guilhermerubido Guilherme Rubido

Perdido na estrada ele resolve parar em um bar para pedir informações. No entanto, lá ele acaba por escutar uma estranha música que o hipnotiza por completo. Com seu gravador, ele registra a música e passa a ouvi-la sem parar. No entanto, a música parece retirar o véu que cobre a realidade, revelando um mundo sombrio por trás do que antes era normal.


Horror No para niños menores de 13.

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Cuento corto
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O que se esconde nas sombras

Não posso sair de casa.

Não tenho coragem.

Tenho certeza de que aquilo ainda está lá; me observando do alto. Escaneando a terra do meio daquelas nuvens cinzentas. Não posso deixar que ele me veja.

É por isso que decidi acabar com tudo. Não há mais esperança para além desse relato. Vou contar tudo que vivi porque isso, de alguma forma, me mantém são. Acho que, se eu parar para ficar a sós com os sons que escuto agora... vou acabar enlouquecendo de vez – se é que é possível ir além. Porque eles estão lá fora. Posso ouvi-los através do escuro. Ávidos, esperando que eu saia daqui. Rastejando e sussurrando.

Bom, foi que tudo começou. Lá, naquele estranho bar.

Eu estava voltando de uma viagem de negócios quando me vi perdido na estrada. Não sei o que houve comigo. Há anos eu fazia esse trajeto. Não frequentemente, mas... O que quero dizer é: “Como diabos eu poderia me perder ali?!”. Mas me perdi. De algum modo, realmente me perdi. Estava ficando tarde. Devia ser por volta das 19h30 da noite e eu já podia ouvir os grilos e as cigarras cantando no meio das matas que circundavam a estrada. Então, após alguns quilômetros onde tentei, inutilmente, recuperar o caminho, finalmente decidi me render e resolvi parar em algum lugar para pedir informações.

Foi aí que encontrei aquele maldito e estranho bar.

Não saberia dizer a localização nem se o Papa – se é que isso faz algum sentido – me perguntasse. Não mesmo. Eu já tentei me lembrar. Mas ele simplesmente estava lá. Brilhando no crepúsculo arroxeado da tarde feito uma miragem convidativa. Como uma daquelas lâmpadas para pegar mosquitos. E eu era o escolhido da vez. Vi aquelas luzes e placas de neon brilhando na estrada vazia e parei, acreditando ingenuamente que, se eu fosse rápido em me desenrolar daquele labirinto, poderia voltar para casa a tempo de ver a sessão de reprise dos episódios de Twin Peaks que passaria na televisão.

Porra, era só isso que eu queria.

Sem outra opção, reduzi a velocidade e virei até o acostamento. Atravessei com o carro o estacionamento de cascalho e parei minha lata-velha logo em frente à porta daquela espelunca de merda. Deus, lembro do clima daquele dia como se fosse ontem, ao invés de uma semana atrás. O ar gelado que envolvia minha garganta e secava minha boca; o som do cascalho sendo esmagado sob os meus tênis e, por fim, aquela estranha pressão que recaía sobre meus ombros. Lembro até mesmo dos dois únicos carros que vi no lugar, ambos estacionados nas vagas mais ao fundo.

Finalmente, entrei.

Logo meus olhos foram atraídos para algo: havia um palco para shows lá dentro. E, sobre ele, recaía uma fraca e fantasmagórica luz que falhava de tempos em tempos. Ao redor, o salão estava imerso em uma estranha penumbra mal iluminada, quase como se estivesse abandonado. Sem dar muita atenção pra qualquer detalhe estético do lugar – afinal, eu só queria ir pra casa, cacete –, comecei a buscar um barman ou garçom para pedir informações de como retomar o caminho.

Foi quando meus ouvidos foram capturados por algo. Atraídos para um transe hipnótico como crianças em frente à televisão.

Deus do céu, aquela música que vinha do palco me arrebatou de uma forma que eu não consigo nem começar a explicar. Foi uma mistura de sentimentos intensos emergindo de uma só vez. Tristeza, felicidade, êxtase, melancolia... tudo. Lembro-me vividamente da vontade súbita que tive de chorar profundamente. E, quando a música avançou, a tristeza se tornou felicidade, e eu senti uma vontade incontrolável de gargalhar e sorrir como um bobo.

Há alguns dias, quando parava para pensar neste evento, meu encantamento infantil me parecia ridículo; tolo. Afinal, tão devastadora foi aquela música para mim que, assim que a ouvi, me esqueci do que tinha ido fazer naquele bar para começo de conversa. No entanto, com a perspectiva que tenho agora, entendo o motivo de meu desmoronamento. Depois de ouvi-la tantas vezes, sei do que ela é capaz de fazer. Aquela música... aquela porra de música é traiçoeira. Ardilosa como o próprio Diabo. Uma maldita sereia que tentou me afogar com seus cânticos.

E eu cedi... cedi a loucura e ao desespero. Me afoguei não só uma, mas diversas vezes. Me banhei em suas águas sujas. Não havia como ser diferente. A primeira nota foi suficiente para dar início a minha ruína. Caso me fosse dada a dádiva de voltar no tempo momentos antes de entrar no bar, eu... eu, se não houvesse outra escolha, jogaria o carro em uma ribanceira ou me chocaria contra uma parede. Tudo pra não ser capturado pelas notas daquela música saídas da partitura de um demônio.

Se tento me lembrar daquele dia hoje, todas as formas se tornam vagas. Nuvens sem forma. O que posso dizer é tão pouco quanto sei: a música era uma espécie de jazz suave e melodioso que mudava de velocidade constantemente. Quem a tocava? Não faço ideia. Não consigo me lembrar, por mais que tente. Mas sei que, uma música com tal poder só poderia ser tocada por um demônio das trevas ou o próprio Diabo. Uma besta do caos soprando no ar notas mefíticas. Assim, tenho certeza que, seja lá quem fosse no palco, não era humano. Quero que entendam que não sou músico. Longe disso. Sempre fui um desastre. E, quando era adolescente e tentei aprender a tocar violão, nunca conseguia recitar todas as notas. Parava no “Mi” e olhe lá. Mas, apesar de todas as coisas que eu disse, repito: a música era incrível! Assustadoramente fantástica! Terrível. E era nisso em que consistiam suas armadilhas.

Mesmerizado com aquela coisa toda, sentei-me logo em uma das mesas e passei a escutá-la com mais atenção. Logo – utilizando-me do pouco que me restara de racionalidade – lembrei-me do gravador de bolso que levava comigo para fazer os relatórios do trabalho. No mesmo instante, saquei-o por cima do tampo da mesa e comecei a gravar a apresentação, ansioso por manter aquela preciosidade comigo para sempre.

Não sei quem vai ler este relato. Se é que alguém um dia vai. Mas, tendo ou não alguém, não pense que tenho problemas de memória. Pelo contrário. Desde criança minha memória foi sempre foi muito aguçada. Assustava minha própria mãe ao relatar lembranças de minha mais tenra infância. No entanto, havia algo... algo de arrebatador naquela música que me fez perder os sentidos. Qualquer senso além do estético evaporou. Podia apenas contemplar a beleza da música. Assim, nem mesmo me lembro como voltei para casa.

Só sei que voltei.

Quando cheguei em meu prédio já era tarde da noite. Provavelmente perto da 1h da manhã. Com pressa, estacionei o carro no mezanino e corri para o elevador. Àquele ponto, a música já havia se incrustado no fundo de minha mente. Provavelmente, durante a viagem de carro, devo tê-la repetido centenas e centenas de vezes pelo gravador, cada vez mais hipnotizado. E a ouvi muitas vezes antes de chegar em meu apartamento. Ouvi-a ao caminhar pela garagem, deixando-a ecoar pelas paredes junto do som de meus passos. Também a ouvi enquanto o elevador subia. Até o ponto em que eu a ouvia em minha própria cabeça, ressoando como se meu cérebro fosse um amplo e ecoante salão.

Já em meu apartamento, acendi a luz da sala e, sem maiores cerimônias, posicionei o gravador na mesinha de centro e me sentei no sofá. É difícil explicar o que eu estava sentindo naquele momento. Minha mente gritava para que eu ouvisse a maldita música. Era como um desespero desenfreado; um impulso. Uma necessidade. Eu precisava MUITO ouvi-la naquele momento. Como quando ficamos com o trecho de uma música na cabeça por dias e dias até que, enfim, alguma estação de rádio a coloca pra tocar. Você a ouve e, satisfeito, consegue finalmente arrancá-la de sua cabeça e ela dificilmente volta para atormentá-lo, porque você já fez sua parte. Agora ela está livre para seguir seu próprio caminho. Só que ali era bem mais intenso.

Eu precisava ouvi-la.

Depois de horas de viagem, não havia fome, não havia sede e não havia vontade de ir ao banheiro. Havia a música.

Somente ela.

Finalmente, apertei o botão vermelho na lateral do gravador, reclinei-me no sofá e fechei os olhos.

A princípio, houve um momento de silêncio estático. Na cozinha, a geladeira zumbia monotonamente e a torneira da pia pingava lentamente. Logo, a estática diminuiu um pouco e, sobressaindo-a, a música de jazz começou; ecoando fantasmagórica e metálica por conta da qualidade da gravação.

Ansioso, eu fiquei ali, sentindo-a preencher o apartamento e os cômodos vazios enquanto me envolvia aos poucos em seus braços em um estado de letargia prazerosa.

Não sei quanto tempo fiquei ali. A impressão que tive quando voltei a me dar conta de mim mesmo era de que horas haviam se passado sem que eu me movesse. Horas onde experimentei diferentes prazeres e emoções. Tristeza, raiva, felicidade, solidão, alegria... E, durante todo esse tempo, o gravador a minha frente ficara repetindo a música sem parar.

Repetindo e repetindo e repetindo... até que ela se tornasse parte da realidade ao meu redor.

Eu estava afundando em uma espécie de torpor letárgico. Sentia-me como se na fronteira do sono; no limiar entre estar acordado e dormindo. Em vão, tentei me mover, mas meus braços pareciam desligados. As pernas haviam se tornado sacos pesados de areia, pressionados contra o assento do sofá. Meu coração entrara em um ritmo frenético, pulsando em uma velocidade que eu pensei que poderia explodir a qualquer momento. Quando tentei olhar em volta, percebi que meus olhos estavam fechados. Não conseguia abri-los. Forcei-os sem parar, até que entraram em um movimento espasmódico, os cílios se desgrudando aos poucos e as pálpebras se erguendo. Nesse ínterim, tive a impressão de ver e sentir espectros dançarem através de minhas pálpebras. Espectros noturnos que se moviam como sombras bruxuleantes pelos cômodos vazios de minha casa em uma espécie de ritual insano e profano. Vozes sussurram em meus ouvidos, sibilando seus desejos e ordens blasfemas com palavras que eu desconhecia. Vi o mundo a minha volta se dissolver aos poucos, como se sob efeito de um ácido corrosivo que revelava novas camadas da realidade por trás daquelas tão ordinárias. Essas e outras milhões de sensações que não poderia nem mesmo começar a descrever...

Foi terrível.

Eu ouvia a música retumbando em meus ouvidos. Parecia estar muito mais alta naquele momento. O apartamento tremia, dançando ao ritmo da música e, aos poucos, o mundo a minha volta parecia vibrar e oscilar, alinhando-se à frequência da música. Eu estava com muito medo. Achava que iria morrer. Pensei que estava tendo um derrame, enfarte ou coisa que o valha. Além disso, o som estava extremamente alto. Eu precisava desligar aquela coisa. Deus do céu...

Quando consegui me libertar das brumas hipnóticas da música, meu corpo saltou do sofá, ficando de pé com um só movimento. Meu coração batia rápido e eu ouvia suas pulsações pressionarem contra meus ouvidos. Aos poucos eu tomava consciência do espaço à minha volta. Ansioso, levei a mão até a mesa e desliguei o gravador.

O mundo imergiu em silêncio. Como um enorme parque de diversões que é tirado de repente da tomada.

Ali, parado e perdido, ouvi minha própria respiração.

As luzes do apartamento estavam todas apagadas, fazendo com que a sala ao meu redor se tornasse um festival de contornos escuros e sem forma. Mas era estranho porque... porque eu me lembrava de ter acendido as luzes quando cheguei no apartamento. Tinha certeza disso.

Foi quando um relâmpago explodiu pela janela ao meu lado e fez jorrar luz pelo meu apartamento, projetando toda a sala em uma miragem espectral e incandescente que queimou meus olhos.

No momento do flash, pude vislumbrar tudo com maior forma. Na luz, um mundo esquecido e secreto se revelou diante de meus olhos.

Minha casa... Deus do céu, não sei nem como botar isso em palavras. Minha casa parecia velha... Desgastada. Os papéis de parede estavam corroídos, descascando como uma gigantesca cobra. Eu podia sentir o cheiro de mofo e podridão pairando no ar. Havia um líquido estranho e espesso – preto como piche – escorrendo por trás do papel descascado das paredes e deslizando pelos rodapés até o chão. Escorria por todos os lados e gotejava do teto como uma estranha infiltração.

Assustado, cambaleei para trás, tentando me afastar daquela visão maldita. Foi quando outro relâmpago irrompeu no céu, esse de um clarão tão intenso que cheguei a ficar cego por alguns segundos. O trovão então ribombou, alastrando-se pela cidade lá fora como um terremoto que fazia os prédios trepidarem e os céus sacodirem. Um chacoalhar que perturbou o silêncio que pairava sobre tudo. Tremendo, virei-me para a janela e afastei a cortina rasgada.

A imagem que vi foi terrível.

Para descrevê-la, não posso me esquivar de analogias e lembranças, já que penso ser o único modo possível de evocar no leitor o mínimo de familiaridade com uma situação tão extraordinária. Assim, lhe pergunto: reconhece o desconforto que sentimos quando, em um sonho situado em um local familiar, conscientizamo-nos do caráter onírico daquilo tudo, mas, ainda assim, não conseguimos nos livrar de um estranho e traiçoeiro desconforto de que há algo de errado? Algo que, de certa forma, perturba os pilares do padrão. Foi essa a sensação que tive. Já que, ao olhar através da janela, nada mais vi do que a cidade em que sempre morei, exceto que não era ela de fato.

Era... era como... era como se a própria Noite houvesse recaído sobre tudo e, em sua fome eterna, tivesse engolido o mundo que eu antes conhecia. Como se a escuridão das eras tivesse sobrepujado todo o resto. A cidade estava escura. Mas não como ocorre nas noites normais, onde vemos alguns poucos apartamentos acesos ao longe, os postes de luz brilhando nas ruas e os faróis dos carros abrindo caminho lá em baixo.

Tudo estava apagado. Como em um apagão.

Os prédios, desligados e pálidos, apontavam para o céu como velhas lanças de guerra abandonadas. Torres esquecidas e apagadas; cinzentas e velhas. As ruas lá em baixo estavam vazias, tão escuras que mal podiam ser vistas. Lá em cima, no céu, uma tormenta cinza rodopiava preguiçosamente, cada nuvem girando em um ritmo lento e pesado.

E o pior de tudo: o silêncio desolador que me apertava com mãos frias.

Não se ouvia o zumbido de lâmpadas, geladeiras ou aparelhos eletrônicos. O mundo parecia morto, preenchido apenas pelo assustador ribombar dos trovões no céu tempestuoso. A mim, parado ali sozinho contra aquele cenário decrépito e fundido em sombras profundas, parecia – de uma forma tão real que, agora escrevendo, minha garganta fica embargada –, assustadoramente, o fim do mundo.

Lembro-me de quando era uma criança e, durante uma tempestade noturna, a luz da cidade acabava por um tempo. Eu era uma criança imaginativa e, por essa razão, frequentemente assustada. Recordo-me vividamente da sensação de olhar pela janela de meu quarto e vislumbrar um mundo abandonado e tomado pela escuridão. A sensação de pequenez que eu experimentava ao observar o mundo que sempre considerei eterno afundar nas sombras, fustigado por raios e chuva, enquanto, dentro de casa, meus pais preparavam a janta com a mesa iluminada por velas. Assustado, eu olhava para baixo da janela castigada com chuva de meu quarto, onde eu conseguia ver o corredor do meu prédio, agora totalmente sem luz. Apenas possível de discernir quando um relâmpago surgia no céu.

O mundo parecia abandonado. Relegado ao esquecimento e retornando a eras antigas de quando a humanidade ainda era jovem e a luz, escassa. Acredito que era isso que minha mente infantil de criança tanto temia, ainda que não de forma tão elaborada, mas instintiva. E era esse exato sentimento que tive quando olhei por aquela janela de meu apartamento.

Eu estava em um mundo esquecido.

Uma vez surgida a sugestão, não consegui mais me acalmar. A ansiedade tomou conta de mim. Queria correr, mas estava sem ar e sem forças para me mover. Os trovões ressoavam sobre minha cabeça, projetando-se perpetuamente pelas paredes de pedra da cidade morta lá fora.

Arfando, tateei pela sala até a cozinha, onde finalmente encontrei a porta do apartamento. No caminho, tentei apertar um dos interruptores da luz, mas nada aconteceu. Com dificuldade, busquei a chave e a coloquei na fechadura. Enquanto a porta se abria, senti o vento gelado do corredor do prédio invadir o apartamento e me açoitar ali na soleira da porta. Ali, tal como era de se esperar, havia apenas a escuridão palpável e o silêncio claustrofóbico. A porta do elevador estava aberta em uma bocarra horrenda e convidativa, mas o visor no alto estava apagado e a luz do interior também. De algum lugar lá de baixo, subindo pelo poço do elevador, o vento assobiava sorrateiramente.

Naquele ponto, minha imaginação alçava longos voos. Sabia que aquilo não era um sonho. Era real demais. E eu estava tão amedrontado que pouco importava a natureza daquilo tudo, contanto que acabasse logo. Era um pavor inexplicável. A vontade que eu sentia era de sentar e chorar.

Assim, avancei pela escuridão até alcançar a porta de meu vizinho de andar. Tremendo, bati na porta. As batidas ressoaram na noite como bombas. Quando não obtive respostas, gritei por alguém, mas também ninguém respondeu. Fiquei ali por um tempo, parado em frente à porta sem saber o que fazer. Após alguns segundos, posso jurar ter ouvido algo vindo lá de dentro. Sob o leve assobio do vento, pensei ter ouvido o rastejar de algo e, logo em seguida, o tec-tec de algo correndo pelo assoalho do apartamento. Quando achei sentir a presença de algo por trás da porta, esperando eu ir embora ou me observando, sai correndo e entrei na escadaria do prédio.

Eu morava no sétimo andar e, somado com a escuridão, a descida foi bastante difícil. O som dos trovões fazendo o prédio vibrar já estavam me deixando em um estado de ansiedade cansativo, e eu me assustava toda vez que um surgia. Sempre tive medo de trovões e, naquela situação, estavam me deixando apavorado.

Eu já estava no segundo andar quando algo que jamais esquecerei aconteceu.

Ouvi, vindo de algum lugar da escuridão atrás de mim, o som de “tec-tec” que ouvi quando parei diante do apartamento vizinho. Algo pesado descia a escada atrás de mim produzindo um som de chocalho estranho. Fiquei paralisado. Não sabia se se tratava da minha salvação ou perdição. Me preparei para continuar descendo. Já ia fazendo a volta na escadaria quando, no lance acima, algo irrompeu das sombras, olhando-me da curva da escada com um olhar vidrado e paralisado.

Era difícil de enxergar no escuro. Porém, naqueles poucos instantes, percebi que não se tratava de algo humano. Os olhos negros como bolas de chumbinho brilhavam do alto, me encarando com interesse. O resto do corpo do que quer que fosse aquilo estava escondido por trás da curva da escada, mas eu vi que havia ali mais pernas do que no corpo humano. Era, em resumo, uma espécie de inseto. Ficamos alguns segundos assim, olhando um para o outro enquanto os trovões explodiam no céu e aquela coisa produzia uns ruídos indiscerníveis. As antenas balançavam no alto, chicoteando o teto e os olhos me analisavam com estranho interesse. Não eram vazios. Havia inteligência ali e, enquanto ele me observava como uma sentinela sombria parada na escuridão, pude ver as longas pernas ou patas balançando e se esfregando com ansiedade.

Nunca me esquecerei daquele rosto pairando no alto com olhos brilhantes.

Com a garganta fechada de medo, corri para baixo, deixando aquele pesadelo para trás. Quase tropecei uma ou duas vezes, mas, tomado pelo meu pavor, mantive o ritmo. Por um tempo, ouvi a coisa se movimentar na escadaria. O som das patas batendo no cimento com aquele estranho “tec-tec” e o gigantesco corpo estalando enquanto ele se espremia pelos lances de escada.

Enquanto atravessava os corredores silêncios do hall do prédio, pensei em gritar por ajuda, mas tive medo... um medo inexplicável de, ao gritar, despertar algo que estivesse escondido no silêncio.

Finalmente, alcancei a saída do prédio e me vi ao ar livre. Foi ali onde o momento mais aterrorizante disso tudo aconteceu.

Rodeado por muros de casas e fachadas de prédio, tudo adormecido e abandonado, parado na escuridão da rua enquanto as árvores farfalhavam solitárias, eu olhei para o céu.

É uma árdua tarefa descrever tudo que vi. Não sei se tenho a habilidade e a memória para descrever a cena, nem a tenacidade para conseguir trazê-la outra vez a minha mente.

No negrume do céu, um manto cinzento de nuvens rodopiava em um redemoinho. Em seu centro, onde as nuvens convergiam, havia um gigantesco olho amarelado e de pupila dilatada que vasculhava ensandecido a cidade decadente que adormecia sob o céu.

No horizonte ao longe, abaixo do Olho, uma gigantesca criatura flutuava sobre o topo dos prédios. Se eu tivesse de chamar aquilo de algo, chamaria de Deus, em falta de uma palavra melhor. Mas eu sabia que esse Deus respondia a algo ainda maior, no caso, ao Olho que vasculhava a Terra. A cabeça branca que flutuava sobre a cidade com um sorriso débil e vazio era apenas o arauto da destruição, e seus dois olhos eram cavidades escuras e vazias, pretas como o espaço. De repente, ele me viu do horizonte. Com lentidão, o sorriso débil virou-se para mim e me encarou. Não havia nada em seu rosto. Era como um gigantesco balão, branco e inchado, marcado apenas com a marca de uma boca vazia e as cavidades dos olhos. Quando ele percebeu minha presença, o grande Olho no céu se virou para mim.

Estremeci no mesmo instante.

Com o glóbulo ocular virado para mim, eu comecei a correr do céu que me observava. Era como se eu estivesse dentro de uma caixinha e o céu fosse o buraco por onde um gigante cósmico olhasse para o seu interior.

O mundo atrás de mim começou a se desintegrar, sendo devorado pelo Olho que se aproximava em meu encalço, diminuindo cada vez mais a distância. Ao longe, eu ouvia a criatura em forma de balão emitir um guincho terrível de destruição e caos. Corri até meus calcanhares começarem a tremer e minhas panturrilhas formigarem. Quando ele já estava muito perto e eu podia ouvir o turbilhão que ele produzia ao avançar, me joguei para dentro de meu prédio, onde bati com a cabeça em uma pilastra.

Daí para frente, assim como no dia do bar, não me lembro de mais nada. Só sei que, quando acordei, estava outra vez em minha sala, agora com as luzes acesas e o mundo lá fora ainda vivo e funcionando.

A música no gravador ainda estava tocando aquele mesmo jazz estranho em looping.

Desliguei-o, reclinei-me no sofá e agradeci a Deus por tudo aquilo ter acabado. Foi um alívio que nunca tinha sentido antes. Chorei incontáveis vezes, aliviado com o fim daquele pesadelo.

Só que eu estava errado.

Quatro dias depois, resolvi marcar uma sessão com um psiquiatra.

Em algum lugar da minha mente, eu tinha certeza de que tudo aquilo fora real. Ainda assim, uma boa parte de mim se convencera de que tudo fora fruto de um estranho pesadelo. Um que era impossível esquecer. E isso estava me atormentando. Tinha medo de apagar as luzes para dormir e ver aquele mundo outra vez... A noite se tornara, para mim, um tormento.

Assim, resolvi ir a uma consulta. Se eu conseguisse algumas doses de ansiolíticos e remédios para dormir já estaria no lucro.

No início, tudo ocorreu bem. Uma consulta qualquer. Ele me perguntou algumas coisas e eu as respondi com sinceridade.

— Não precisa se preocupar — o homem sentado na poltrona me falou, enquanto eu estava no divã —, esses camaradas já vão te ajudar a dormir. Não vai ter nenhum pesa... sr. Silas? Você está bem?

Eu não estava. Não estava nada bem.

— O que é isso?

Perguntei gaguejando e olhando para o teto.

O homem fez uma cara de surpresa e me respondeu com extrema naturalidade.

— Isso o quê, sr. Silas?

Ao que eu respondi, agora sentado e tremendo.

— E-Essa música...

O homem então olhou para o teto, para o lugar de onde saía a música.

— Bem... eu não sei, é um jazz qualquer. Quer que eu troque?

Eu não conseguia parar de chorar. Minhas pernas formigavam sem parar e aquela porra de música dançava pela sala como se tocada por uma caixa de som gigantesca! Parecia estar no volume máximo! Cacete, eu não conseguia nem pensar.

Me virei para dizer a ele que eu precisava ir ao banheiro e um relâmpago explodiu no céu, iluminando o consultório inteiro.

Quando meus olhos se encontraram com os dele... eu vi o vazio.

Eu estava olhando para um cadáver apodrecendo. Podia ver a cartilagem pendendo da cabeça como escamas. A carne desprendia do crânio feito uma esponja velha e quebradiça, tudo brilhando sob o azul incandescente do relâmpago. E os olhos que me encaravam eram duas cavernas escuras e sem vida.

Eu sabia que, em algum lugar lá em cima, Ele me olhava.

Logo, a realidade começou a vibrar.

Apavorado, gritei e deixei o lugar e aquela música amaldiçoada. Pude ouvi-la tocando mesmo quando já tinha deixado o consultório.

Estou escrevendo isso no escuro, pois a luz acabou mais uma vez. Os trovões estão gritando no céu e Ele me procura por entre as nuvens. Não posso sair. De jeito nenhum posso deixar esse lugar. A todo momento escuto coisas andando pelas escadas e rastejando pelos corredores. Ouvi a porta do meu vizinho abrir, mas não tive coragem de olhar. Tenho certeza de que eles – seja lá o que viva nesse mundo e nesse prédio – sabem que estou aqui, escondido e entocado como um rato.

Minutos atrás, ouvi um “clic-clic” quando algo parou na frente da minha porta e tentou mexer na maçaneta. Graças a Deus eu lembrei de trancá-la.

Não sei o que fazer. Acho que qualquer lugar é melhor do que aqui.

Até a própria morte.

E, ah, Deus do céu, a música! A música não para de tocar na minha cabeça...

25 de Agosto de 2021 a las 05:43 5 Reporte Insertar Seguir historia
13
Fin

Conoce al autor

Guilherme Rubido Olá, que bom que conseguiu chegar até aqui. Seja muito bem-vindo. Por favor, tire o tênis e sinta-se em casa. Parece que começou a chover. Consegue escutar? É uma chuva daquelas... Teremos muito tempo até que pare. Sendo assim, escolha um assento e fique confortável. Aqui veremos muitas coisas horríveis, então, prepare-se. Tem café quente na mesa e bolachas no armário de cima (não mexa no de baixo, não vai gostar do que tem lá dentro). Caso goste do que viu, não se esqueça de deixar uma gorjeta (like) ou comentário para o escritor, ele agradece pela sua cooperação. Para o caso contrário, deixe um comentário com sua reclamação, estamos sempre tentando melhorar. Espero que se divirta. :)

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Denis Sakamoto Denis Sakamoto
Tem algo de setealem aqui que me deixou animado e aterrorizado! Muito boa!!
February 04, 2024, 09:12
LM Laysse Morningstar
Eu amei o horror, super criativo, até compartilhei com a minha amiga e irmã. Minha amiga amou também (Infelizmente ela não tem essa plataforma) Li pra minha irmã, tive que dormir com ela pq a msm ficou com medo. Mas é sério sua história é fantástica! Meu sonho é escrever tão bem quanto vc
October 18, 2021, 21:14
Wesley Deniel Wesley Deniel
Aliás, aproveitando a ocasião, o companheiro tem uma página ? Eu ficaria feliz em segui-lo, para podermos conversar mais sobre esses 666 mil fantasmas que rondam nossas mentes. Ah ! Ia esquecendo... Como sempre, o amigo nos brinda com referências sensacionais como Twin Peaks. Muito bom !
August 28, 2021, 08:41
Wesley Deniel Wesley Deniel
Salve, meu amigo ! Que satisfação foi acompanhar mais esta sua ! Como sempre, muito bem contada e escrita, como de costume, intrigante e instigante. Fez-me lembrar de uma história minha, parada há algum tempo desde que peguei "Kanda" (que já está disponível aqui) e "O Homem do Saco", que devo disponibilizar nos próximos dias. Esta se chama "Monitoramento" e é a história de Lester e Clarence, dois seguranças de um shopping em Providence, lar de nosso querido Lovecraft, e Grace Lafleur, que se vê perdida entre mundos, sob o domínio de Yog-Sothoth (aquele que é a Chave e o Portão), guiada apenas pelo que Lester vê nas estranhas câmeras de segurança que, de algum modo, tomam sua central de monitoramento. Imagino que o amigo também estivesse pensando em Setealém quando se inspirou para esta horripilante história. Um universo fantástico, sem dúvida ! Espero poder compartilhá-la com o amigo em breve. Até lá, não poderia deixar de vir parabenizá-lo e prestigiá-lo. Grande abraço ! 🙏
August 28, 2021, 08:32

  • Guilherme Rubido Guilherme Rubido
    Salve, Wesley! Que bom revê-lo por aqui depois de tanto tempo! Sempre bom ver que você continua escrevendo suas hitórias. Essa que se passa em Providence, confesso, me chamou bastante a atenção. Espero poder vê-la em breve por aqui. Sobre o "Setealém", admito que não conhecia o conceito. Assim que vi seu comentário, fui procurar saber e, nossa, realmente é um conceito que se alinha muito com alguns dos últimos contos que escrevi: este aqui e outro chamado "Descendo as escadas". Ah!, e o que dizer de Twin Peaks, não é mesmo? Que série maravilhosa. Sinto falta daquela cidade e de seus mistérios. Resta-nos as referências. Sobre uma página minha, tenho somente um Instagram (que, confesso, uso pouco). Mas ele está exposto aqui no meu perfil do Inkspired, Pode me seguir por lá para conversarmos! Obrigado pelo apoio de sempre, amigo! Fique bem! August 30, 2021, 22:56
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