O primeiro disparate foi quando disseram a Dona Chica que o mundo estava imobilizado, pessoas isoladas, desoladas, assoladas por uma pandemia. As pessoas deveriam ficar em casa. Ninguém poderia sair a não ser para utilizar os serviços essenciais, como supermercados e farmácias.
— Nada de novo. Já faz um tempo que minha vida está sendo de casa pro mercadinho, do mercadinho pra farmácia e da farmácia pra casa outra vez. — desdenhava Dona Chica, julgando impossível acontecer tamanho milagre. — Imaginem! Não ter que cruzar com aquela velha chata da Carmela da rua de cima, que bença!
— Mãe! — Renata ria lá da cozinha. — Coitada da Dona Carmela!
— É verdade! Ela e aquele bando de velhas desocupadas.
— A senhora que está virando uma velha chata. — Renata veio, ainda rindo, trazendo uma bandeja com três xícaras de chá. Entregou a primeira para sua mãe. Antes de entregar a segunda, fez um carinho na cabeça do pai, Seu Arnolfo.
— Pai. — Renata ajeitou a gola da camisa de Arnolfo e percebeu que ele não acordaria tão facilmente. Deixou estar. Colocou a bandeja na mesinha de centro, pegou sua xícara e sentou-se no sofá ao lado da mãe.
— Me passa o açúcar... — Dona Chica envergou-se para a frente esperando que a filha a servisse.
A tarde esticava-se com o horizonte abarrotado de nuvens em tons de vermelho e grená. Em pontos distintos a luz do sol descia em fachos e um deles passava pela janela da sala formando um pequeno arco-íris no chão. Aquele silêncio, aquela preguiça, fazia parecer que era um domingo, embora estivessem em plena quarta-feira. Foi dentro daquele sentimento de tempo arrastado que veio o segundo disparate. A campainha soou alto pela casa, fazendo com que Seu Arnolfo acordasse. As mulheres levaram um susto mais com o grito de Arnolfo do que com a campainha.
— Benzadeus! — Gritou o velho.
— Eu falei pra ele arrumar o volume da campainha, mas ele ouviu? Não, senhor! — Enraiveceu-se Dona Chica.
Renata, ignorando a briga dos pais, pousou sua xícara na mesinha e levantou-se. Então ouviram um grito que rasgava toda aquela calmaria da rua.
— Francisca! — Dona Carmela esgoelava-se no portãozinho de entrada.
Os três na sala ficaram imóveis, em silêncio, esperando que Carmela fosse embora.
Parecia um efeito dominó do caos. Os cachorros da rua começaram a latir. O bebê do vizinho começou a chorar. Dona Carmela gritou novamente.
— Francisca, tá em casa?
Renata e Dona Chica foram até a janela da sala, escondidas pela cortina, espiar Dona Carmela.
— Meu Deus, que velha chata. — revoltou-se Renata.
— Ah, coitada da Dona Carmela. — Francisca zombou.
— O que será que ela quer, mãe?
— Encher o saco, isso sim!
Esperaram um minuto ou dois, observando a velha Carmela gritando no portão. Então, do mesmo jeito que a gritaria começou, o silêncio voltou à rua. Carmela foi embora. Os cachorros não latiam mais. O bebê do vizinho parou de chorar.
— Amém! — Dona Chica soltou aliviada.
— Mãe, cadê o pai?
O terceiro disparate veio pouco depois que Dona Carmela foi embora. Os cachorros do vizinho de trás começaram a fazer alarde. Mãe e filha foram rápido até o fundo da casa e viram a escadinha de alumínio de Seu Arnolfo apoiada sobre o muro e a cabecinha do velho desaparecendo atrás do muro.
— Puta que o pariu! Vai ser teimoso assim lá na China! — Esgoelou-se Renata, acordando o bebê do vizinho e irritando os cachorros da rua.
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