amanda-kraft1664221938 Amanda Kraft

Dois irmãos, André e João decidem passar alguns dias no sítio dos tios, enquanto seus pais viajam para a Europa. André estava louco para rever a menina que tomava conta de seus sonhos e que vivia naquelas terras recheadas de mistérios e lendas. Porém, ele mal sabia que não a encontraria, contudo outra surgiria a lhe encantar. Aquela que caminhava por entre brumas, arrastando a ele e ao irmão por caminhos que gostaria nunca ter estado. Essa capa foi um presente de um grande amigo aqui da plataforma: Giovanni Turim. Muito obrigada, amigo.


Cuento Sólo para mayores de 18.

#lenda #folclore #Uiara #terror #horror #horror-pisicológico
Cuento corto
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Uiara

Passei a sonhar com meu irmão morto. É claro que a gente nunca esquece um ente querido. Mas o tempo é capaz de entorpecer nossa dor. Às vezes, num olhar rápido em uma foto de família, a saudade chega e do mesmo jeito vai embora. Mais do que sonhar, acho que o tenho visto. Sinto que estou ficando louco, mas posso jurar que o vejo, principalmente quando me deito e estou prestes a dormir. Penso vê-lo em pé, na beira da cama, me observando. Nesses momentos me aproximo do corpo de minha mulher. Sinto medo, confesso. Ela sempre me abraça e então ele parece ir. Nunca mais fui o mesmo depois daquela noite em que ele se foi para sempre. Tornei-me taciturno e sinto o ressentimento de meus filhos, quando me pedem para levá-los a alguma praia e sou obrigado a negar.

Minha mulher sabe apenas o que lhe contei sobre aquela noite, entretanto não tive coragem de revelar a verdade. Ela aceita meu medo de mato e de qualquer tipo de água, por me pensar um traumatizado. Não posso evitar o frio que corre na espinha e a sensação de que vou sufocar quando vejo águas escuras de uma lagoa. Ainda consigo sentir, ao fechar os olhos, o horror tomar conta de mim. Aprendi a controlá-lo depois de anos de terapia, entretanto, quando vejo uma quermesse na vida real ou mesmo em filmes, ele retorna com força total. Não consigo me livrar desse gatilho que faz relembrar a perda de meu irmão. Ouço seus gritos e fujo em sonhos. Fujo no dia a dia. A última etapa do meu tratamento é jogar no papel tudo o que se passou naquela noite de primavera. Extirpar para sempre esse mal que me corrói. Mas não é fácil. Tenho que resgatar um pouco da sobriedade perdida, pelos meus filhos e minha mulher.

Fui um adolescente alegre, cheio de amigos, sempre pronto para uma aventura. João era meu irmão caçula. Éramos inseparáveis. Estava com dezesseis anos e ele quatorze quando nossos pais fizeram uma viagem ao exterior. Não quisemos acompanhá-los. Já viu adolescente gostar de cidade histórica e velha como as da Itália? A gente queria era ir para a fazenda dos tios, a Santa Isabel, andar a cavalo e, quem sabe, eu pudesse rever a Melissa, amiga de minha prima Elena. Aquela morena tinha cravado uma flecha certeira no meu coração. Ela morava em Santa Isabel do Rio Negro, aqui no Amazonas. Eram amigas de escola. Fomos recebidos pela tia Elvira com a mesa farta. Meu primo Bentinho e eu tínhamos a mesma idade quando a coisa toda aconteceu. Faz anos que não o vejo. Nunca mais tive coragem de voltar lá.

Depois de passar a tarde jogando bola no terreiro de café, o tio nos levou para a quermesse na cidade. Era dia da santa padroeira da paróquia. Depois da missa os jovens ficavam jogando argolas nas barracas, enquanto a música corria solta no alto falante da praça. Melissa não pôde ir. Para meu azar, estava doente. Entretanto havia uma menina solitária perambulando pelo local. Cada vez que acertava uma argola na garrafa eu sorria e, ao bater o punho no punho de João e Bentinho, nossos olhos se encontravam. Ela não sorria com os lábios e sim com olhos que pareciam feitos de água cristalina, brilhando embaixo das luzes brancas penduradas nos mourões. Perguntei sobre ela para Betinho e ele disse que nunca a tinha visto por aquelas bandas. Talvez fosse parente de um dos moradores da cidade. Continuamos o rolê pelas barraquinhas de comidas e a menina parecia me seguir. Era bela com uma noite de brisa. Seus cabelos eram longos e castanhos, de cor morena, mas não morena como as meninas daqui. Sua pele parecia ter um leve brilho, como se estivesse ligeiramente molhada. Quando me decidi saber mais sobre ela, algo pra lá de estranho aconteceu.

Já era hora de voltar à fazenda. A festança estava terminando. Enquanto os tios seguiam para a caminhonete, eu puxei João para meu lado. Queria que ele fosse até a menina perguntar seu nome. Ele revirou os olhos e começou a tirar sarro de mim, mas foi. Deu dois passos e uma espécie de nevoeiro começou a se aproximar de forma lenta e densa. Senti um estranho arrepio percorrer meu corpo. Corri atrás de meu irmão tentando impedi-lo de se aproximar da menina. Cheguei a tocar em sua mão, mas quando olhei para os lados, a densa neblina havia tomado conta do lugar. Ouvi gritinhos femininos e passos apressados nos cascalhos ao longe. Os carros estavam deixando o lugar, mas não conseguia enxergá-los. Gritei o nome de meus tios, mas o som parecia não se propagar. Achei estranho, no meio de toda aquela neblina, conseguir ver a menina seguindo por uma trilha. João estava apavorado. Disse a ele que talvez a menina pudesse nos ajudar, já que ela parecia saber para onde estava indo.

João estacou assim que a chamei. Ela olhou para trás e então um canto saiu de sua boca. É algo que me acompanha até hoje quando fecho os olhos. Aquele som agudo, doce e etéreo nos embalava. Uma paz, um torpor nos envolvia fazendo-nos segui-la sem questionamento. Ela sorria enquanto cantava.

Caminhamos entorpecidos. Sentimos um deslocamento de ar, como se algo tivesse batido diretamente em nós. Perdemos a menina e o silêncio se fez na estranha noite.

— Ai, cara! Não estou gostando disso. Vamos dar o fora daqui. — disse João, segurando a manga da minha camisa.

Agarrei seu cotovelo e me pus fazer o caminho de volta, sem saber ao certo para onde estávamos indo. João praguejava baixinho. Senti o terror abrir portas dentro de mim que jamais pensei que existissem. Havia um silêncio espectral ao nosso redor. Não havia vento, nem barulho de animais. Caminhamos sentindo nossas respirações ofegantes e então veio o alívio. Agradeci aos céus quando a lua apareceu no céu e pudemos ver uma estrada beirando o Rio Juruá que fazia divisa com a fazenda Santa Isabel. Havíamos andado tanto assim? Deixei o pensamento de lado e apertamos o passo. Então o canto recomeçou. Parecia estar em todos os lugares, dominando a paisagem. Fechei os olhos, tentando distinguir a direção do som, procurando pela menina. Parecia que o canto se somava a várias vozes vindas de dentro do rio. Olhei para meu irmão e ele estava catatônico.

— João! O que está fazendo? — perguntei, aflito, segurando seu braço, no momento que o vi se dirigindo ao rio.

Não me respondeu. Soltou-se de minha mão e então a vi. Ela estava sentada sobre uma pedra enorme, na beira do rio, trazendo um espelho na mão. Seus cabelos estavam soltos e seus olhos d’água nos chamavam, assim como seu canto. Fechei os meus e um pensamento varreu minha cabeça. Algo me dizia que deveria pensar no meu verdadeiro amor, então me pus a pensar em Melissa. Percebi que o seu canto se tornava abafado nos ouvidos, como um escudo protetor.

E foi assim que João se perdeu naquelas águas escuras. Precisava salvá-lo. Tratei de tampar os ouvidos e correr até ele. Ele entrou nas águas cintilantes e ela sorriu para mim. Mergulhou com graça e pude ver seu rabo de peixe empinando no céu claro, antes de adentrar no rio. Gritei quase explodindo os pulmões, mas João estava enfeitiçado. Corri até a margem, e num átimo de segundo ela já estava ao lado dele, segurando suas mãos. Tirei as mãos do ouvido, passando a cantar uma balada de rock mentalmente. Pareceu surtir efeito por uns instantes. Lembro-me de ter rogado a ela que não o levasse. A garota sorriu e estendeu a mão para mim. Quase a segui, não fosse o terror que me acometeu, quando vi vários vultos surgindo das profundezas das águas.

Rostos desfigurados e plúmbeos, olhando o vazio, tão catatônicos quanto João. Pareciam dar boas vindas a ele que se entrevara num beijo profundo nos braços da garota. Os vultos entoavam a mesma canção enquanto ela parecia drenar seu sopro de vida, num surto de amor profundo. Eles olharam para mim e vi rostos que um dia pertenceram a jovens e a homens, talvez pescadores desavisados. Eram tantos que a loucura quase me fez desfalecer. Fechei os olhos, esperando que sumissem e tudo voltasse ao normal, mas o canto maldito persistia, mesmo abafado por minhas mãos. Abri-os novamente e vi jovens com lanças nas mãos, rosto pintado de vermelho e cabelo de cuia. Pareciam índios guerreiros. Seus corpos estavam mutilados por cortes profundos. Alguns traziam flechas cravadas nos corpos. Creio ter desmaiado, pois acordei com o sol queimando meu rosto e sendo chacoalhado por mãos fortes e firmes.

— Graças a Deus! Você está bem, André? — Meu tio me abraçava aliviado, enquanto tentava me esquivar, querendo saber de João.

— João. Onde está João, tio?

— Me conta o que aconteceu, André. — pediu-me com o semblante carregado.

Em poucos segundos despejei sobre ele o que lembrava. Ele franziu o cenho e olhou para as águas do rio. Estendeu a mão e me puxou, fazendo-me ficar em pé.

— Vamos sair daqui. Sua tia está preocupada com você.

— Não vou a lugar nenhum sem o João.

— João se foi, André. Não tem mais salvação. A Uiara o levou.

Fiquei perplexo. Sabia que não havia sonhado. Todo aquele horror levou meu irmão para sempre, para longe de mim. Não pude suportar o olhar de minha mãe por muito tempo. Mesmo ela conhecendo a lenda da maldita sereia, ainda havia, bem lá no fundo, embora nunca tenha proferido palavra alguma, aquele olhar de censura. Tento me convencer de que não tive culpa. Dizem que quando a Uiara põe o olho em você, não te liberta. Mas fui poupado naquele dia, entretanto sinto que não serei mais. Por isso João está aqui. Assim como os outros, ele cantará para mim, me chamando. As malas estão prontas. Não tive mais como negar à minha esposa e filhos um passeio a Fernando de Noronha. Penso em não me aproximar do mar, mas algo me diz que não terei êxito.

8 de Noviembre de 2022 a las 22:47 4 Reporte Insertar Seguir historia
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Fin

Conoce al autor

Amanda Kraft Participo com mais de cem contos em diversas antologias de várias editoras. Livros lançados: Somente eu sei a verdade; Traição; Uma Segunda Chance; A Noiva da Neblina e o Segredo de Lara pela buenovela.com e também contos e livros inéditos na Amazon kindle.

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Leticia Diniz Leticia Diniz
Fiquei feliz em ter encontrado você, já disse que fico feliz quando encontro um autor que saiba contar uma boa história com folclore brasileiro, parabéns, já amei esse primeiro capítulo, aguardando mais.
November 09, 2022, 23:18

Norberto Silva Norberto Silva
Que história fantástica! Como entusiasta do folclore brasileiro, uma história assim, densa e que, se o leitor se permitir imergir, vai conseguir experimentar o horror do André, sem conseguir salvar seu irmão, para mim, ganha ainda mais peso. Meus mais sinceros parabéns por mais esse conto excelente.
November 09, 2022, 10:42

  • Amanda Kraft Amanda Kraft
    Mto obrigada, meu amigo. Fico imensamente feliz com sua leitura. November 10, 2022, 18:34
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