osvaldo terminou de assar a carne, colocando-a numa forma no centro da mesa, junto ao pernil. Sentamos e enchemos a pança, incluindo as sobremesas. Guardei um pedaço da torta para comer mais tarde e fui embora antes que a louça sobrasse pra mim.

Dia vinte e cinco, Natal. Acordei com o celular tocando às seis da manhã. Quem ligava para os outros a essa hora?

— Alô? – resmunguei sonolenta.

— Flávia! – meu ouvido apitou com o grito da minha avó.

— Bom dia pra senhora também...

— Você vai comprar um peru pra assarmos hoje.

— O quê?! – dou um pulo na cama. – Mas por que eu? E as galinhas do quintal?

— Ficaram doentes, não vou comê-las – ela faz um barulho estranho. – E você fugiu ontem!

Fui pega. E não tinha como negar.

— Mas dona Cecília, como eu vou encontrar um bicho desses em pleno Natal?

— O problema é seu, querida, e é bom você ir logo. Deixe a ave com a tua mãe até as oito horas que ela vai trazer pra cá.

— A senhora não quer que eu vá ajudar? – tentei me redimir.

— Você quer arruinar o almoço?! É provável que o peru ressuscite e fuja – ela me deseja feliz natal e desliga.

Nada como acordar com a ligação de uma doce e simpática velhinha.

Tomei café e troquei de roupa. Seria uma missão impossível encontrar alguma coisa nos mercados, mas eu tinha que conseguir, caso contrário estaria condenada a ouvir minha avó até o ano seguinte. Passei em todos os mercados perto de casa e nada. Cogitei até a possibilidade de comprar alguns daqueles frangos que vedem em padaria, mas ai eu estaria pedindo pra sofrer.

Minha última opção era o mercado do outro lado na cidade e eu tinha apenas uma hora para ir e voltar até o apartamento da minha mãe. Peguei alguns atalhos e consegui economizar tempo, deixei o carro bem perto da saída e perguntei para uma das moças do caixa onde ficavam as aves natalinas. E claro que ficavam na parte mais distante.

Corri até a sessão de aves e encontrei de tudo, num preço absurdamente alto. Mas bem lá no fundo do freezer comprido, brilhando como um presente embaixo do pinheiro, estava um peru enorme com a etiqueta vermelha de promoção. Estiquei-me para alcançar a embalagem e puxei, mas ela não veio. Tentei com mais força, porém fui puxada em seguida.

— Você! – era o indiano novamente.

— Olá. Parece que nos encontramos novamente – ele disse com um sorriso charmoso.

— Pois é. Pena que você sempre fica com tudo, mas não desta vez.

Ele me olhou perdido, tentei pegar a carne, mas o moreno não deixou.

— Eu o peguei primeiro.

— Ah qual é? Você está desde sexta-feira “pegando primeiro” – revirei os olhos – os chocottones, o pudim... Agora você quer isso também?

— Desculpe, mas... Eu só posso levar esse.

— Jura? Deixa de ser mão de vaca, com certeza você pode levar muitos daqueles mais caros ali – disse indicando sua roupa social. Ele estava todo engomadinho, assim como nos outros dias.

O sorriso em seus lábios se desmanchou dolorosamente.

— Então você é dessas que julga as pessoas pela aparência? Uma pena, eu tinha te achado interessante.

Não havia sido a minha intenção, mas acabei por dizer aquela besteira no impulso. Ele arrancou o frango das minhas mãos e olhou o preço.

— Fique aqui, eu já volto – ele foi até o açougue e voltou pouco depois com suas sacolas em mãos – pronto, problema resolvido.

E foi embora, deixando-me com metade da ave. Fiquei péssima, arruinara o almoço e a relação com um estranho bem charmoso. Por fim tive que levar um Chester, e minha vó odiava.

Deixei as coisas com minha mãe e voltei dirigindo devagar. No semáforo da Rua Lacerda havia uma lojinha de brinquedos com algumas pelúcias muito bonitinhas, fiquei admirando-as enquanto o sinal estava vermelho, foi então que ele apareceu novamente. O indiano saiu da loja com três sacolas na mão. Não podia comprar outro frango né?

O ônibus atrás de mim já estava buzinando como louco, dei pisca para a direita e passei a seguir o “engravatadinho”. Três quadras depois, parei o carro no acostamento e continuei seguindo-o a pé. Estávamos em um bairro mais sossegado, a rua era feita de paralelepípedos e as casas de madeira.

O rapaz abriu o portãozinho de uma das casas maiores e uma senhora baixinha e redonda veio lhe cumprimentar com contagiante felicidade. Ele a entregou os pacotes e entrou na casa. Aproximei-me e vi que ele tinha deixado cair sua pasta, juntei as folhas e sem querer passei os olhos por uma delas. Era um currículo. Na verdade, vários currículos preenchidos com o mesmo nome. Rajan Oliveira.

Entrei na ponta dos pés e deixei a pasta escorada na varanda, foi então que vi o letreiro colorido.

Orfanado Doce Anjo

Lágrimas brotaram em meus olhos. O que eu vinha enxergando com péssimos olhos, na verdade se tratava de uma das coisas mais bonitas que já presenciei, e eu tinha que fazer algo a respeito. Liguei para minha mãe, minha avó e meus tios. Faríamos uma comemoração diferente este ano.

A senhorinha do orfanato me viu andando de um lado para o outro na frente do portão e veio falar comigo.

— Bom dia minha jovem? Está procurando alguma coisa?

— Oh não. Eu já encontrei na verdade – mordisquei os lábios, ansiosa.

O rapaz que eu estava seguindo saiu chamando pela senhora.

— Você... Você está me seguindo? – ele parecia realmente chateado. – Vai me dizer que veio atrás da outra metade do frango?

— Não! Eu... – suspirei. – Olha, me desculpe. Eu fui realmente muito idiota.

A velha mulher ficou olhando de um para o outro.

— Por que você não vem almoçar com a gente, é pouco, mas sempre dá pra mais um – ela sorriu docemente e meu coração se aqueceu.

— Queria justamente falar sobre isso, eu... – então vi o comboio da minha família dobrar a esquina – aí estão eles.

Todos começaram a trabalhar, mesas e bancos foram armados no quintal, a comida cheirava deliciosamente bem e até um dos meus tios se vestiu de Papai Noel para entregar presentes às crianças.

— Obrigado – Rajan disse me entregando um copo de refrigerante. – Eu queria dar o melhor para essas crianças, mas...

— E você conseguiu. Tudo bem que a babaca aqui quase estragou tudo – ri de mim mesma. – Ah é! Me chamo Flávia, prazer – lhe estendi a mão.

— Rajan... E você já até conhece meu currículo.

— É. Desculpe-me por isso também... – algo estalou em minha mente – acho que posso te ajudar com isso.

— Mesmo? – a felicidade estampada em sua cara.

— Estão precisando de um técnico em informática na minha empresa, mas talvez o salário não seja tão bom...

— Não tem problema, eu topo – ele pegou o celular para anotar o endereço.

— Esteja lá segunda-feira, às quatorze horas, vou te dar uma forcinha com o chefe.

Por fim tudo tinha se resolvido. Um grande e alegre almoço de família, um emprego para Rajan e novas boas amizades para mim.

Até o peru tinha voltado a ficar inteiro.

31 de Mayo de 2018 a las 03:02 0 Reporte Insertar Seguir historia
1
Fin

Conoce al autor

Paloma Machado "Ser uma pessoa intensa é solitário. Quem vive o ápice de cada emoção, quem se doa de coração, dificilmente vai receber algo na mesma intensidade. Seja amor ou ódio." — Paloma Machado. Estudante de Letras. 28 anos. Gosto de chá, jogos, animes e rock. Raramente desenho. Ocasionalmente escrevo. Frequentemente leio. Espero que goste de minhas histórias. Comentários são sempre bem vindos. Se quiser deixar alguma sugestão de leitura, fique à vontade. Obrigada pela visita <3.

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